quinta-feira, 26 de março de 2009

Crimes insignificantes



É viável uma sociedade em que preocupações morais substituem as normas jurídicas?


A FOLHA de sábado passado (reportagem de Felipe Seligman e Sofia Fernandes) noticiou que, ao longo de 2008, o Supremo Tribunal Federal julgou 14 casos em que considerou "insignificantes" os crimes cometidos: as ações penais deveriam ser arquivadas e os culpados que estivessem presos deveriam ser soltos.

O que é um crime insignificante? Primeiro, o que foi roubado ou destruído deve ser uma bagatela, ou seja, pouca coisa (claro, a bagatela não pode ser definida de vez: o que é pouca coisa para mim pode não ser para você).

Segundo, ajuda o fato de que o crime tenha sido perpetrado, como notou o ministro Carlos Ayres Britto, por "extrema carência material". Por exemplo, seria insignificante roubar o básico se você e sua família passam fome. O ministro Celso de Mello acrescentou que o sujeito assim isentado não deve apresentar "nenhuma periculosidade social" (isso, claro, é uma previsão).

A questão não é concordar ou não com as decisões do STF: existem crimes que nos parecem pouco relevantes e pelos quais achamos injusto que um cidadão seja encarcerado -sobretudo, muitos acrescentarão, considerando o bando de criminosos bem mais relevantes que andam livres pelas nossas ruas. Isso sem contar a superlotação do sistema carcerário.


O que me interessa é que as 14 decisões do STF constituem uma espécie de marco. Imagino facilmente um juiz de primeira ou segunda instância ponderando alternativas mais morais do que propriamente jurídicas: "Se encarcero este homem, o que acontece com suas crianças? Ou então, se eu o encarcero, será que faço do crime seu destino, enquanto seu comportamento foi excepcional, ditado por circunstâncias extremas?". Há mesmo situações que a lei não pode contemplar e que pedem uma avaliação "humana", quase afetiva. Mas, visto que as decisões emanam do Supremo, é como se, desta vez, a preocupação moral alterasse ou substituísse a norma jurídica. Isso é uma novidade. Devemos festejar? A verdade é que não sei.

Os psicólogos conhecem os dilemas que Lawrence Kohlberg inventou, nos anos 70, para medir o desenvolvimento moral das pessoas. O primeiro deles podia ser resumido assim: "É errado roubar remédio se seu filho está doente e você não tem recurso algum?". Hoje, o STF parece responder que se trataria de um erro insignificante. Para Kohlberg, essa resposta tem uma qualidade moral superior àquela que diria que, necessidade ou não, bagatela ou não, roubar é proibido.

Agora, Kohlberg media a qualidade do pensamento moral, ou seja, a complexidade do foro íntimo das pessoas. Ele não pedia que, na hora de dar suas respostas, os sujeitos testados apreciassem a legalidade das condutas avaliadas -por uma razão simples: em nossa cultura, a esfera pública da legalidade é separada da esfera privada da moral.

Já faz alguns séculos que a ideia de justiça se desvinculou da ideia de legalidade: o que nos parece justo não coincide necessariamente com o que é legal. Podemos achar, sem contradição, que uma lei é injusta; e nosso tribunal interior é mais importante, para nós, do que o veredicto de uma corte. Essa maneira de pensar é um dos traços gloriosos da modernidade ocidental.

Na reportagem que citei, Britto declara que o STF recorreu a uma distinção entre o formal e o material: algo pode ser crime formal, mas não material (o concreto é mais importante do que a letra). A consequência vem a seguir: o ministro também declara que, no caso do crime de bagatela, foi afastada "a ilicitude do caso". Ou seja, a consideração moral concreta acabou com a ilegalidade abstrata do ato.

Muitos especialistas em segurança pública recearão as consequências dessa posição, pois vários estudos mostram que o crime se expande lá onde as simples infrações não são reprimidas: se é tolerado que a gente urine nos cantos, então haverá quem assaltará -como se a "generosidade" da lei comprovasse sua ausência ou seu sono. Mas, fora essa consideração, as decisões do STF revelam um impasse específico da modernidade. Uma sociedade regida pelo foro íntimo seria, provavelmente, mais justa do que uma sociedade governada pela letra da lei. Mas será que ela é possível? Será que somos capazes disso? Será que somos homens à altura dessa esperança?
Essa pergunta é, por sua vez, um dilema moral -ao qual, obviamente, não sei responder.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 19 de março de 2009

Coisa de homens



Os atiradores parecem agir na tentativa desesperada de se levarem a sério


DUAS notícias na Folha de quinta passada. Em Wendlingen, Alemanha, Tim Kretschmer, 17, saiu de casa com uma Beretta 9 mm e 200 cartuchos. O pai do jovem colecionava armas, todas legais e bem guardadas, salvo a fatídica pistola, que estava na gaveta de um cria- do mudo.
Kretschmer matou 15 pessoas, no colégio do qual ele tinha sido aluno, ao longo da estrada e numa revenda de carros, onde ele, enfim, suicidou-se. Em sua grandíssima maioria, os alvos eram femininos. Kretschmer não tinha um rancor especial pela escola onde se formara e, campeão de tênis de mesa, não era marginalizado socialmente.

