quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

O saber dos poucos e o dos muitos


Na era do darwinismo digital das idéias, o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço

NAS ÚLTIMAS semanas, revisei manuscritos em inglês e em português. Em português, sou enganado pelo meu passado francófono. Em inglês, meu ouvido está enferrujado.


Nos dicionários, a gente nunca encontra exemplos que confirmem exatamente a legitimidade da expressão que queremos usar. Ou, pior, a gente confia em exemplos antigos e acaba usando expressões esquisitas porque Machado já as usou. Fazer o quê? Posso recorrer à internet.

Quero saber se uma regência nominal é "boa"? É só digitá-la entre aspas na barra do Google e repetir a experiência com regências alternativas. Adotarei a mais usada.

É claro, dessa forma, a freqüência do uso sempre valerá mais que a regra. Mas, afinal, em matéria de gramática, o que é a regra, se não a formalização do uso?

Por esse caminho, a longo prazo, acabaremos escrevendo à força de clichês, numa língua empobrecida. Não seria muito grave (sempre haverá poetas para inventar novos jeitos de se expressar) se uma coisa parecida não acontecesse com as idéias. Como assim?

Saiu, em 2007, "The Culture of the Amateur" (a cultura do amador), de Andrew Keen. Keen não é um tecnófobo; ao contrário, é uma figura do Vale do Silício e colabora com publicações on-line. Apesar disso (ou por causa disso), ele escreveu uma ata de acusação contra a constituição e a difusão do saber na internet.

Resumindo: estamos na era do darwinismo digital das idéias, em que o jeito de sobreviver é fazer barulho, ocupar espaço. O sonho de uma informação produzida pelos próprios cidadãos, sem intermediários, desaguou no pesadelo de centenas de milhões de cidadãos escrevendo indiscriminadamente sobre qualquer aspecto do passado, do presente e do futuro do mundo (segundo os cálculos de Keen, nasce um blog a cada segundo).

Nunca foi tão fácil plantar notícias falsas e criar consensos ao redor de opiniões estapafúrdias: a difusão multiplica a crença, e a crença dos muitos vira autoridade. Um exemplo: logo depois da inundação de Nova Orleans, as notícias sobre estupros e assaltos no Superdome (onde se hospedavam os refugiados) foram plantadas na net; os jornais acreditaram e repercutiram.


A legislação está perplexa e impotente: mesmo nos EUA, onde é fácil perseguir a imprensa escrita por calúnia, é quase impossível se defender das "notícias" on-line. Quem dispõe de meios técnicos básicos pode manipular qualquer informação, destruir impunemente a reputação de um candidato e por aí vai.

Prova pelo contrário: nos EUA, nas pós-graduações em jornalismo, é regra que nenhum fato pode ser considerado conferido só por ter sido "encontrado", mesmo repetidamente, na internet. As próprias páginas on-line dos jornais são suspeitas: um hacker médio consegue facilmente construir uma "sombra", que imita perfeitamente a página que você imagina estar consultando.


Recebi recentemente, por e-mail, uma coluna "minha" que nunca escrevi. No e-mail, ela aparecia como um "copia e cola" da página on-line do caderno Ilustrada da Folha da quinta anterior. Fato curioso: o texto não afirmava nada de extravagante, nada que eu não pudesse assinar.


Em suma, Keen tem razão. Seus alertas contra o "saber" duvidoso espalhado pelo Google, pela Wikipédia e pela simples proliferação da rede são justificados.

No entanto, seu livro lembra os gritos de alerta que surgiram, no começo do século 19, contra as possíveis perversões da democracia (e, por exemplo, o barateamento do custo da impressão de libelos anônimos). A idéia era que o clamor dos muitos emudeceria a voz dos poucos sábios que, de fato, sabem do que eles falam.

Não há como discordar. Mas resta que, a cada vez que encontro um argumento contra a desordem produzida pela livre e louca circulação de informações e pensamentos, ocorre-me o seguinte: num tribunal, se você for processado um dia, por quem preferirá ser julgado?
Pela expertise (sem ironia) de um juiz ou pela atrapalhada mistura de razões, convicções e sentimentos que animam os membros de um júri popular?

Eu preferiria o júri. Assim como ainda prefiro a bagunça da internet ao privilégio exclusivo de autoridades instituídas. Desejo a todos um 2008 fascinante, confuso e variado como a net -apenas corrigido pela capacidade (e o prazer) de separar, de vez em quando, o joio do trigo.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Presentes para as festas

Nossas tentativas de entender o mundo sempre oscilam entre "zoom in" e "zoom out"


TENHO UM carinho especial pelos livros de imagens de Istvan Banyai.


