quinta-feira, 14 de julho de 2005

Londres com Edward Said

Piero Gobetti (um grande intelectual italiano, que morreu aos 25 anos das seqüelas da tortura fascista) pensava que um povo, para existir, deve ter a coragem de contar sua história como uma autobiografia. Por exemplo, o fascismo podia ser mesmo um efeito da "era dos impérios" ou uma "ofensiva do capitalismo" (assim dizia a Terceira Internacional), mas os italianos perderiam sua dignidade e seu lugar no mundo se não reconhecessem que o fascismo era, antes de mais nada, o fruto da vontade de boa parte do proletariado e das classes médias nacionais.

A idéia de Gobetti é parecida com um princípio da prática da psicanálise: somos vítimas de violências e imposições, mas só tomamos conta de nossa vida quando, ao contar nossa história, deixamos de lado a contabilidade dos golpes recebidos para dar destaque a nossas reações, a nossas cumplicidades, a nossas escolhas diante da adversidade. É dessa forma que a história se torna história da gente: autobiografia.

Desde os atentados de Nova York, a maioria dos "ocidentais" (digamos assim, por aproximação) adota pensamentos fáceis: "Alguns árabes odeiam nossos valores", "Uma cultura inimiga nos ataca" ou (versão "progressista") "Eles se vingam com razão dos horrores que lhes fizemos". Poucos se aventuram a reconhecer a história milenar de influências, paixões e fascinação mútua entre Oriente e Ocidente; poucos estão dispostos a integrar o horror de hoje na autobiografia do Ocidente.

Os "orientais" (mesma aproximação) não parecem pensar melhor. Comentando as bombas de Londres, Tariq Ali escreve (Folha, 8/7): "A principal causa da violência é a violência infligida contra os povos do mundo muçulmano". Nessa linha, os sul-americanos deveriam festejar o ataque: chegou a vingança contra "os banqueiros de Londres", que, como aprendemos com Mário de Andrade, são os primeiros grandes responsáveis por nossos males. Os de Nova York, seus herdeiros, já foram punidos, não é? (estou sendo irônico).

Ora, para os orientais, entender os atentados como vingança "lógica" contra a opressão pós-colonial é um desastre: significa viver e pensar sua história como reação forçada à iniqüidade do outro, ou seja, significa relegar árabes, palestinos e, mais geralmente, muçulmanos à função de bombardeiros vingadores, incapazes de história própria (de autobiografia).

É compreensível que os líderes da luta contra o domínio colonial concebessem a história do Oriente como uma reação. Mas se esperava que os fundamentalistas islâmicos reencontrassem a veia de uma "autobiografia" possível; não aconteceu: justificaram seu rigor religioso e cultural como uma defesa da honra que foi ferida no passado colonial, transformaram o islã numa mensagem reativa de vingança.
Nestes dias, reli o livro de Edward Said, "Orientalismo", que, na época de sua publicação (1979), parecia desvendar os bastidores culturais da colonização.

Said apresenta as visões literárias (francesas e britânicas) do Oriente (sobretudo árabe) como expressão de uma vontade imperialista de conquista. O pano de fundo é uma idéia de Michel Foucault: o saber produz poder. Em suma, o Ocidente inventou um saber literário sobre o Oriente para melhor apoderar-se de suas terras e riquezas.

Desde 1979, o livro recebeu uma série de críticas (veja-se o artigo de K. Windshuttle, www.newcriterion.com/archive/17/jan99/said.htm), mas, aquém da discussão acadêmica, fica uma pergunta: por qual estranha redução Said consegue reunir numa mesma empreitada ideológica autores radicalmente diferentes, como Joseph Conrad, Rudyard Kipling e Lawrence da Arábia?

A literatura orientalista é uma viagem da cultura ocidental para seus paraísos perdidos e para o coração de sua próprias trevas. Ela diz pouco sobre a realidade do Oriente, pois narra sonhos e pesadelos que os ocidentais carregam dentro de si: devaneios sobre mundos diferentes e longínquos.

Said desconsidera essa obviedade porque decide entender a literatura ocidental sobre o Oriente (a literatura orientalista) não como um momento das paixões ocidentais, mas como um evento na história do Oriente. Logo ele percebe a literatura orientalista como mais um abuso imposto pelos inimigos ocidentais. Nessa ótica, "As Cidades Invisíveis", de Calvino, não falariam de nosso fascínio pelo mistério da viagem, mas traçariam o mapa de uma futura invasão da China.

Na Folha de sábado passado, Thomas Friedman escreveu: "Só o mundo muçulmano é capaz de derrotar essa seita de morte" [Al Qaeda]. É claro, para acabar com a guerra em curso, o mundo ocidental deve mudar sua conduta geopolítica. Mas é preciso, sobretudo, que o Oriente consiga pensar sua história como autobiografia, se apropriar dela e, portanto, transformá-la. Em suma, é preciso que o Oriente enxergue seus males não só como efeito de injustiças sofridas mas também como fruto da vontade de suas próprias elites e de seus próprios povos.

Nessa tarefa, Tariq Ali e Said não ajudam. Ao escutá-los, o homem-bomba se tornaria metáfora do destino do mundo árabe: uma história reativa sem valor autobiográfico, uma eterna vingança, que é um suicídio cultural.

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