Pela lei brasileira, o aborto é permitido quando a gravidez coloca em perigo a vida da gestante e quando ela é resultado de estupro.
Na semana passada, o Ministério da Saúde propôs uma nova norma de conduta para os médicos: ao atenderem o pedido de aborto de uma mulher cuja gravidez seja resultado de estupro, eles não precisam exigir que a dita mulher apresente um BO (boletim de ocorrência) policial.
É assim corrigida uma norma de 1998, segundo a qual a apresentação do BO policial era obrigatória para realizar um aborto legal em caso de estupro.
As reações foram as seguintes.
Logicamente, grupos religiosos e cidadãos que, por razões de princípio, se opõem a qualquer tipo de aborto protestaram contra uma norma que facilita o procedimento. Normal e compreensível.
De maneira menos compreensível, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, declarou que a nova norma do Ministério da Saúde não teria base legal. O comentário me pareceu curioso, pois o Código Penal, que autoriza o aborto nos dois casos lembrados, não menciona a necessidade de um BO, ou seja, aparentemente, era a norma anterior que não tinha base legal.
O doutor Isac Jorge Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, manifestou sua preocupação com o fato de que, sem BO, os médicos não terão como saber se houve ou não estupro, e os hospitais se transformarão em "indústrias de abortos". Não acredito que qualquer mulher que tenha ficado grávida sem querer seja uma mentirosa em potencial. Também me pergunto se é necessariamente mais fácil mentir ao médico do que à polícia.
Seja como for, proponho algumas observações à atenção do ministro Jobim, do doutor Jorge Filho e de todos os que acham errada ou inoportuna a nova norma do Ministério da Saúde.
Antes de mais nada, noto que a nova norma propõe uma linha de conduta na aplicação da lei existente. Não vem ao caso, portanto, discutir a própria lei, mas se trata de considerar qual é a melhor maneira de aplicá-la, ou seja, de garantir o direito de abortar quando a gravidez é resultado de estupro.
Agora, para exigir a apresentação de um BO policial como condição para que seja reconhecido o estupro, é preciso desconhecer ou menosprezar singularmente a vida concreta das vítimas.
Há muitas situações em que a vítima ou simplesmente o cidadão ciente de um delito podem decidir que é mais certo e mais justo não comunicar o delito à autoridade policial. Seu filho de 15 anos retirou (ou seja, furtou) R$ 100 de sua carteira para comprar dez baseados, quatro dos quais ele revendeu a amigos no meio de uma festa. Será que você automaticamente fará um boletim de ocorrência e pedirá a prisão do rapaz por furto e por uso e tráfico de drogas? E, sobretudo, como nada prova que a família não esteja mentindo, será que você, médico psiquiatra consultado nessa ocasião pela família, pedirá o BO policial antes de tentar ajudar a família e o rapaz?
Sem recorrer a comparações, é bom lembrar que uma jovem que denuncia um familiar próximo -pai, tio, padrasto- que a estuprou ou que a estupra regularmente é facilmente mandada de volta para casa, onde encara a vingança violenta de seu estuprador, sem amparo nenhum. Muito freqüentemente, na decisão de denunciar, a jovem não encontra nem sequer o respaldo da mãe, cuja única preocupação, às vezes, consiste em preservar seu relacionamento com o pai ou o padrasto.
Sobretudo quando a vítima é menor, é banal que o estuprador seja alguém que a vítima ama e idealiza, por quem ela se sente traída em seu afeto, mas que ela não poderia prejudicar por uma denúncia sem conhecer abismos de culpa que se somariam aos abismos de vergonha que ela já sente por ter sido estuprada.
Uma jovem que foi estuprada por um familiar mais velho tem sua confiança na autoridade radicalmente minada e pode achar difícil, se não terrificante, a idéia de encontrar qualquer representante do poder.
Além disso, muitas vezes, a violência sexual é não apenas uma brutalidade direta e física mas pode ser uma pressão ou uma chantagem afetiva, que arrancam uma espécie de consentimento de tal forma que a vítima não consegue saber se ela deve acusar o estuprador ou se acusar.
Enfim, por mais que as forças policiais brasileiras sejam bem formadas e bem-intencionadas, é necessário pensar no que acontece quando uma mulher se apresenta numa delegacia para denunciar seu estuprador. Alguém garante que o BO de um estupro será sempre, a qualquer hora do dia ou da noite, recebido por uma policial mulher, devidamente formada para oferecer a escuta e o amparo necessários, e que isso acontecerá num lugar separado, fora do alcance visual e auditivo de policiais homens? Ou, então, será que a vítima de estupro "merece" uma dose de escárnio na hora de denunciar seu estuprador? Será que a mulher, uma vez estuprada, perde o direito de preservar seu pudor?
Bem, o ministro Humberto Silva propõe uma nova norma que reconhece a complexidade da experiência concreta das vítimas. Obrigado, ministro.
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