Um colega psicanalista, de nacionalidade francesa, passa pelo Brasil de vez em quando, palestrando. Não sei se ele ainda usa o mesmo estratagema retórico, mas, durante anos, ele começava suas falas pedindo desculpas por não falar a língua do Brasil e afirmando que, embora não entendesse bulhufas, a sonoridade da língua lhe parecia maravilhosa, como o canto variegado dos pássaros da Amazônia.
Os presentes eram seduzidos pela manifestação de simpatia: ele gosta de nossos fonemas, portanto, ele gosta da gente, não é? Alguns ficavam incomodados com o corolário dessa abertura sedutora. Entendiam assim: escutar o que vocês têm para dizer não me interessa, mas adoro ouvir seus garganteados alegres. Quanto ao conteúdo, repitam o que digo; afinal, entre as aves, a mais brasileira não é o papagaio?
Sou alérgico à idéia de que os brasileiros se distinguiriam pela agilidade musical de sua glote. Lembra-me a época em que os italianos, pelo mundo afora, eram contemplados com sorrisos condescendentes por tocarem mandolina e cantarem "O Sole Mio".
Ora, acabo de ler "Sem Receita - Ensaios e Canções", livro que reúne textos, letras e entrevistas de José Miguel Wisnik desde 1989 (acompanha o CD da música composta por Wisnik para o grupo Corpo). Wisnik, como se sabe, é professor de literatura, ensaísta, musicólogo e músico.
O conjunto dos textos celebra a qualidade excepcional da música popular brasileira, que constitui propriamente "um modo de pensar", uma expressão cultural que é, paradoxalmente, ao mesmo tempo popular, refinada e erudita.
Wisnik começa nos mostrando que o destino singular da música popular no Brasil (seu sucesso e sua capacidade de constituir uma mediação com a música erudita e com a cultura mais "alta") já estava anunciado, ou melhor, contido, em "Um Homem Célebre", de Machado de Assis.
Mais adiante, ele nos oferece, por exemplo, uma interpretação do espírito da bossa nova como otimismo que, citando Caetano, contém em si "todos os males do mundo", um "otimismo trágico".
Complemento desse otimismo: o pessimismo, "que Caetano atribui mais de uma vez a si mesmo e aos tropicalistas", um "pessimismo alegre". O otimismo trágico e o pessimismo alegre da palavra cantada e popular falam do estado de espírito de décadas de cultura nacional de uma forma que talvez substitua (numa troca vantajosa) os esforços da alta cultura para definir a nação.
Para quem achasse que essa é a função da música popular em qualquer cultura, Wisnik analisa "A Terceira Margem do Rio", música que Milton Nascimento escreveu pensando no conto de Guimarães Rosa e para a qual pediu a Caetano que escrevesse a letra. Pergunta: "Em que cultura ou em que país (...), o cancionista popular chega a ser o sujeito de uma interpretação vertical de seu maior escritor?".
Num dos ensaios reunidos no livro, "A Gaia Ciência" (que é justamente o saber contido na música popular), Wisnik discute com um livro que publiquei em 1991, "Hello Brasil, Notas de um Psicanalista Europeu Viajando ao Brasil". Recém-chegado, eu tentava conhecer o país que me adotava. O ponto de vista era o do viajante estrangeiro, que entende pela negativa, ou seja, no caso, comparando o Brasil com a Europa e descobrindo as diferenças como se fossem faltas de alguma coisa, e não presença de algo distinto. Wisnik comenta minhas observações sobre as falhas do processo que permite a um povo integrar-se e sentir-se "um" (na época, eu chamava esse processo "umtegração"). Ele escreve: "Não me parece que Calligaris tenha avaliado com atenção o lugar que a canção popular ocupa no processo de "umtegração" brasileira". Logo ele evoca Caetano: "Minha pátria é minha língua/ e eu não tenho pátria/ tenho mátria e quero frátria". É uma resposta a minhas considerações da época sobre a ausência de um pai fundador brasileiro. E Wisnik sugere outra, mais adequada ainda, na letra de "Paratodos", de Chico Buarque: "O meu pai era paulista/ meu avô, pernambucano/ o meu bisavô, mineiro/ meu tataravô, baiano/ meu maestro soberano/ foi Antonio Brasileiro".