Dois estão disponíveis no Brasil: "Zoom", em sua 16ª reimpressão (Brinque-Book), e "O Outro Lado", que acaba de ser publicado (Cosac Naify). São livros sem palavras, em que a série de imagens constitui uma história e, ao mesmo tempo, uma reflexão.Nesta época de amigos secretos e de propósitos para o Ano Novo, esses dois pequenos livros são o brinde que mais gosto de oferecer. Além de agradar (espero) a adultos e crianças, eles dizem algo essencial sobre minha maneira de pensar e de viver, ou melhor, sobre como gostaria de conseguir pensar e viver. "O Outro Lado" é, dos dois, o mais fantasioso e, talvez, o mais complexo.

À força de folheá-lo, cheguei a este resumo de sua sabedoria:
1) sempre há um outro lado;

2) vale a pena, em cada situação, olhar para nós mesmos do ponto de vista daqueles que estamos observando;
 
3) esse esforço não é apenas um jogo no qual brincaríamos de passar de um lado ao outro do espelho;
 
4) tampouco trata-se apenas de saber se colocar nos sapatos dos outros (o que já não seria mal);
 
5) os desenhos revelam que, quando a gente se desloca para o lugar dos outros, quando a gente se mexe para "o outro lado", algo muda: o resultado final não é só a mesma cena vista de ângulos opostos, mas é, de repente, uma nova cena.

Veja se você concorda. "Zoom" é de uma leitura mais imediata, mas não por isso é menos rico. Para não estragar o prazer dos leitores, invento uma seqüência parecida com a do livro, mas diferente dela: no começo, você vê alguém de costas, sentado à frente de uma tela de computador, e imagina que esse seja o cenário da história que começa.

O zoom, afastando seu olhar, amplia o campo visual, e eis que aparece o seguinte: aquele cenário inicial é uma propaganda de informática numa revista que está nas mãos de alguém sentado na sala de espera do dentista. Antes de decidir que esse seria, então, o cenário da história, espere: o zoom vai recuar de novo.

E por aí vai. "Zoom" pode ser lido do começo ao fim (sucessão de ampliações do campo visual - "zoom out") ou do fim ao começo ("zoom in": aproximação progressiva do nosso olhar, que, portanto, enxerga de maneira cada vez mais detalhada, mas também com cada vez menos compreensão do conjunto, que se perde a cada aproximação).

Para quem lê do começo ao fim, o livro vale como uma meditação apaziguadora sobre a pouca relevância das pequenas coisas nas quais encalha o narcisismo da gente -a começar pela nossa própria pessoa. Ele lembra um pouco aquelas fantasias por meio das quais as crianças tentam aliviar o fardo do olhar dos pais, que permanentemente tenta convencê-las de que elas são seres únicos e extraordinários.

Nessas fantasias, as crianças imaginam, por exemplo, que nosso "universo" seja apenas um viveiro de bactérias no ventre de um gigante -os terremotos e as inundações sendo, respectivamente, acessos de tosse ou bebedeiras de nosso hóspede desmedido. E não acaba assim: o gigante, por sua vez, sem se dar conta, poderia ser um vírus no corpo de um supergigante, que, por sua vez... Mas, fora esse exercício salutar, que encolhe o narcisismo (ele sim, gigantesco) do qual sofremos normalmente, "Zoom" é também uma espécie de meditação, por assim dizer, cognitiva.

Explico. Nossas tentativas de entender e explicar o mundo estão sempre oscilando entre um "zoom in" e um "zoom out". Ou seja, entre a aproximação máxima que nos permite encontrar a causa de nossos males no microscópio (invasores invisíveis, genes, cromossomos etc.) e a distância máxima que nos leva a procurar a explicação do que acontece, por exemplo, na disposição dos astros na hora de nosso nascimento ou no dia de hoje.

Com isso, alimentamos oposições, quase sempre estéreis, entre explicações pelo infinitamente pequeno e explicações pelo quadro mais amplo -no meu campo, entre a descrição da química invisível que regula nossa mente e a consideração de eventos externos que nos afetam.

Meu propósito, para o ano que vem, é que a gente não fique travado carregando na mão apenas duas objetivas separadas, uma macro e uma teleobjetiva, mas que estejamos dispostos a acionar constantemente o nosso zoom -"zoom in" e "zoom out".

