quinta-feira, 28 de julho de 2005

"A Fantástica Fábrica de Chocolate"

O novo filme de Tim Burton, "A Fantástica Fábrica de Chocolate", é delicioso. Há chocolate para todo mundo: para as crianças, para os cinéfilos (hilárias citações de clássicos do cinema) e para os adultos que têm filhos.

A história é conhecida, pois o livro homônimo, de Roald Dahl, é um grande clássico da literatura infantil (ed. Martins Fontes). Willy Wonka vive recluso e solitário em sua fábrica. Um dia, ele decide abrir as portas de seu mundo achocolatado às cinco crianças que encontrarem um convite na embalagem de uma barra Wonka. Uma das cinco ganhará um prêmio especial; as outras, digamos assim, terão o que merecem. Detalhe: na verdade, contando Willy Wonka, as crianças são seis.

A idéia de um país de guloseimas, espécie de Pasárgada onde não conheceríamos frustração alguma, é antiga (vale a pena ler "Cocanha", de Hilário Franco Júnior, Ateliê Editorial). Todos ou quase todos, no mínimo, se lembram do país de Cocanha, onde Pinóquio passa cinco meses longe da presença chata dos adultos e de outros grilos falantes. Ao fim da estada, as orelhas de Pinóquio crescem e se tornam estranhamente peludas. As crianças de Cocanha se divertem à beça, mas são cruelmente punidas: transformam-se em burros.

Na língua portuguesa, "cocanha" é o pau-de-sebo, um mastro untado em cima do qual é colocado um prêmio: tente chegar ao cume, a gente dará risadas quando você aterrissar ruidosamente sobre seu bumbum. É a moral da aventura de Pinóquio em Cocanha: as crianças, quando chegam ao país de seus sonhos (sem adultos para mandar nelas), só fazem besteiras, tornam-se bestas.

E você se lembra de "Struwwelpeter", de Heinrich Hoffmann, com aqueles desenhos terrificantes? A criança que não come a sopa acaba morta e enterrada, a que chupa os dedos é mutilada a golpes de tesoura e por aí vai. Em "Struwwelpeter" não havia Cocanha, mas a idéia era a mesma: o horror espreita as crianças que não escutam pais e adultos.

Ora, a história de Dahl, contada admiravelmente por Tim Burton, é mais sutil. As crianças descontroladas acabam mal, com um certo requinte de crueldade (à la "Pinóquio" e à la "Struwwelpeter"), mas (aqui está a diferença) elas não vão sozinhas para Cocanha (para a fábrica): elas são acompanhadas pelo adulto que mais foi e é responsável por sua educação ou falta de educação.

Em suma, a história não contrapõe os apetites infantis à sabedoria dos grandes, que deveriam domá-los; ao contrário, na "Fábrica", os marmanjos mais insuportáveis são os dignos rebentos dos adultos que os acompanham. O filme funciona como um repertório das aberrações dos adultos em sua relação com as crianças.

Há o menino gordão, filho de uma mãe que decidiu dispensar ao filho uma infinita satisfação oral, do seio à barra de chocolate. Há a menina rica, cujo pai obedece a todos os caprichos da filha. São exemplos de pais preocupados não com o bem-estar dos filhos, mas com seu próprio prazer: quem não sabe dizer "não" goza com a ilusão de sua própria onipotência. "Consigo satisfazer sempre o desejo de meus filhos, produzo filhos sem faltas e sem falhas."

Há a menina que só sonha em deixar seu nome no livro dos recordes e cuja mãe quer uma filha campeã. Há o menino obcecado por videogames e outras tecnologias eletrônicas: as queixas do pai, que não entende a metade do que o filho diz, mal escondem a admiração pelo filho que sabe mais que os adultos. São exemplos em que amar os filhos significa apenas encarregá-los de realizar nossos sonhos frustrados.

Enfim, há o próprio Willy Wonka, cujo pai (não direi como para não estragar a surpresa) queria que o filho fosse a prova da excelência da arte paterna -um pouco como se pais psicanalistas quisessem criar filhos analisados desde nenês, isentos de conflitos e neuroses, monumentos comemorativos da "competência" dos pais.

Resta Charlie. Ele, aparentemente, foi criado da maneira certa. Como? Só duas explicações (o espectador encontrará outras): 1) entre os pais de Charlie vige uma solidariedade amorosa absoluta diante das adversidades, que não são poucas -assim é transmitida uma hierarquia de valores; 2) a família de Charlie inclui (imagem inesquecível) os quatro avós, que não param de falar, deitados numa mesma cama instalada no meio da casa -Charlie não é o porta-bandeira da frustração ou da obsessão de um genitor, ele é o resultado de uma história (polifônica), que lhe deixa a tarefa de ser "ele mesmo".

Sábado passado, num cinema paulistano, na sessão em que o filme é dublado (para as crianças entenderem), esgotaram-se os cadeirões que se encaixam nos assentos e impedem que os mais miúdos sejam engolidos pelas poltronas. Uma funcionária do cinema perguntou gentilmente a uma menina já de bom tamanho se ela poderia sentar como adulta e ceder seu cadeirão a uma criança bem menor. O pai da menina se indignou: "MINHA filha NÃO vai ceder seu cadeirão. O problema é de vocês, encontrem mais cadeirões" (fabriquem mais chocolate?).
Espero que o dito pai tenha tirado algum proveito do filme.

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