Wisnik não está propondo Tom Jobim como pai da nação (embora, nessa função, ele fosse melhor do que muitos outros), mas lembra assim que a música popular talvez seja o campo em que mais se pensou e se pensa o que é ser brasileiro.
Não é por acaso que meu livro de viajante recebeu as críticas mais interessantes (para mim) de Wisnik e do próprio Caetano, em "Verdade Tropical". Para quem, ao interrogar o Brasil, enxergar as falhas sem perceber direito as invenções da cultura nacional, parece que a música popular é um repertório de respostas.
O colega francês do qual falei antes tem razão: os brasileiros cantam bem. Agora, não são exatamente aves, e é bom escutar suas palavras.
Aparte, sobre identidade nacional: li recentemente "Ladrilhadores e Semeadores", de Luiz Guilherme Piva, da Editora 34. É um extraordinário percurso no pensamento brasileiro de 1920 a 1940, quando a questão da identidade nacional brasileira e da modernização ocupava as melhores mentes do país.
quinta-feira, 31 de março de 2005
quinta-feira, 24 de março de 2005
Gravidade e complexidade do estupro
Na coluna da semana passada, comentei a nova norma do Ministério da Saúde, segundo a qual o BO (boletim de ocorrência) policial não será mais uma condição necessária para que seja permitido interromper a gravidez produzida por estupro. Muitos leitores me escreveram. Não conseguirei responder a cada e-mail, mas agradeço a todos e discuto hoje uma das questões levantadas.
Meus correspondentes (sobretudo os advogados e os juristas) notaram que o BO policial não é nada mais do que uma declaração. Ele não prova que um estupro aconteceu, apenas atesta que uma mulher se declarou vítima de estupro. Que houve estupro só seria confirmado juridicamente depois da instrução criminal, do processo etc. Desse ponto de vista, o BO não é substancialmente diferente da declaração que seria recolhida pelo médico.
Concordo com meus interlocutores. Mas eis que alguns acrescentam: como não é possível aguardar a decisão judicial, o médico poderia assumir a responsabilidade de verificar mesmo se houve ou não estupro. Como? Pelo exame do corpo da vítima. O pressuposto é o seguinte: se houve estupro, deve haver marcas que indicam uma penetração forçada.
Ora, acontece que a sexualidade humana é bastante mais complexa do que isso. Por um lado, o encontro sexual pode ser consensual e, ao mesmo tempo, violento a ponto de deixar marcas e rasgos no sexo de uma mulher.
Por outro lado, e é isso que nos interessa agora, é possível que um encontro não deixe nenhuma marca física de violência e que, mesmo assim, não seja consensual.
Para entender como isso seria possível, é útil recorrer à distinção, proposta há tempo pela escola francesa de psicanálise, entre gozo e prazer. Explico do que se trata por um exemplo.
Uma tradição antiga diz que os supliciados na forca, na hora do estrangulamento fatal, conheciam uma ereção repentina e uma ejaculação final. Desde a Idade Média, se não antes, acreditava-se que, ao pé das forcas, crescia a mandrágora, uma planta que devia seu poder afrodisíaco ao privilégio sinistro de ser freqüentemente regada pelo sêmen dos enforcados.
Pouco importa que essa história seja verídica ou não. De qualquer forma, recomendo que ninguém tente validar ou invalidar a lenda. Mas admitamos por um instante que ela corresponda à verdade: o enforcado gozava de seu suplício, mas, obviamente, seria absurdo dizer que ele achava prazer na experiência ou mesmo que não havia suplício algum, visto que o condenado "gostava".
