Os atiradores parecem agir na tentativa desesperada de se levarem a sério |
DUAS notícias na Folha de quinta passada. Em Wendlingen, Alemanha, Tim Kretschmer, 17, saiu de casa com uma Beretta 9 mm e 200 cartuchos. O pai do jovem colecionava armas, todas legais e bem guardadas, salvo a fatídica pistola, que estava na gaveta de um cria- do mudo.
Kretschmer matou 15 pessoas, no colégio do qual ele tinha sido aluno, ao longo da estrada e numa revenda de carros, onde ele, enfim, suicidou-se. Em sua grandíssima maioria, os alvos eram femininos. Kretschmer não tinha um rancor especial pela escola onde se formara e, campeão de tênis de mesa, não era marginalizado socialmente.
Em Kinston, Alabama, EUA, Michael McLendon, 28, matou dez pessoas, começando pela mãe. McLendon (com dois fuzis, uma pistola e uma espingarda) eliminou uma lista de parentes que, aparentemente, ele detestava. As autoridades declararam: "Ele não tinha sido demitido, não houve rompimento amoroso. Ele não tinha ficha criminal nem história de distúrbios mentais". Os assassinatos em massa já são uma tradição nos EUA (desde o massacre de Columbine, em 1999) e na Alemanha (desde o massacre de Erfurt, em 2002). Mas a epidemia começou na Escócia, em 1996, com a morte de 16 crianças e um professor (mais o assassino, suicida).
E houve duas manifestações na Finlândia (nove mortos em 2007 e 11 em 2008). Isso sem contar o Iêmen, em 1997, com a morte de seis crianças e dois adultos. Claro, a mídia facilita a identificação por contaminação: de país em país, o comportamento extremo de alguém se torna "exemplar" para outros. Mas isso não nos diz a razão da série, apenas explica sua possibilidade.
A cada vez, a gente se pergunta o que pode levar alguém a sair matando. Uma patologia? Um evento inadmissível? A sensação de uma exclusão irremediável? A história de cada atirador é diferente. Alguns eram de classe média, outros de classes menos favorecidas. Alguns pareciam ter um brilhante futuro, outros acabavam convencidos de que o mundo não era lugar para eles. Entre esses, havia os que execravam sua exclusão e os que a curtiam como se fosse um privilégio. Alguns sofriam de depressões ou transtornos mais graves, mas não todos.
Será, então, que a série de horrores corresponde a um traço cultural? E lá vamos nós, reinventando banalidades sobre o "horror" moderno. Seja como for, diante dos massacres, é difícil não procurar denominadores comuns. Por exemplo, esses gestos homicidas e suicidas são propositalmente públicos. Não se trata de alvejar os passantes a partir de uma janela escondida: a matança é teatral.
Como se, para os atiradores, encarnar o anjo da morte (dos outros e deles mesmos) fosse uma demonstração, uma prova, que deve valer aos olhos de todos. Uma prova de quê? Pois é, os atiradores são sempre homens. O que eles querem provar? A identidade da gente é um tecido de imagens incertas; nesse jogo de espelhos, há poucos atos "reais", que possam dizer a que viemos sem que seu sentido dependa do olhar dos outros.
Como dizia um psicanalista famoso, é possível que haja só dois atos dessa qualidade: dar à luz e morrer. Claro, para os "meninos" só sobraria morrer. Mas acrescento: morrer e, talvez, matar. Atrás da singularidade de suas razões, os atiradores parecem agir numa tentativa desesperada de se levarem a sério e de serem, enfim, levados a sério. Algo assim: "O mundo me desprezará, mas, diante de meu ato, não poderá negar que sou um "macho de respeito'".
Faz décadas que a masculinidade está doente: sofre de uma incerteza aguda sobre o que a demonstraria de maneira irrefutável. As máscaras masculinas herdadas do século 19 (do provedor de paletó ao garimpeiro) não bastam mais. Qual é a nova fronteira que é preciso desbravar para "ser" homem?
Na aurora da modernidade, Hegel escrevia que o desprendimento em encarar a morte era a marca do mestre. Depois de dois séculos higienistas, que fizeram a apologia da sobrevivência a qualquer custo, nestas décadas em que arriscar a vida num esporte extremo é apenas um entretenimento televisivo, talvez, aos olhos de alguns, a verdadeira marca do mestre pareça ser o desprendimento em matar.
Num dos romances de Jean-Patrick Manchette (não lembro mais qual), um jovem circula de carro pelo bulevar periférico de Paris. Ele carrega uma pistola e, enquanto dirige, sussurra: "Eu vou lhes mostrar que sou gente grande".
ccalligari@uol.com.br
Olá Contardo, me chamou a atenção um trecho de uma entrevista que você deu para uma revista. Sobre a felicidade que não é o que mais lhe interessa. Fiz uma pergunta lá no meu blog e você é a pessoa mais indicada para responder!
ResponderExcluirUm abraço
Alice Klein
O blog é: alice-klein.blogspot.com
ResponderExcluirEsse texto me fez pensar na cena do filme "Cidade de Deus" em que o personagem "zé pequeno", enquanto criança, assiste um assalto e logo em seguida, diz, com uma arma na mão, que é "sujeito-homem"...e atira em outro menino para pegar o dinheiro. Realmente trata-se de um menino sujeito ao significante "homem". Uma pena que seja por esta via...
ResponderExcluirAbço!