A Itália ganhou a guerra dos anos 70: a República se manteve sem deixar de ser Estado de Direito |
QUANDO SAÍ de férias, o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) tinha negado o status de refugiado político a Cesare Battisti, o foragido da Justiça italiana preso no Brasil em 2007, num quiosque de Copacabana (esse detalhe deve ter revoltado mais de um, na Itália: "Matou meu pai, meu marido, meu amigo, e agora toma água de coco na praia?").
Durante os ditos anos de chumbo italianos, Battisti, 54, foi membro dos PAC (Proletários Armados para o Comunismo), um grupinho ideologicamente pouco expressivo, mas muito violento. Em 1981, sem ser acusado de nenhum homicídio específico, ele foi condenado a 12 anos de prisão; fugiu para o México e, logo, para a França. Quando a França mudou sua política de asilo aos terroristas foragidos, Battisti veio ao Brasil, com documentos falsos.
Entretanto, Pietro Mutti, chefe dos PAC, foi preso na Itália e, para evitar a prisão perpétua, escolheu a "delação premiada". Na delação premiada, os acusados, para se salvarem, denunciam outros culpados, e é frequente que eles "ferrem" logo os foragidos, que estariam "a salvo" (esse era o caso de Battisti). Agora, sem a delação premiada, a polícia italiana não teria desmanchado as organizações terroristas dos anos 70 nem marcado pontos no combate contra as máfias.
Enfim, o "arrependimento" de Mutti levou a novos processos, nos quais Battisti foi condenado por seu envolvimento em quatro homicídios -dois eram execuções de comerciantes que tinham "ousado" resistir aos assaltos pelos quais os PAC "arrecadavam" fundos.
Bem no dia de minha volta ao Brasil (15 de janeiro), eis que Battisti estava nas primeiras páginas da imprensa italiana, num coro de indignação: Tarso Genro, ministro da Justiça, acabava de conceder asilo a Battisti, revertendo a decisão do Conare.
Deixo de lado o debate jurídico. O que mais fere os italianos é a ideia de que, segundo o Brasil, Battisti, voltando para a Itália, correria perigo de vida; como se o Estado italiano fosse um bandido, pronto a eliminar restos incômodos de seu passado.
Há, nessa ideia brasileira, uma projeção: nos anos 70, a Itália teria sido uma ditadura, como o Brasil.
Essa visão da Itália, além de errada, é cúmplice do próprio ideário dos anos de chumbo. Pois, nos anos 70, foi graças à visão de um Estado bandido que os terroristas italianos, de esquerda e de direita, justificaram seu ódio pelo que lhes parecia ser a "mediocridade" democrática.
Neofascistas ou "revolucionários", eram adolescentes enlouquecidos que queriam vidas e mortes "extraordinárias". Atiravam em sindicalistas e comerciantes ou colocavam bombas nos trens para acabar com a "normalidade" cotidiana que receavam para seu próprio futuro; e juravam que era para lutar contra a opressão do Estado.
Hoje, é possível dizer que a Itália ganhou a guerra dos anos de chumbo: a jovem República se manteve sem deixar de ser um Estado de Direito. Quem pensa assim?
Acaba de sair um livro de Adriano Sofri, que foi (ele sim) uma figura crucial e pensante daqueles anos, líder de Lotta Continua, acusado como mandante do homicídio do comissário Luigi Calabresi e condenado a 22 anos de prisão. Em "La Notte che Pinelli" (ed. Sellerio), Sofri reconstitui a história da investigação depois do atentado de Piazza Fontana, em Milão, em dezembro de 1969 (bomba que foi o primeiro ato dos anos de chumbo).
O comissário Calabresi seguiu a pista anárquica -errando, pois a bomba (entendeu-se mais tarde) era de direita. O anarquista Giuseppe Pinelli, questionado, "jogou-se" da janela do quarto onde estava sendo interrogado. Lembro-me bem: Pinelli, para todos nós, "tinha sido suicidado".
Junto com o corpo de Pinelli, naquela noite, ruiu a confiança no Estado. Ou seja, a bomba surtiu o efeito desejado: durante décadas, a democracia pareceu ser apenas o disfarce de uma dominação brutal e escusa, que legitimaria o combate armado. Calabresi, um policial íntegro, não foi responsável pela morte de Pinelli, mas foi assassinado, em 1972, depois de uma campanha de imprensa que o culpava.
Com coragem admirável, Sofri escreve o que talvez venha a ser o melhor epitáfio dos anos de chumbo: "Não me sinto corresponsável por nenhum ato terrorista dos anos 70.
Mas do homicídio de Calabresi, sim, por ter dito ou escrito ou por ter deixado que se dissesse e se escrevesse "Calabresi, você será suicidado'".
ccalligari@uol.com.br
Pois é, Calligaris dá a entender sua posição: ele é a favor da deportação do antigo adolescente que lutou contra a democracia e contra a mediocridade, igualado, nesse artigo, a um fascista que explode bombas e o delegado vai na pista errada (por pura ingenuidade). Os temores de Battisti não são infundados...
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