No caso do estupro, pode funcionar algo parecido com o que acontece com o enforcado da lenda. Imagine que a ameaça dos estupradores desperte, num canto esquecido da mente da vítima, uma fantasia de estupro (que, aliás, é freqüente, sobretudo na adolescência). Seria suficiente para que se produzisse uma excitação fisiológica da vítima e que o ato sexual acontecesse propriamente sem fricções. Os estupradores, nesse caso, poderão se gabar: "Viu, essa p... está gostando". Não por isso, se forem assassinos, pouparão a vida da vítima. Desapontados por terem a impressão de que não estão forçando a mulher quanto gostariam, eles serão, provavelmente, mais cruéis.
De qualquer forma, a eventual excitação da vítima e a conseqüente falta de marcas de violência sexual não provam de nenhuma maneira que não tenha havido estupro -assim como a ejaculação do enforcado não demonstra que não tenha havido enforcamento.
Outro exemplo: acontece, às vezes, de um sujeito seqüestrado passar a se identificar com a causa de seus seqüestradores e dar provas de extrema complacência na sua relação com eles. O fenômeno é conhecido em psicologia sob o nome de "Síndrome de Estocolmo". Como se explica? Estar inteiramente no poder de alguém é uma experiência que evoca uma vivência antiga e fundamental para cada sujeito: a de ser um nenê desamparado nas mãos dos adultos que cuidam dele. Essa vivência persiste na nossa memória como uma fantasia que promete gozo (sem nenhum prazer) nas entregas e nas servidões mais radicais. Ora, a complacência dos seqüestrados, eventualmente produzida por essa fantasia, não altera em nada o fato de que houve seqüestro.
Em suma, um abuso pode produzir gozo. Isso não significa que ele encontrou o consenso da vítima, mas implica que é sem utilidade o exame do sexo de uma mulher estuprada à procura de escoriações que comprovem o estupro. Há mais. O exame repete o escárnio dos estupradores: "Vamos ver se é verdade que ela não gostou".
Proponho essas reflexões porque gostaria que, nos próprios debates jurídicos, não ficasse esquecida a complexidade humana. Também, nas palavras de quem se opõe ao aborto mesmo em caso de estupro, parece-me, às vezes, que fica esquecida a gravidade e a violência do ato. Pede-se a uma mulher que aceite e celebre a vida de um rebento que será a lembrança encarnada do desprezo de quem a estuprou, de seu ódio pelo estuprador e, às vezes (pior ainda), do ódio e do desprezo que ela não consegue deixar de sentir por si mesma por ter sido estuprada.
Não deve ser impossível um amor materno capaz desse prodígio. Mas como ter a ousadia de exigi-lo?
Meus correspondentes (sobretudo os advogados e os juristas) notaram que o BO policial não é nada mais do que uma declaração. Ele não prova que um estupro aconteceu, apenas atesta que uma mulher se declarou vítima de estupro. Que houve estupro só seria confirmado juridicamente depois da instrução criminal, do processo etc. Desse ponto de vista, o BO não é substancialmente diferente da declaração que seria recolhida pelo médico.
Concordo com meus interlocutores. Mas eis que alguns acrescentam: como não é possível aguardar a decisão judicial, o médico poderia assumir a responsabilidade de verificar mesmo se houve ou não estupro. Como? Pelo exame do corpo da vítima. O pressuposto é o seguinte: se houve estupro, deve haver marcas que indicam uma penetração forçada.
Ora, acontece que a sexualidade humana é bastante mais complexa do que isso. Por um lado, o encontro sexual pode ser consensual e, ao mesmo tempo, violento a ponto de deixar marcas e rasgos no sexo de uma mulher.
Por outro lado, e é isso que nos interessa agora, é possível que um encontro não deixe nenhuma marca física de violência e que, mesmo assim, não seja consensual.
Para entender como isso seria possível, é útil recorrer à distinção, proposta há tempo pela escola francesa de psicanálise, entre gozo e prazer. Explico do que se trata por um exemplo.
Uma tradição antiga diz que os supliciados na forca, na hora do estrangulamento fatal, conheciam uma ereção repentina e uma ejaculação final. Desde a Idade Média, se não antes, acreditava-se que, ao pé das forcas, crescia a mandrágora, uma planta que devia seu poder afrodisíaco ao privilégio sinistro de ser freqüentemente regada pelo sêmen dos enforcados.
