quinta-feira, 31 de março de 2005

A música, a letra e as palavras de José Miguel Wisnik

Um colega psicanalista, de nacionalidade francesa, passa pelo Brasil de vez em quando, palestrando. Não sei se ele ainda usa o mesmo estratagema retórico, mas, durante anos, ele começava suas falas pedindo desculpas por não falar a língua do Brasil e afirmando que, embora não entendesse bulhufas, a sonoridade da língua lhe parecia maravilhosa, como o canto variegado dos pássaros da Amazônia.

Os presentes eram seduzidos pela manifestação de simpatia: ele gosta de nossos fonemas, portanto, ele gosta da gente, não é? Alguns ficavam incomodados com o corolário dessa abertura sedutora. Entendiam assim: escutar o que vocês têm para dizer não me interessa, mas adoro ouvir seus garganteados alegres. Quanto ao conteúdo, repitam o que digo; afinal, entre as aves, a mais brasileira não é o papagaio?

Sou alérgico à idéia de que os brasileiros se distinguiriam pela agilidade musical de sua glote. Lembra-me a época em que os italianos, pelo mundo afora, eram contemplados com sorrisos condescendentes por tocarem mandolina e cantarem "O Sole Mio".

Ora, acabo de ler "Sem Receita - Ensaios e Canções", livro que reúne textos, letras e entrevistas de José Miguel Wisnik desde 1989 (acompanha o CD da música composta por Wisnik para o grupo Corpo). Wisnik, como se sabe, é professor de literatura, ensaísta, musicólogo e músico.
O conjunto dos textos celebra a qualidade excepcional da música popular brasileira, que constitui propriamente "um modo de pensar", uma expressão cultural que é, paradoxalmente, ao mesmo tempo popular, refinada e erudita.

Wisnik começa nos mostrando que o destino singular da música popular no Brasil (seu sucesso e sua capacidade de constituir uma mediação com a música erudita e com a cultura mais "alta") já estava anunciado, ou melhor, contido, em "Um Homem Célebre", de Machado de Assis.

Mais adiante, ele nos oferece, por exemplo, uma interpretação do espírito da bossa nova como otimismo que, citando Caetano, contém em si "todos os males do mundo", um "otimismo trágico".

Complemento desse otimismo: o pessimismo, "que Caetano atribui mais de uma vez a si mesmo e aos tropicalistas", um "pessimismo alegre". O otimismo trágico e o pessimismo alegre da palavra cantada e popular falam do estado de espírito de décadas de cultura nacional de uma forma que talvez substitua (numa troca vantajosa) os esforços da alta cultura para definir a nação.

Para quem achasse que essa é a função da música popular em qualquer cultura, Wisnik analisa "A Terceira Margem do Rio", música que Milton Nascimento escreveu pensando no conto de Guimarães Rosa e para a qual pediu a Caetano que escrevesse a letra. Pergunta: "Em que cultura ou em que país (...), o cancionista popular chega a ser o sujeito de uma interpretação vertical de seu maior escritor?".

Num dos ensaios reunidos no livro, "A Gaia Ciência" (que é justamente o saber contido na música popular), Wisnik discute com um livro que publiquei em 1991, "Hello Brasil, Notas de um Psicanalista Europeu Viajando ao Brasil". Recém-chegado, eu tentava conhecer o país que me adotava. O ponto de vista era o do viajante estrangeiro, que entende pela negativa, ou seja, no caso, comparando o Brasil com a Europa e descobrindo as diferenças como se fossem faltas de alguma coisa, e não presença de algo distinto. Wisnik comenta minhas observações sobre as falhas do processo que permite a um povo integrar-se e sentir-se "um" (na época, eu chamava esse processo "umtegração"). Ele escreve: "Não me parece que Calligaris tenha avaliado com atenção o lugar que a canção popular ocupa no processo de "umtegração" brasileira". Logo ele evoca Caetano: "Minha pátria é minha língua/ e eu não tenho pátria/ tenho mátria e quero frátria". É uma resposta a minhas considerações da época sobre a ausência de um pai fundador brasileiro. E Wisnik sugere outra, mais adequada ainda, na letra de "Paratodos", de Chico Buarque: "O meu pai era paulista/ meu avô, pernambucano/ o meu bisavô, mineiro/ meu tataravô, baiano/ meu maestro soberano/ foi Antonio Brasileiro".

Wisnik não está propondo Tom Jobim como pai da nação (embora, nessa função, ele fosse melhor do que muitos outros), mas lembra assim que a música popular talvez seja o campo em que mais se pensou e se pensa o que é ser brasileiro.

Não é por acaso que meu livro de viajante recebeu as críticas mais interessantes (para mim) de Wisnik e do próprio Caetano, em "Verdade Tropical". Para quem, ao interrogar o Brasil, enxergar as falhas sem perceber direito as invenções da cultura nacional, parece que a música popular é um repertório de respostas.

O colega francês do qual falei antes tem razão: os brasileiros cantam bem. Agora, não são exatamente aves, e é bom escutar suas palavras.

Aparte, sobre identidade nacional: li recentemente "Ladrilhadores e Semeadores", de Luiz Guilherme Piva, da Editora 34. É um extraordinário percurso no pensamento brasileiro de 1920 a 1940, quando a questão da identidade nacional brasileira e da modernização ocupava as melhores mentes do país.

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