Em Kinston, Alabama, EUA, Michael McLendon, 28, matou dez pessoas, começando pela mãe. McLendon (com dois fuzis, uma pistola e uma espingarda) eliminou uma lista de parentes que, aparentemente, ele detestava. As autoridades declararam: "Ele não tinha sido demitido, não houve rompimento amoroso. Ele não tinha ficha criminal nem história de distúrbios mentais". Os assassinatos em massa já são uma tradição nos EUA (desde o massacre de Columbine, em 1999) e na Alemanha (desde o massacre de Erfurt, em 2002). Mas a epidemia começou na Escócia, em 1996, com a morte de 16 crianças e um professor (mais o assassino, suicida).

E houve duas manifestações na Finlândia (nove mortos em 2007 e 11 em 2008). Isso sem contar o Iêmen, em 1997, com a morte de seis crianças e dois adultos. Claro, a mídia facilita a identificação por contaminação: de país em país, o comportamento extremo de alguém se torna "exemplar" para outros. Mas isso não nos diz a razão da série, apenas explica sua possibilidade.
A cada vez, a gente se pergunta o que pode levar alguém a sair matando. Uma patologia? Um evento inadmissível? A sensação de uma exclusão irremediável? A história de cada atirador é diferente. Alguns eram de classe média, outros de classes menos favorecidas. Alguns pareciam ter um brilhante futuro, outros acabavam convencidos de que o mundo não era lugar para eles. Entre esses, havia os que execravam sua exclusão e os que a curtiam como se fosse um privilégio. Alguns sofriam de depressões ou transtornos mais graves, mas não todos.

Será, então, que a série de horrores corresponde a um traço cultural? E lá vamos nós, reinventando banalidades sobre o "horror" moderno. Seja como for, diante dos massacres, é difícil não procurar denominadores comuns. Por exemplo, esses gestos homicidas e suicidas são propositalmente públicos. Não se trata de alvejar os passantes a partir de uma janela escondida: a matança é teatral.

Como se, para os atiradores, encarnar o anjo da morte (dos outros e deles mesmos) fosse uma demonstração, uma prova, que deve valer aos olhos de todos. Uma prova de quê? Pois é, os atiradores são sempre homens. O que eles querem provar? A identidade da gente é um tecido de imagens incertas; nesse jogo de espelhos, há poucos atos "reais", que possam dizer a que viemos sem que seu sentido dependa do olhar dos outros.

Como dizia um psicanalista famoso, é possível que haja só dois atos dessa qualidade: dar à luz e morrer. Claro, para os "meninos" só sobraria morrer. Mas acrescento: morrer e, talvez, matar. Atrás da singularidade de suas razões, os atiradores parecem agir numa tentativa desesperada de se levarem a sério e de serem, enfim, levados a sério. Algo assim: "O mundo me desprezará, mas, diante de meu ato, não poderá negar que sou um "macho de respeito'".

Faz décadas que a masculinidade está doente: sofre de uma incerteza aguda sobre o que a demonstraria de maneira irrefutável. As máscaras masculinas herdadas do século 19 (do provedor de paletó ao garimpeiro) não bastam mais. Qual é a nova fronteira que é preciso desbravar para "ser" homem?

Na aurora da modernidade, Hegel escrevia que o desprendimento em encarar a morte era a marca do mestre. Depois de dois séculos higienistas, que fizeram a apologia da sobrevivência a qualquer custo, nestas décadas em que arriscar a vida num esporte extremo é apenas um entretenimento televisivo, talvez, aos olhos de alguns, a verdadeira marca do mestre pareça ser o desprendimento em matar.

Num dos romances de Jean-Patrick Manchette (não lembro mais qual), um jovem circula de carro pelo bulevar periférico de Paris. Ele carrega uma pistola e, enquanto dirige, sussurra: "Eu vou lhes mostrar que sou gente grande".