Pouco importa que essa história seja verídica ou não. De qualquer forma, recomendo que ninguém tente validar ou invalidar a lenda. Mas admitamos por um instante que ela corresponda à verdade: o enforcado gozava de seu suplício, mas, obviamente, seria absurdo dizer que ele achava prazer na experiência ou mesmo que não havia suplício algum, visto que o condenado "gostava".
No caso do estupro, pode funcionar algo parecido com o que acontece com o enforcado da lenda. Imagine que a ameaça dos estupradores desperte, num canto esquecido da mente da vítima, uma fantasia de estupro (que, aliás, é freqüente, sobretudo na adolescência). Seria suficiente para que se produzisse uma excitação fisiológica da vítima e que o ato sexual acontecesse propriamente sem fricções. Os estupradores, nesse caso, poderão se gabar: "Viu, essa p... está gostando". Não por isso, se forem assassinos, pouparão a vida da vítima. Desapontados por terem a impressão de que não estão forçando a mulher quanto gostariam, eles serão, provavelmente, mais cruéis.
De qualquer forma, a eventual excitação da vítima e a conseqüente falta de marcas de violência sexual não provam de nenhuma maneira que não tenha havido estupro -assim como a ejaculação do enforcado não demonstra que não tenha havido enforcamento.
Outro exemplo: acontece, às vezes, de um sujeito seqüestrado passar a se identificar com a causa de seus seqüestradores e dar provas de extrema complacência na sua relação com eles. O fenômeno é conhecido em psicologia sob o nome de "Síndrome de Estocolmo". Como se explica? Estar inteiramente no poder de alguém é uma experiência que evoca uma vivência antiga e fundamental para cada sujeito: a de ser um nenê desamparado nas mãos dos adultos que cuidam dele. Essa vivência persiste na nossa memória como uma fantasia que promete gozo (sem nenhum prazer) nas entregas e nas servidões mais radicais. Ora, a complacência dos seqüestrados, eventualmente produzida por essa fantasia, não altera em nada o fato de que houve seqüestro.
Em suma, um abuso pode produzir gozo. Isso não significa que ele encontrou o consenso da vítima, mas implica que é sem utilidade o exame do sexo de uma mulher estuprada à procura de escoriações que comprovem o estupro. Há mais. O exame repete o escárnio dos estupradores: "Vamos ver se é verdade que ela não gostou".
Proponho essas reflexões porque gostaria que, nos próprios debates jurídicos, não ficasse esquecida a complexidade humana. Também, nas palavras de quem se opõe ao aborto mesmo em caso de estupro, parece-me, às vezes, que fica esquecida a gravidade e a violência do ato. Pede-se a uma mulher que aceite e celebre a vida de um rebento que será a lembrança encarnada do desprezo de quem a estuprou, de seu ódio pelo estuprador e, às vezes (pior ainda), do ódio e do desprezo que ela não consegue deixar de sentir por si mesma por ter sido estuprada.
Não deve ser impossível um amor materno capaz desse prodígio. Mas como ter a ousadia de exigi-lo?
quinta-feira, 17 de março de 2005
A nova norma sobre o aborto em caso de estupro
Pela lei brasileira, o aborto é permitido quando a gravidez coloca em perigo a vida da gestante e quando ela é resultado de estupro.
Na semana passada, o Ministério da Saúde propôs uma nova norma de conduta para os médicos: ao atenderem o pedido de aborto de uma mulher cuja gravidez seja resultado de estupro, eles não precisam exigir que a dita mulher apresente um BO (boletim de ocorrência) policial.
É assim corrigida uma norma de 1998, segundo a qual a apresentação do BO policial era obrigatória para realizar um aborto legal em caso de estupro.
As reações foram as seguintes.
Logicamente, grupos religiosos e cidadãos que, por razões de princípio, se opõem a qualquer tipo de aborto protestaram contra uma norma que facilita o procedimento. Normal e compreensível.
