quinta-feira, 7 de abril de 2005

A chacina da Baixada Fluminense e o uso de mercenários

Na noite de quinta-feira passada, dois carros (ao que parece) atravessaram as cidades de Queimados e Nova Iguaçu, na região metropolitana do Rio, espalhando o horror. Não foi uma corrida de loucos ou bêbados atirando pelas janelas. Os carros paravam, e a matança começava, com armas do calibre usado pela polícia. Foram assassinados assim 30 cidadãos, ao acaso. Dez eram adolescentes de idade entre 13 anos e 19 anos.

Até hoje (terça-feira, quando entrego esta coluna), a Polícia Federal investiga a participação ou o envolvimento de 11 policiais militares.

A escolha a esmo das vítimas sugere que não se tratou de uma execução coletiva a mando de moradores preocupados com sua segurança. Ou seja, o episódio é diferente do massacre da Candelária (1993), em que sete crianças de rua foram liqüidadas para "limpar" a área. Difere também do massacre de Corumbiara (1995), em que morreram 70 sem-terra. E difere do massacre de Eldorado do Carajás (1996), em que morreram 19 trabalhadores rurais. Nesses casos, segundo a Pastoral da Terra, os policiais envolvidos agiram como "um poder paralelo em conluio com os fazendeiros".

Tampouco parece que a chacina de quinta passada seja uma vingança, como o massacre de Vigário Geral (1993), quando 21 cidadãos foram assassinados a esmo, mas no intento de vingar a morte de quatro policiais, que tinham sido mortos, no dia anterior, pelos traficantes da favela.

No caso da semana passada, não se conhece uma motivação dessa ordem. Trata-se da atuação de um grupo de extermínio que, pelo terror, quer impor sua presença e sua norma a um bairro. Ou, então, trata-se de policiais que estavam sendo investigados ou punidos por sua conduta violenta e não gostavam dessa medida administrativa: eles teriam massacrado para intimidar a população, sua própria corporação e o Estado.

Nisso, o horror de Queimados e de Nova Iguaçu se parece sinistramente com a atuação, passada e presente (em outras partes do planeta), de milícias e exércitos mercenários.

Pela Itália do século 14, por exemplo, erravam numerosas "companhias de aventura": eram exércitos privados, compostos de soldados profissionais originários de cada canto da Europa. Vendiam-se a quem pagasse melhor e, pelo preço certo, podiam virar a casaca até no meio de uma batalha. Não tinham compromisso algum com as nações que os empregavam e que eles defendiam, porque, simplesmente, eles não faziam parte do povo dessas nações. Os Estados italianos eram mais ricos que populosos. Seus cidadãos estavam mais interessados em enriquecer ou em cultivar as artes do que em correr o risco de morrer combatendo. Os Estados, portanto, pagavam. Caso o dinheiro não alcançasse o valor pedido, ou para complementá-lo, os mercenários se retribuíam saqueando o território dos inimigos do momento. Quando a guerra terminava, ninguém voltava para casa. Os mercenários passavam a saquear por conta própria; freqüentemente, pilhavam o povo pelo qual acabavam de guerrear. Sua violência aumentava sua reputação, seduzindo clientes futuros. Uma sugestão de leitura: "Mercenary Companies and the Decline of Siena" (as companhias mercenárias e o declínio de Siena), de W. Caferro (Johns Hopkins University Press, 1999).

Há um exemplo bem atual de desastre produzido pelo recurso a forças mercenárias. A catástrofe política e humana de boa parte da África de hoje é incompreensível sem considerar os efeitos da proliferação em seu território, desde a Guerra Fria, de milícias e exércitos mercenários. Os estragos produzidos por essas "companhias de aventura" de nossos dias são multiplicados por um contexto em que as diferenças étnicas e tribais impedem que surjam consciências nacionais: os bandos mercenários não pertencem a pátria alguma. Mais uma sugestão: "Mercenaries, the Scourge of the Third World" (mercenários, a praga do Terceiro Mundo), de Guy Arnold (Palgrave Macmillan, 1999).

Qual a relação disso tudo com a chacina de Queimados e Nova Iguaçu?

Os fatos da semana passada revelam que alguns de nossos policiais só são fiéis a seus empreendimentos privados. É claro que deve existir uma vileza específica de seu espírito. Mas resta que, em geral, visto o lugar social que lhes é atribuído por sua remuneração, nossos policiais podem se sentir dissociados da comunidade na qual operam tanto quanto os mercenários medievais ou africanos.

Enquanto os policiais não forem incluídos concretamente no tecido de nossa sociedade, enquanto eles não forem parte de nossa classe média, eles permanecerão, por assim dizer, estrangeiros "econômicos" à nação cujas leis eles deveriam defender. Não pode nos surpreender, portanto, que os piores entre eles ajam como bandos de capangas: afinal, por que reconheceriam a legalidade de uma comunidade que os exclui?

Em suma, o massacre de quinta-feira passada não é essencialmente diferente do saque perpetrado por uma "companhia de aventura" que não gostasse de ser demitida pelos Estados do Papa ou por Florença. Assim como não é diferente da devastação de uma vila por uma milícia africana sem pátria.

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