quinta-feira, 5 de março de 2009

Lideranças e castelos



Liderar já significou arriscar a vida para proteger os indefesos; os castelos serviam para isso


O VALE DE Aosta, na Itália, sobe, a partir do Canavese (a região da cidade de Ivrea), até o Mont Blanc.

Dos dois lados do vale, abre-se uma série de vales menores, que acabam em outras montanhas geralmente impérvias. Uma delas oferece um passo laborioso, mas que sempre foi praticável: é o Grande São Bernardo (hoje entre a Itália e a Suíça).

Há quem diga que, pelo Grande São Bernardo, transitou o Exército de Anibal, em 217 antes de Cristo. Com certeza, 160 anos depois, foi pelo Grande São Bernardo que passaram as legiões de César a caminho da Gália. O passo foi usado por Carlos Magno, no ano 800, voltando para França depois de ter sido coroado em Milão. Mas, sobretudo, durante séculos, ele foi o caminho escolhido por cada tipo de horda a fim de saquear e estuprar um pouco mais ao sul.

Eram "bárbaros" do norte ou Saracenos (futuros Otomanos), descidos de algum navio Deus sabe onde e errantes pela Europa; alguns deles, apesar de neve e frio, instalaram-se no ponto mais alto do caminho, cobrando pedágios exorbitantes. Ao redor do ano 1000, eles foram derrotados, e foi construído, lá em cima, um mosteiro que, desde então, assiste os que se aventuram por aquelas bandas nos meses do inverno (os monges criaram a raça de cachorros São Bernardo, especialistas em procurar peregrinos perdidos no gelo).

Lembrei-me dessa história numa viagem recente, em que, atravessado o túnel do Mont Blanc, desci até Torino. Repeti uma brincadeira com a qual, criança, enganava o tempo, sentado no banco traseiro do carro: tentava contar, ao longo da estrada, as fortificações ou suas ruínas. São muitas, algumas bem antigas. Ora, os exércitos invasores que desceram por aquele caminho foram poucos. Fora talvez Anibal, só houve a descida de Napoleão, em 1800. No mais, foram bandos -grandes ou pequenos.

Igual, as fortificações não barravam o caminho: exércitos e bandos podiam facilmente desviar. Então, por que erguer torres e castelos? Desde criança, inventei uma explicação, que meus amigos medievalistas parecem confirmar. Naqueles séculos perigosos, as pequenas comunidades viviam arrancando sua subsistência à terra e sem poder recorrer a ninguém que as defendesse quer seja pela distância (fazer o quê? Mandar alguém correndo para Torino?), quer seja pela incerteza dos laços (a quem caberia proteger a gente: ao bispo de Aosta? Ao emperador, na PQP?). Quem tivesse um mínimo de meios e braços construía uma torre; enxergar de longe a chegada dos saqueadores significava ganhar o tempo para esconder a família, os bichos e os grãos para semear no ano seguinte. Na torre e na fortificação era também possível se fechar, esperando a horda passar; claro, os vizinhos acorreriam, pedindo e obtendo asilo.

Alguns donos de torres, convencidos de que pode valer a pena arriscar a vida para evitar uma humilhação, encontrariam a coragem de se armar e resistir o suficiente para que a horda do dia preferisse seguir em frente e espoliar outra vila. Pois bem, as elites aristocráticas nasceram assim, de baixo para cima, não por decreto imperial. Certo, mais tarde, um dos valentes decidiu, por exemplo, responder ao apelo de uma cruzada (talvez mais para se vingar dos bandos de Saracenos do que para reconquistar a terra santa) e acabou ganhando um título de algum soberano. Mas, isso, só mais tarde.

Em suma, mais de mil anos atrás, liderar significou ter a coragem de proteger os indefesos (essa é, aliás, a ética cavalheiresca originária), e as fortificações serviam para isso. Só depois é que os líderes passaram a exigir "compensações" por sua liderança (impostos, privilégios etc.): as fortificações, de repente, serviram também para defender o aristocrata contra seus próprios sujeitos, caso eles se rebelassem.

Mas essa época também passou (em termos). Veio (e ainda dura) o tempo dos castelos kitsch, que servem para esbanjar e intimidar: "Olhe o tamanho de meus muros, pasme com minha riqueza. Inveje-me, obedeça e faça reverência". Caso não tenha ficado claro, essas reflexões são inspiradas pelo castelo do deputado Edmar Moreira, em São João Nepomuceno, MG (josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/images
/CasteloEdmarMoreiraGde.jpg
). É um exemplo da triste transformação das lideranças (e da gente: afinal, cada época deve ter as lideranças que merece).

ccalligari@uol.com.br

Um comentário:

  1. Caro, Cotardo

    Peço desculpas por entrar em contato por meio do seu blog, mas não tinha nenhum outro meio. Bom, sou jornalista e estou fazendo uma matéria sobre Psicologia para o Guia do Estudante, da Ed. Abril e gostaria de entrevistá-lo.
    Bom, caso se interesse, meus contatos são: 11-8543-9143 ou gabi_filan@hotmail.com
    Seria ótimo receber uma resposta sua,

    Abs, Gabrielle Navarro

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