De maneira menos compreensível, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, declarou que a nova norma do Ministério da Saúde não teria base legal. O comentário me pareceu curioso, pois o Código Penal, que autoriza o aborto nos dois casos lembrados, não menciona a necessidade de um BO, ou seja, aparentemente, era a norma anterior que não tinha base legal.
O doutor Isac Jorge Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, manifestou sua preocupação com o fato de que, sem BO, os médicos não terão como saber se houve ou não estupro, e os hospitais se transformarão em "indústrias de abortos". Não acredito que qualquer mulher que tenha ficado grávida sem querer seja uma mentirosa em potencial. Também me pergunto se é necessariamente mais fácil mentir ao médico do que à polícia.
Seja como for, proponho algumas observações à atenção do ministro Jobim, do doutor Jorge Filho e de todos os que acham errada ou inoportuna a nova norma do Ministério da Saúde.
Antes de mais nada, noto que a nova norma propõe uma linha de conduta na aplicação da lei existente. Não vem ao caso, portanto, discutir a própria lei, mas se trata de considerar qual é a melhor maneira de aplicá-la, ou seja, de garantir o direito de abortar quando a gravidez é resultado de estupro.
Agora, para exigir a apresentação de um BO policial como condição para que seja reconhecido o estupro, é preciso desconhecer ou menosprezar singularmente a vida concreta das vítimas.
Há muitas situações em que a vítima ou simplesmente o cidadão ciente de um delito podem decidir que é mais certo e mais justo não comunicar o delito à autoridade policial. Seu filho de 15 anos retirou (ou seja, furtou) R$ 100 de sua carteira para comprar dez baseados, quatro dos quais ele revendeu a amigos no meio de uma festa. Será que você automaticamente fará um boletim de ocorrência e pedirá a prisão do rapaz por furto e por uso e tráfico de drogas? E, sobretudo, como nada prova que a família não esteja mentindo, será que você, médico psiquiatra consultado nessa ocasião pela família, pedirá o BO policial antes de tentar ajudar a família e o rapaz?
Sem recorrer a comparações, é bom lembrar que uma jovem que denuncia um familiar próximo -pai, tio, padrasto- que a estuprou ou que a estupra regularmente é facilmente mandada de volta para casa, onde encara a vingança violenta de seu estuprador, sem amparo nenhum. Muito freqüentemente, na decisão de denunciar, a jovem não encontra nem sequer o respaldo da mãe, cuja única preocupação, às vezes, consiste em preservar seu relacionamento com o pai ou o padrasto.
Sobretudo quando a vítima é menor, é banal que o estuprador seja alguém que a vítima ama e idealiza, por quem ela se sente traída em seu afeto, mas que ela não poderia prejudicar por uma denúncia sem conhecer abismos de culpa que se somariam aos abismos de vergonha que ela já sente por ter sido estuprada.
Uma jovem que foi estuprada por um familiar mais velho tem sua confiança na autoridade radicalmente minada e pode achar difícil, se não terrificante, a idéia de encontrar qualquer representante do poder.
Além disso, muitas vezes, a violência sexual é não apenas uma brutalidade direta e física mas pode ser uma pressão ou uma chantagem afetiva, que arrancam uma espécie de consentimento de tal forma que a vítima não consegue saber se ela deve acusar o estuprador ou se acusar.
Enfim, por mais que as forças policiais brasileiras sejam bem formadas e bem-intencionadas, é necessário pensar no que acontece quando uma mulher se apresenta numa delegacia para denunciar seu estuprador. Alguém garante que o BO de um estupro será sempre, a qualquer hora do dia ou da noite, recebido por uma policial mulher, devidamente formada para oferecer a escuta e o amparo necessários, e que isso acontecerá num lugar separado, fora do alcance visual e auditivo de policiais homens? Ou, então, será que a vítima de estupro "merece" uma dose de escárnio na hora de denunciar seu estuprador? Será que a mulher, uma vez estuprada, perde o direito de preservar seu pudor?
Bem, o ministro Humberto Silva propõe uma nova norma que reconhece a complexidade da experiência concreta das vítimas. Obrigado, ministro.