E também, quase ia esquecer, que sejamos capazes de enxergar sempre "o outro lado".

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Os novos janízaros

A assimilação cultural pode ser desejada, mas é sempre vivida como traição e violência

A REVISTA "Foreign Affairs" está publicando os programas de política estrangeira dos candidatos à presidência dos EUA (no número de novembro/dezembro 2007, foi a vez de Hillary Clinton e John McCain).
Os candidatos têm idéias diferentes sobre o futuro do Iraque, a condução da guerra contra o terror etc., mas todos compartilham uma preocupação com a "idéia americana".
Por exemplo, Hillary Clinton cita um discurso famoso de Daniel Webster, que, em 1825, assinalava que os EUA deveriam cuidar não de seu poder, mas do poder da "idéia americana", segundo a qual "com sabedoria e conhecimento, os homens podem governar a si mesmos" (resumo perfeito do que há de melhor na modernidade ocidental).
Em suma, os presidenciáveis discordam na avaliação das políticas que enfraqueceram a autoridade moral dos EUA. Mas todos querem restaurar o caráter exemplar da experiência norte-americana.
A lógica atrás dessa urgência é esta: "eles" nos odeiam porque nos julgam por alguns atos errados e não pelo que somos; é preciso lembrar que, aos trancos e barrancos, continuamos os mesmos que inventaram e defenderam a democracia e a liberdade do indivíduo, contra inimigos externos e internos. É preciso lembrar que somos os mesmos que inventaram narrativas que alimentam os sonhos do mundo inteiro.
Parece uma boa estratégia para captar simpatia, mas é fundada numa ingenuidade da razão. Explico.
Em geral, diante de qualquer outro que tenha valor de exemplo para nós, somos, no mínimo, ambivalentes. Ou seja, podemos endereçar a esse outro pedidos de ajuda e até de adoção, mas também queremos derrubá-lo. Por quê? Porque a sedução que o exemplo exerce sobre nós é vivida como uma violência que nos incita a "trair" nosso jeito habitual de ser, nossa inércia. De fato, odiamos, no exemplo, nossa própria vontade de igualá-lo.
A todos (não só aos presidenciáveis americanos), recomendo a leitura de um maravilhoso pequeno romance, "O Fundamentalista Relutante", de Mohsin Hamid (ed. Alfaguara). O autor (assim como o protagonista do livro) é muçulmano paquistanês, estudou nas melhores universidades americanas e foi consultor em Nova York.
O romance (em forma de monólogo endereçado a um americano, numa cidade paquistanesa) joga uma luz singular sobre o enfrentamento entre o Islã e o Ocidente e, bem além disso, sobre o conflito que surge DENTRO de cada cultura e de cada sujeito quando seduzidos e conquistados pela modernidade ocidental.
Num trecho do livro, o protagonista lembra a história dos janízaros, corpo de elite do exército do sultão, composto de crianças cristãs levadas como escravas e educadas na lei islâmica.
O que teria sido da legendária fidelidade dos janízaros se eles tivessem sido capturados quando já adolescentes ou adultos? Ou se fossem criados mantendo um contato constante com suas famílias e sua cultura de origem?
O sultão não faria uma besteira dessas. Mas é o que o Ocidente faz a cada dia, integrando (alistando) indivíduos pelo mundo afora. O Ocidente aposta na idéia "razoável" de que o charme da liberdade individual e as vantagens materiais do "progresso" amenizem ou compensem, em seus "novos janízaros", qualquer sensação de que, ao integrar-se, eles trairiam suas origens. É uma aposta perdedora.
O novo janízaro pode desejar ardentemente sua "conversão" cultural, mas o modelo segundo o qual ele entenderá e justificará sua mudança é o do escravo arrancado à força de sua terra, de seus costumes e de sua família. O ódio contra a cultura que assimila será tanto mais violento quanto mais a assimilação for fruto de uma escolha e de uma ambição do próprio sujeito que se integra (a tropa de elite dos terroristas, desde o 11 de setembro até os últimos atentados de Londres ou da Escócia, é composta por sujeitos bem integrados na sociedade ocidental).
Nota aos presidenciáveis americanos: na era da globalização, ser símbolo e exemplo da cultura dominante significa também, inevitavelmente, constituir-se como objeto de ódio. A expansão do individualismo ocidental é provavelmente sem volta, mas continuará produzindo, durante um bom tempo, novos janízaros raivosos -revoltados contra a integração que eles mesmos desejam e que, justamente por isso, parece-lhes constituir uma traição dos seus e de si mesmos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

"A Vida dos Outros"

O mistério é a banalidade do bem: por que alguns encontram a vontade de resistir ao horror?