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quinta-feira, 12 de março de 2009

Um arcebispo mais ou menos



Lula se expressou numa ordem perfeita: ele é (primeiro) cristão e (segundo) católico


NA SEMANA passada, no Recife, descobriu-se que uma menina de nove anos estava grávida de gêmeos. A mãe imaginava que a barriga crescente fosse o efeito de um parasito. Mas não era um parasito; era o padrasto, que abusava regularmente a menina e a irmã (de 14 anos, portadora de uma deficiência mental). O abuso começou quando as crianças tinham, respectivamente, seis e 11 anos.

O padrasto foi preso, e uma equipe médica, autorizada pela mãe, interrompeu a gravidez da menina, seguindo a lei brasileira, que permite a interrupção de gravidez em caso de risco de vida para a mãe e também em caso de estupro. Quem conhece alguma menina de nove anos pode facilmente imaginar o que significaria submeter aquele corpo a uma gravidez completa e a um parto duplo.

Além disso, qualquer um pode intuir que carregar na barriga, parir e "maternar" o fruto de um estupro é devastador para a mãe assim como para os eventuais rebentos dessa catástrofe. Alguém dirá: "Mas a mulher acabará esquecendo o estuprador (que foi gentil, nem a matou, não é?), e o sentimento materno prevalecerá". Esse conto de fada (machista) não se aplica no caso da menina de Recife.

Pede-se o quê? Que ela esqueça que, durante três anos, quem devia ser para ela o equivalente a um pai se serviu de seu corpo de uma maneira que ela não tinha condição de entender e num quadro em que ela não tinha a quem recorrer, é isso? No meio da semana, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, declarou que os que estivessem envolvidos na interrupção da gravidez da menina (a mãe, os médicos, os enfermeiros) fossem excomungados. Agora, o padrasto não; pois o crime dele seria mais leve. Isso, segundo o bispo, é a "lei de Deus". O bispo se confundiu: essa não é a lei de Deus, é a lei da Igreja Católica.

E faz alguns séculos que essa igreja não tem mais (se é que um dia teve) a autoridade moral para ela mesma acreditar que seus decretos sejam expressão da vontade divina. Portanto, sua persistência em tentar convencer os fiéis de que a voz da igreja coincide com a voz de Deus se parece estranhamente com a conduta do padrasto da história (e de qualquer pedófilo): trata-se, em ambos os casos, de tirar proveito da "simplicidade" de crianças e ingênuos. Mas voltemos aos fatos. O presidente Lula, "como cristão e como católico", achou lamentável a declaração do arcebispo. Dom José não gostou e afirmou que o presidente Lula é "um católico mais ou menos".
O presidente Lula se expressou numa ordem perfeita: ele é (primeiro) cristão e (segundo) católico. Ou seja, se a igreja diz algo que contraria seu entendimento da mensagem de Cristo, tanto pior para ela. A mensagem cristã da qual se trata não tem a ver com a interrupção de gravidez. Ela é mais fundamental: trata-se da liberdade do indivíduo e da consciência em sua relação com Deus. Explico.

É trivial constatar que, na modernidade, a decisão moral é um questionamento constante e, às vezes, atormentado: cada um, levando em conta as ideias de seu grupo, seus valores mais singulares, seus sentimentos, sua fé (se ele tem uma) e os fatos (caso a caso), chega a uma decisão ou a uma opinião que acredita justa. Um pouco menos trivial é lembrar que esse aspecto da modernidade é o melhor fruto da tradição judaico-cristã e, mais especificamente, da novidade cristã, pela qual Deus pode ser o mesmo para todos porque ele não se relaciona com grupos ou pelo intermédio de grupos, mas com cada indivíduo, um a um.

Ser moderno não significa topar qualquer parada e perder-se no relativismo. Ao contrário, ser moderno (e ser cristão) significa tomar a responsabilidade de decidir no nosso foro íntimo o que nos parece certo ou errado. Claro, é mais difícil do que procurar respostas feitas e abstratas no direito canônico. Mas, contrariamente ao que deve achar dom José, ninguém nunca disse que ser cristão (e moderno) seja fácil.

Felicito o presidente Lula, que falou como cristão, ao risco de parecer "católico mais ou menos". Quanto a dom José, ele falou como católico e se revelou como um "cristão mais ou menos". O dia em que ele quiser ser cristão, ele nos dirá, com suas palavras, por que e como, em seu foro íntimo, acha o gesto de quem interrompeu a dupla gravidez de uma criança de 30 quilos muito mais grave do que a abjeção de um padrasto que, por três anos, estuprou suas enteadas.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 5 de março de 2009

Lideranças e castelos



Liderar já significou arriscar a vida para proteger os indefesos; os castelos serviam para isso


O VALE DE Aosta, na Itália, sobe, a partir do Canavese (a região da cidade de Ivrea), até o Mont Blanc.