Na semana passada, o Ministério da Saúde propôs uma nova norma de conduta para os médicos: ao atenderem o pedido de aborto de uma mulher cuja gravidez seja resultado de estupro, eles não precisam exigir que a dita mulher apresente um BO (boletim de ocorrência) policial.
É assim corrigida uma norma de 1998, segundo a qual a apresentação do BO policial era obrigatória para realizar um aborto legal em caso de estupro.
As reações foram as seguintes.
Logicamente, grupos religiosos e cidadãos que, por razões de princípio, se opõem a qualquer tipo de aborto protestaram contra uma norma que facilita o procedimento. Normal e compreensível.
De maneira menos compreensível, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, declarou que a nova norma do Ministério da Saúde não teria base legal. O comentário me pareceu curioso, pois o Código Penal, que autoriza o aborto nos dois casos lembrados, não menciona a necessidade de um BO, ou seja, aparentemente, era a norma anterior que não tinha base legal.
O doutor Isac Jorge Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, manifestou sua preocupação com o fato de que, sem BO, os médicos não terão como saber se houve ou não estupro, e os hospitais se transformarão em "indústrias de abortos". Não acredito que qualquer mulher que tenha ficado grávida sem querer seja uma mentirosa em potencial. Também me pergunto se é necessariamente mais fácil mentir ao médico do que à polícia.
Seja como for, proponho algumas observações à atenção do ministro Jobim, do doutor Jorge Filho e de todos os que acham errada ou inoportuna a nova norma do Ministério da Saúde.
Antes de mais nada, noto que a nova norma propõe uma linha de conduta na aplicação da lei existente. Não vem ao caso, portanto, discutir a própria lei, mas se trata de considerar qual é a melhor maneira de aplicá-la, ou seja, de garantir o direito de abortar quando a gravidez é resultado de estupro.
Agora, para exigir a apresentação de um BO policial como condição para que seja reconhecido o estupro, é preciso desconhecer ou menosprezar singularmente a vida concreta das vítimas.
Há muitas situações em que a vítima ou simplesmente o cidadão ciente de um delito podem decidir que é mais certo e mais justo não comunicar o delito à autoridade policial. Seu filho de 15 anos retirou (ou seja, furtou) R$ 100 de sua carteira para comprar dez baseados, quatro dos quais ele revendeu a amigos no meio de uma festa. Será que você automaticamente fará um boletim de ocorrência e pedirá a prisão do rapaz por furto e por uso e tráfico de drogas? E, sobretudo, como nada prova que a família não esteja mentindo, será que você, médico psiquiatra consultado nessa ocasião pela família, pedirá o BO policial antes de tentar ajudar a família e o rapaz?
Sem recorrer a comparações, é bom lembrar que uma jovem que denuncia um familiar próximo -pai, tio, padrasto- que a estuprou ou que a estupra regularmente é facilmente mandada de volta para casa, onde encara a vingança violenta de seu estuprador, sem amparo nenhum. Muito freqüentemente, na decisão de denunciar, a jovem não encontra nem sequer o respaldo da mãe, cuja única preocupação, às vezes, consiste em preservar seu relacionamento com o pai ou o padrasto.
Sobretudo quando a vítima é menor, é banal que o estuprador seja alguém que a vítima ama e idealiza, por quem ela se sente traída em seu afeto, mas que ela não poderia prejudicar por uma denúncia sem conhecer abismos de culpa que se somariam aos abismos de vergonha que ela já sente por ter sido estuprada.
Uma jovem que foi estuprada por um familiar mais velho tem sua confiança na autoridade radicalmente minada e pode achar difícil, se não terrificante, a idéia de encontrar qualquer representante do poder.
Além disso, muitas vezes, a violência sexual é não apenas uma brutalidade direta e física mas pode ser uma pressão ou uma chantagem afetiva, que arrancam uma espécie de consentimento de tal forma que a vítima não consegue saber se ela deve acusar o estuprador ou se acusar.