É UMA HISTÓRIA que já contei, mas não tenho como evitar esta breve repetição. Anos atrás, defendi uma tese de doutorado sobre a questão seguinte: como é possível que homens quaisquer, sem nenhuma predisposição moral ou patológica, homens como você e eu, possam se tornar algozes?

O exemplo central da tese eram os inúmeros sujeitos que, durante o nazismo, atuaram, direta ou indiretamente, como agentes de extermínio.

Excluí a minoria que era motivada por uma certeza ideológica e os pouquíssimos sádicos, que, aliás, eram descartados pelo próprio processo seletivo dos SS. Também confirmei que, no caso da "tarefa" genocida, as punições para quem não obedecesse às ordens eram mínimas, se não nulas.
Sobraram-me, então, batalhões de reservistas, pais de família, "brava gente", provavelmente animados pela mesma moral básica que todos compartilhamos. Como explicar sua complacência e seus atos?

Cheguei a esta resposta inquietante: qualquer um (ou quase) pode se esquecer de sua humanidade não por convicção nem por crueldade ou por medo, mas, simplesmente, pelo descanso que ele encontra na obediência, no sentimento de fazer parte de uma máquina da qual ele pode ser uma pequena engrenagem. Desejar, pensar e agir como indivíduo é penoso; muito mais fácil é renunciar à subjetividade (sempre atormentada) para transformar-se em burocrata do mal.

Meus argumentos convenceram os que os leram. Mas fiquei com uma pergunta: tinha jogado um pouco de luz sobre a "banalidade do mal" (como dizia Hannah Arendt), mas o que continuava misterioso era a banalidade do bem. Entendia como milhares de homens comuns puderam se tornar algozes; não sabia por que alguns, nas mesmas condições, tinham encontrado a vontade de resistir.

Não penso nos que, animados por seus ideais, levantaram as armas ou a voz contra os totalitarismos do século 20. Gostaria de entender os pequenos gestos de resistência que surgiram do nada, sem uma motivação que fosse clara para o próprio agente.

Gostaria de entender o fascista simpatizante que, um dia, no meio de uma batida policial, escondeu um judeu, um homossexual ou um resistente. Ou o burocrata que, de repente, apagou o nome de uma família de uma lista de deportação ou avisou alguém que ia ser preso, para que fugisse a tempo.

No nosso cotidiano imediato, na esquina de casa, por que, às vezes, se abrem frestas de humanidade e resistência na parede uniforme da complacência?

Estreou, na semana passada, "A Vida dos Outros", o filme alemão, de F. H. von Donnersmarck, que foi Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007.

Os fatos narrados acontecem durante os últimos anos da Alemanha Oriental, um regime talvez inigualado em seu caráter totalitário e policial.

Claro, é uma história de homens transformados em burocratas sinistros pela vontade de impor seu capricho aos outros e, sobretudo, pelo vazio de sua vida. Mas é também a história do ato de coragem repentino (pequeno ou grande, depende do ponto de vista) de Gerd Wiesler, um oficial da Stasi, a polícia do regime.

Saí do cinema me perguntando o que, no filme, tinha motivado a insubordinação de Wiesler. Foi a descoberta das razões sórdidas de seus superiores? Foi a simpatia por suas vítimas ou, quem sabe, o amor por uma delas? Foi a leitura de um poema de Brecht? Ou a escuta de uma sonata? Ou talvez a comparação entre a miséria silenciosa de sua existência e o ruído de amores, conversas e idéias na vida dos que eram objetos de sua escuta contínua?

Numa cena tocante do filme, Wiesler chega em casa (uma espécie de protótipo do anonimato), cobre seu espaguete com extrato de tomate frio e senta diante do televisor que transmite crônicas políticas do regime. Há, na vida de Wiesler, uma irrelevância e um deserto afetivos que são o próprio estigma da complacência burocrática, mas que talvez sejam, ao mesmo tempo, a causa de uma vontade inesperada de fazer, por uma vez, a diferença, de se permitir um ato que valha a pena ser lembrado e contado. Raramente assisti a um filme que, de maneira discreta e humilde, me ajudasse tanto a entender o que, de repente, no marasmo, pode nos devolver nossa humanidade e nos levar a fazer a coisa certa.

