Meus votos de um Ano Novo corajoso, sem as pequenas complacências do nosso dia-a-dia |
Viggo Mortensen é o professor Halder, que, na Berlim dos anos 1930, ensina Proust na universidade e se deita regularmente no divã de um psicanalista freudiano. Junto a seu psicanalista (que é judeu e é também seu melhor amigo), Halder observa o nazismo incipiente com um sarcasmo que se torna desgosto quando os livros de seus autores preferidos são destinados à fogueira.
Em suma, tudo prepara Halder para ser um dissidente (eventualmente morno e pouco heroico, mas, mesmo assim, um dissidente). Ora, eis que, um belo dia, a Chancelaria do Terceiro Reich se interessa por um romance que Halder publicou sem grande sucesso. Nele, é narrada a história de um homem cuja amada sofre de uma doença terminal; por amor, o homem aceita ajudá-la a pôr fim a seus dias. A Chancelaria pede a Halder um ensaio que sirva de fundamento moral para os projetos de "eutanásia" que o regime nazista, "caridosamente", está concebendo para doentes mentais e deficientes graves -na verdade, para todos os "subumanos". Halder não quer o mal de ninguém -ainda menos o de seu amigo judeu. Mas, aos poucos, ele é enredado numa malha de sentimentos pequenos, banais e dificilmente resistíveis: vaidade, ambição, medo e, talvez sobretudo, preguiça e inércia.
Tornando-se membro do partido e da SS, Halder pode festejar sua promoção: ele é agora chefe de seu departamento universitário. Claro, no dito departamento, não se ensina mais Proust. Também, em sua ascensão, Halder substituiu um colega judeu; é uma pena, mas, afinal, se não fosse Halder, seria outro, não é? Assim, à força de covardias aparentemente triviais, homens "bons" e comuns se tornam cúmplices de horrores dos quais, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que "não sabiam", "não imaginavam" nada disso.
Ou, melhor ainda, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que, se tivessem sabido, se tivessem sido informados, aí sim, eles, "obviamente", não teriam concordado, sua oposição teria sido explícita e vigorosa, mesmo que isso colocasse a perder sua carreira e sua vida. Alguém observará: o fascismo e o nazismo foram derrotados na Segunda Guerra Mundial, e o sistema soviético desmoronou com o Muro de Berlim -por que é que a gente se debruçaria a esta altura sobre a facilidade de nossa complacência com os totalitarismos?
Seria possível responder que a lista é longa dos totalitarismos, grandes e pequenos, que continuam vivos ainda hoje, e não muito longe de nossa casa. Mas o mais importante é que a complacência com o totalitarismo segue sendo a chave mestra que explica quase todas as patologias de nossa relação com as coletividades (nações, torcidas, religiões, culturas, partidos etc). Claro, pertencer a um grupo e se deixar levar por ele é sempre menos cansativo do que decidir por nossa conta. A ponto que as razões para aderir ao grupo se tornam indiferentes: o que importa é o conforto que o grupo oferece a seus membros.
Em outras palavras, para não ter que pensar e agir sozinho, o homem "bom" topa qualquer parada. Por exemplo, pertencer ao partido nazista alivia seriamente meu dever (incômodo) de pensar e agir segundo meu foro íntimo; aceito ser antissemita, homofóbico, defensor da supremacia ariana etc. tanto mais facilmente que tudo isso, no fundo, pouco me importa: é apenas um pedágio que pago para ser membro do clube.
Paradoxo crucial: um grupo pode se unir ao redor de uma ideologia ou de uma convicção na qual quase nenhum de seus membros, em sã consciência, acredita, mas que todos compartilham apenas PARA constituir um grupo -ou seja, pelo prazer de sair quebrando vitrinas, linchando negros e "bichas", torturando calouros, apedrejando o ônibus da torcida oposta. E qual é esse "prazer"?
Simples, é o prazer de esquecer a dificuldade de viver, tirando das costas o fardo e a responsabilidade de julgar com a nossa cabeça. Pois bem, aqui vão meus votos de um Ano-Novo corajoso, livre das pequenas (e terrificantes) complacências do nosso dia-a-dia.
Caro Contardo,
ResponderExcluirsou aluna do quinto ano de Psicologia e sua fã há tempos. Já li Cartas a um jovem terapeuta, seu livro sobre adolescência e sou fã de seus artigos. Minha tese será sobre Harry Potter e o adolescente do mundo real, e eu me inspiro no seu modo de ver os filmes e livros como forma de compreender melhor a mente humana. Meu projeto de férias será analisar psicanaliticamente alguns filmes que eu amo, como Edward mãos de tesoura, Titanic e O Fabuloso Destino de Amélie Poulin.
Desejo que 2009 seja intenso e pleno, em todos os sentidos!
Tudo de bom!
Eu terminei de ler o seu livro, acho que o mais recente, "O conto do amor". Passei apenas para dizer que é um bom livro, gostei bastante. Até gostaria que tivesse alguma espécie de continuação, quem sabe.
ResponderExcluirVim aqui apenas para lhe dizer que o livro é realmente muito bom, afinal, como Pierre Bayard bem disse na FLIP, qualquer outro tipo de crítica não é o que realmente os autores querem ouvir, não é mesmo?
Abraço.
O que o senhor disse foi simples e cortante. Essa é a melhor maneira de relembrar certos princípos éticos ,de maneira não demagógica,evitando palavras desgastadas como "liberdade".
ResponderExcluirApenas não posso concordar com o senhor quando diz que as crenças não contam. Sem dúvida, o comodismo é um elemento importante,mas o conteúdo da crença também é relevante. Talvez essa seja a consequência mais sombria dessa reflexão: como as crenças podem ser perigosas em si mesmas
Não me parece correto confundir as pessoas que passam por aqui achando que é o Contardo Calligaris e propietário deste blog.
ResponderExcluirSeria pedir muito que isso ficasse um pouco mais claro para os leitores?
Ahei ótimo o artigo e muito verdadeiro. preocupante é porque nem as instituições psicanalíticas se livram dessa!
ResponderExcluirSe há uma coisa a desejar nessa continuação da vida, é que tenhamos coragem. Coragem para enfrentar aquilo que já deveria ter sido enfrentado; coragem para dizer não, coragem para buscar o que realmente queremos; coragem para não nos boicotarmos, não nos acomodarmos em uma vidinha de faz-e-espera e quem sabe acontece?! Coragem! Coragem para dançar junto, para sentir um outro corpo no mesmo compasso. Nada de jogos. Nada de dois pra lá, dois pra cá. Bambayuque só na música. Antes de mergulhar, é preciso coragem para o pequeno vôo que vai do chão à flor da água.
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