Enfim, por mais que as forças policiais brasileiras sejam bem formadas e bem-intencionadas, é necessário pensar no que acontece quando uma mulher se apresenta numa delegacia para denunciar seu estuprador. Alguém garante que o BO de um estupro será sempre, a qualquer hora do dia ou da noite, recebido por uma policial mulher, devidamente formada para oferecer a escuta e o amparo necessários, e que isso acontecerá num lugar separado, fora do alcance visual e auditivo de policiais homens? Ou, então, será que a vítima de estupro "merece" uma dose de escárnio na hora de denunciar seu estuprador? Será que a mulher, uma vez estuprada, perde o direito de preservar seu pudor?
Bem, o ministro Humberto Silva propõe uma nova norma que reconhece a complexidade da experiência concreta das vítimas. Obrigado, ministro.
quinta-feira, 10 de março de 2005
A aventura do fim do mundo
Vai ser assim. Primeiro haverá o rapto dos verdadeiros fiéis, que o Senhor levará para perto dele. Eles sumirão de repente, deixando suas roupas, jóias e próteses.
Naquele momento, se estivermos num ônibus lançado a cem por hora na BR-116, devemos esperar que o motorista seja um pecador. A não ser que façamos parte dos eleitos, no qual caso o sumiço do motorista será para nós indiferente, pois seremos raptados para o céu com ele.
A situação, para os que serão deixados para trás, aqui na Terra, não será mole, sobretudo se eles forem pastores, padres, santos homens e santas mulheres. Como justificarão diante dos outros o fato de que Deus não os quis com ele desde já?
Depois disso virão sete anos complicados, com o surgimento do Anti-Cristo, que aparecerá como homem de paz e será secretário-geral da ONU; tudo mais ou menos como já foi anunciado pelos profetas.
Pois bem, é assim que começa "Deixados para Trás", do reverendo Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins. É um romance do Segundo Advento, que não vale um livro de John Le Carré (por exemplo, bem no começo, há um bombardeio russo para aniquilar Israel, que teria feito mais sentido nos anos 60 do que agora). Mas, enfim, a história se lê como um policial que não acaba nunca. Até agora, a seqüência tem 11 volumes, e há mais para vir.
O reverendo LaHaye vendeu 42 milhões de exemplares, sem contar a versão em quadrinhos, o pequeno dicionário das personagens etc. Obviamente, "Deixados para Trás" existe também em português.
Decidi ler (e li os primeiros três volumes) porque os números situam esse livro como talvez o maior best-seller cristão depois da Bíblia. Será que os cristãos se tornaram todos adventistas? Não acredito.
Há uma outra explicação. Nos anos 60 e 70, os sermões católicos nos exortavam a uma vida honesta, promoviam um pouco de justiça na terra e, apesar de alguma chama do inferno evocada sobretudo por padres de áreas rurais, não faziam muito caso do Diabo, do Apocalipse e do Juízo Final. Vinte anos mais tarde, em muitos países católicos, assistiu-se a um crescimento das igrejas evangélicas, que ainda continua. Os fiéis parecem seduzidos por um cristianismo mais envolvente: entram em transe falando em línguas desconhecidas, vivem um combate contínuo com o maligno, preparam-se para o dia da ira divina, em que o Universo será reduzido a cinzas, segundo as predições de David e da Sibila. Enquanto isso, letras e músicas do "Dies Irae" (o dia da ira divina, justamente) foram retiradas da liturgia católica pelo Concílio Vaticano 2º, nos anos 60.
Em suma, o discurso evangélico é infinitamente mais dramático. Considere o seguinte: se fosse para ser antropólogo, você sonharia em administrar cursos de graduação a bandos de alunos sonolentos ou preferiria ser Indiana Jones? Na mesma linha: se é para ser cristão, você prefere servir a missa ou lutar contra o demônio de espada na mão?
A fé e a prática religiosa são sensíveis à paixão moderna pela aventura. Nas últimas décadas, talvez a literatura e Hollywood tenham feito mais para a Igreja Católica do que muitos esforços de catequese. Aliás, sobretudo Hollywood: não sei quantos ainda lêem as histórias do padre Brown de Chesterton, mas o jesuíta de nossos sonhos é o do filme "O Exorcista". Hoje, a religião que inspira mais é aquela que promete ao fiel que sua vida será um romance ou, melhor, um filme em que ele será um Schwarzenegger da fé.