PS: O livro de José Saramago mencionado na coluna passada, "O Conto da Ilha Desconhecida", foi publicado em 1998 e reimpresso recentemente.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Imagens a bordo de um táxi

Como nas eleições, as pessoas preferem lidar com complôs do que reconhecer o seu próprio destino

1. É frequente que o primeiro da classe, aquele que estúpida e invejosamente os outros chamam de CDF, um dia seja seduzido pelo malandro da classe e acabe aceitando, por exemplo, de acender com ele um cigarro na hora do recreio. Normalmente, o primeiro irá sozinho para a secretaria, pois o malandro saberá cair fora.

É banal que, na adolescência, um menino suponha que a glória social, aquela que lhe abriria as portas do mundo dos homens verdadeiros (ironia), seja uma transgressão, mesmo e sobretudo se descoberta e devidamente punida. Qual melhor marca do macho do que uma tatuagem de presidiário?

Assim, a única questão séria que coloca a recente história do ex-ministro Ricupero concerne não a ele, nem ao que ele disse (que, na verdade, para quem leu a íntegra, é pouca coisa), mas ao nosso país. Que tipo de imagem de virilidade nossa cultura promove, se, para se fazer valer frente a um jornalista –membro de sua família–, um ministro escolhe, como forma de cumplicidade, aparecer e se dizer mais malandro do que ele é?

2. Domingo, no começo da tarde, em Porto Alegre, vou para o aeroporto. Com o motorista de táxi se estabelece uma cumplicidade: juntos, lamentamos as coisas que, supõe-se, ambos adoraríamos estar fazendo. Entoamos um coro sobre os prazeres dos intermináveis churrascos caseiros do domingo, a cervejinha, a costela e por aí vai.

De fato, se ele está trabalhando e eu viajando, talvez na verdade ele compartilhe comigo a ojeriza às conversas vazias de tios e tias, uma antipatia certa pela costela gorda e em geral por toda carne assada coberta (contra qualquer lógica culinária) de sal grosso, e talvez enfim deteste a estupidez e o torpor desta caricatura de descanso.

Mas a imagem do churrasco é o lugar comum do qual dispomos, às pressas, para comungar.

O catálogo das imagens, que constituem os estereótipos comuns do prazer como do dever, é o dicionário dos valores dominantes, a lista, não necessariamente dos deuses aos quais sacrificamos, mas dos deuses em cujo culto nos reconhecemos. O acordo tácito, subentendido sobre estas imagens cimenta nossa vida social. E comanda uma série de escolhas, naturalmente.

3. Depois de descer em São Paulo, outro táxi e outro motorista. As eleições monopolizam a conversa. Milagrosamente, entre Guarulhos e a avenida Faria Lima, ele consegue conciliar uma eloquente indignação contra a classe política corrupta, negligente da coisa pública, desprovida de toda moral republicana, com um irreverente e malandro elogio da sonegação.

Nenhuma contradição: as duas imagens coexistem no céu dos valores sociais. A contradição só surgiria se a referência comum que sua conversa procura fosse, não uma imagem, mas um símbolo qualquer. Em outras palavras, se a referência procurada fosse um valor abstrato, aí a moralidade seria contraditória com a malandragem. As imagens, aparentemente, desconhecem estas dificuldades lógicas. Cada uma vale por si só, à simples condição de ser coletivamente admirada.

4. De novo indo de táxi, inúmeras vezes desde o lançamento do Plano Real, volta exatamente a mesma questão: ``Você acha que vai dar certo?'' Não é uma questão que mobilize um critério científico ou moral (se tal fosse o caso, ela se formularia: ``você acha que o plano é ou está certo?''). Também não é um esforço da imaginação para entrever futuros possíveis (que se formularia: ``no que você acha que poderia dar?''). Qualquer uma destas duas versões da pergunta, aliás, suporia um conhecimento e uma experiência do plano, assim como da realidade que ele pretende transformar.

De fato, a pergunta tantas vezes repetida reduz o futuro a uma simples aposta, torna a realidade uma espécie de absconsa estranheza sobre a qual só um lance de sorte poderia agir, e enfim necessariamente transforma o ministro e candidato em um santinho.