Dos dois lados do vale, abre-se uma série de vales menores, que acabam em outras montanhas geralmente impérvias. Uma delas oferece um passo laborioso, mas que sempre foi praticável: é o Grande São Bernardo (hoje entre a Itália e a Suíça).

Há quem diga que, pelo Grande São Bernardo, transitou o Exército de Anibal, em 217 antes de Cristo. Com certeza, 160 anos depois, foi pelo Grande São Bernardo que passaram as legiões de César a caminho da Gália. O passo foi usado por Carlos Magno, no ano 800, voltando para França depois de ter sido coroado em Milão. Mas, sobretudo, durante séculos, ele foi o caminho escolhido por cada tipo de horda a fim de saquear e estuprar um pouco mais ao sul.

Eram "bárbaros" do norte ou Saracenos (futuros Otomanos), descidos de algum navio Deus sabe onde e errantes pela Europa; alguns deles, apesar de neve e frio, instalaram-se no ponto mais alto do caminho, cobrando pedágios exorbitantes. Ao redor do ano 1000, eles foram derrotados, e foi construído, lá em cima, um mosteiro que, desde então, assiste os que se aventuram por aquelas bandas nos meses do inverno (os monges criaram a raça de cachorros São Bernardo, especialistas em procurar peregrinos perdidos no gelo).

Lembrei-me dessa história numa viagem recente, em que, atravessado o túnel do Mont Blanc, desci até Torino. Repeti uma brincadeira com a qual, criança, enganava o tempo, sentado no banco traseiro do carro: tentava contar, ao longo da estrada, as fortificações ou suas ruínas. São muitas, algumas bem antigas. Ora, os exércitos invasores que desceram por aquele caminho foram poucos. Fora talvez Anibal, só houve a descida de Napoleão, em 1800. No mais, foram bandos -grandes ou pequenos.

Igual, as fortificações não barravam o caminho: exércitos e bandos podiam facilmente desviar. Então, por que erguer torres e castelos? Desde criança, inventei uma explicação, que meus amigos medievalistas parecem confirmar. Naqueles séculos perigosos, as pequenas comunidades viviam arrancando sua subsistência à terra e sem poder recorrer a ninguém que as defendesse quer seja pela distância (fazer o quê? Mandar alguém correndo para Torino?), quer seja pela incerteza dos laços (a quem caberia proteger a gente: ao bispo de Aosta? Ao emperador, na PQP?). Quem tivesse um mínimo de meios e braços construía uma torre; enxergar de longe a chegada dos saqueadores significava ganhar o tempo para esconder a família, os bichos e os grãos para semear no ano seguinte. Na torre e na fortificação era também possível se fechar, esperando a horda passar; claro, os vizinhos acorreriam, pedindo e obtendo asilo.

Alguns donos de torres, convencidos de que pode valer a pena arriscar a vida para evitar uma humilhação, encontrariam a coragem de se armar e resistir o suficiente para que a horda do dia preferisse seguir em frente e espoliar outra vila. Pois bem, as elites aristocráticas nasceram assim, de baixo para cima, não por decreto imperial. Certo, mais tarde, um dos valentes decidiu, por exemplo, responder ao apelo de uma cruzada (talvez mais para se vingar dos bandos de Saracenos do que para reconquistar a terra santa) e acabou ganhando um título de algum soberano. Mas, isso, só mais tarde.

Em suma, mais de mil anos atrás, liderar significou ter a coragem de proteger os indefesos (essa é, aliás, a ética cavalheiresca originária), e as fortificações serviam para isso. Só depois é que os líderes passaram a exigir "compensações" por sua liderança (impostos, privilégios etc.): as fortificações, de repente, serviram também para defender o aristocrata contra seus próprios sujeitos, caso eles se rebelassem.

Mas essa época também passou (em termos). Veio (e ainda dura) o tempo dos castelos kitsch, que servem para esbanjar e intimidar: "Olhe o tamanho de meus muros, pasme com minha riqueza. Inveje-me, obedeça e faça reverência". Caso não tenha ficado claro, essas reflexões são inspiradas pelo castelo do deputado Edmar Moreira, em São João Nepomuceno, MG (josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/images
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). É um exemplo da triste transformação das lideranças (e da gente: afinal, cada época deve ter as lideranças que merece).

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