A coisa vale, aliás, para todos os candidatos: qual é o santinho que dá sorte? As imagens –banalidade, esta, repetida até o enjôo em época de eleições– prevalecem sobre critérios e projetos. Menos banal é notar que a prevalência do santinho implica uma dupla desistência: espera-se que a realidade mude por milagre e deixa-se de imaginar o futuro.

A imagem, com efeito, abole o tempo. Ela é um ato de fé em uma espécie de eterno instante, como nos devaneios dos adolescentes que podem se imaginar adultos conformes ao ideário de todos os sucessos sem pensar um instante no como e a que preço se chega lá.

5. A modernidade é paranóica. Desde o século 18, atrás do destino ou da ordem –tradicional ou sagrada– das coisas, nossa leitura do mundo aprende a descobrir a figura de um semelhante, um homem como nós, que nos oprime. É uma das grandes novidades da Ilustração. Esta nova visão do mundo acelerou a história. Se os artífices de nossas infelicidades são nossos semelhantes, podemos nos revoltar, combatê-los. Mas esta aceleração tem um preço.

A frustração se torna a única falta que reconhecemos: o que não temos é sempre e só aquilo de que um outro nos frustra. Marxismo e psicanálise produziram esforços notáveis para corrigir a tendência. Manifestamente em vão: o capitalismo, complexa ordem de nossas sociedades, continua nos aparecendo como a maléfica invenção dos capitais e nossas dificuldades subjetivas mais frequentemente nos aparecem como a suma aritmética das injustiças que os pais nos fizeram em nossa infância indefesa.

É um bom jeito de tirar o corpo fora. Não somos nunca nós, são os outros. O mundo é o teatro das injustiças que sofremos. De repente, o que ganhamos em perspectivas de ação, perdemos em entendimento e em experiência. Do que acontece somos sempre as vítimas (inocentes).

Assim, por exemplo, é quase unânime o coro das vítimas das mídias nesta última eleição. Com algumas exceções (por exemplo um recente notável artigo de Tarso Genro, na Folha de 7/10), prefere lidar com complôs e manipulações do que se reconhecer envolvidos em seu próprio destino.

Qualquer teoria séria das mídias sugeriria que, na verdade, os meios de comunicação de massa tentam oferecer a seus espectadores, em primeiro lugar, as imagens nas quais estes mais querem se espelhar.

Talvez por isso mesmo, aliás, nossa relação com as mídias seja facilmente paranóica. De fato, as imagens que elas nos apresentam, para que possamos refleti-las como tantos espelhos, acabam nos perseguindo. É em relação a elas que medimos nossa inadequação, elas constituem um assíduo e frustrante dever. Na ausência de princípios reguladores, são a versão moderna do que a psicanálise chama de superego.

6. As dificuldades econômicas do Terceiro Mundo parece que são, desde sempre, responsabilidade do Primeiro e sobretudo dos Estados Unidos. Talvez a responsabilidade não esteja lá onde nossa paranóia a procura e encontra, ou seja, na avidez dos ``banqueiros de Londres'', dos quais já falava Mário de Andrade. Talvez ela esteja na inevitável modernidade de nosso Terceiro Mundo: somos, tanto quanto o Primeiro, dominados por imagens. Mas, à diferença do Primeiro, não produzimos imagens, mas adotamos as do primeiríssimo mundo. Por este caminho, aliás, o próprio Primeiro Mundo como um todo se torna nossa imagem ideal.

Isso é suficiente para que nosso imperativo não seja mais o desenvolvimento, mas a imediata adequação a sua imagem. Assim, não nos desenvolvemos. Nos transformamos em caricaturas de desenvolvidos, logo todos de celular porque não há rede telefônica. A pressão narcísica de uma imagem realizada de desenvolvidos impede e atrasa o desenvolvimento. O imperativo de ``chegar no Primeiro Mundo'' (vide Collor, mas também as ambições, por certos aspectos, do discurso de Celso Amorim na ONU) pode acabar na distribuição de gravatas de Hermès na cestas básicas da LBA.

Em suma, o Primeiro Mundo talvez nos estrangule um pouco ou mesmo muito, política e economicamente, mas sua imagem, que adoramos, faz mais e pior. Ela nos pára no meio do caminho com a ilusão de que uma boa mascarada vale qualquer chegada.

Uma parte da desconfiança ou mesmo do ódio que os EUA, por exemplo, parecem às vezes inspirar no Terceiro Mundo é certamente ódio de nossa própria paixão por sua imagem, que nos persegue.