Agora, um comentário para introduzir mais um detalhe (que talvez não seja um detalhe) sobre o reverendo LaHaye.
O psicanalista Jurandir Freire Costa acaba de publicar "O Vestígio e a Aura, Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo". Mesmo que você deteste psicanálise, não deixe de ler ao menos a segunda parte do livro. É um ensaio necessário, lúcido e esclarecedor sobre a moral dos nossos tempos. Costa não compra o lugar-comum pelo qual seríamos definidos pelo simples declínio dos valores, mas tenta enxergar os indícios de uma moral possível nos comportamentos contemporâneos. Um capítulo é consagrado à "Personalidade Somática de Nosso Tempo", que coloca o desempenho e a aparência corporais "no mesmo patamar do aperfeiçoamento sentimental ou das finalidades cívicas".
Ora, compartilho com Costa o esforço para reconhecer a possível dimensão ética dos traços mais salientes da cultura de hoje. Mas, às vezes, a coisa fica difícil. Por exemplo, a revista "Time" de 7 de fevereiro publicou uma foto-retrato do casal LaHaye: Tim (79 anos) e Beverly (75, fundadora de uma grande organização contra o aborto e o casamento gay) nos olham intensamente. Seus rostos são inundados e reluzentes de Botox, os cabelos de Tim são pateticamente ruivos de tintura, como suas sobrancelhas; os de Beverly são loiríssimos e levemente cotonados. Seus sorrisos suaves, posados e posudos, me dão calafrios. Confesso que me é difícil encontrar sinais de vida espiritual nessas caretas da "personalidade somática de nosso tempo".
Pois é, penso: aqui está o autor do best-seller que quer revigorar nossa fé com a promessa de que logo viveremos a maior aventura de todos os tempos, o fim do mundo.
Naquele momento, se estivermos num ônibus lançado a cem por hora na BR-116, devemos esperar que o motorista seja um pecador. A não ser que façamos parte dos eleitos, no qual caso o sumiço do motorista será para nós indiferente, pois seremos raptados para o céu com ele.
A situação, para os que serão deixados para trás, aqui na Terra, não será mole, sobretudo se eles forem pastores, padres, santos homens e santas mulheres. Como justificarão diante dos outros o fato de que Deus não os quis com ele desde já?
Depois disso virão sete anos complicados, com o surgimento do Anti-Cristo, que aparecerá como homem de paz e será secretário-geral da ONU; tudo mais ou menos como já foi anunciado pelos profetas.
Pois bem, é assim que começa "Deixados para Trás", do reverendo Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins. É um romance do Segundo Advento, que não vale um livro de John Le Carré (por exemplo, bem no começo, há um bombardeio russo para aniquilar Israel, que teria feito mais sentido nos anos 60 do que agora). Mas, enfim, a história se lê como um policial que não acaba nunca. Até agora, a seqüência tem 11 volumes, e há mais para vir.
O reverendo LaHaye vendeu 42 milhões de exemplares, sem contar a versão em quadrinhos, o pequeno dicionário das personagens etc. Obviamente, "Deixados para Trás" existe também em português.
Decidi ler (e li os primeiros três volumes) porque os números situam esse livro como talvez o maior best-seller cristão depois da Bíblia. Será que os cristãos se tornaram todos adventistas? Não acredito.
Há uma outra explicação. Nos anos 60 e 70, os sermões católicos nos exortavam a uma vida honesta, promoviam um pouco de justiça na terra e, apesar de alguma chama do inferno evocada sobretudo por padres de áreas rurais, não faziam muito caso do Diabo, do Apocalipse e do Juízo Final. Vinte anos mais tarde, em muitos países católicos, assistiu-se a um crescimento das igrejas evangélicas, que ainda continua. Os fiéis parecem seduzidos por um cristianismo mais envolvente: entram em transe falando em línguas desconhecidas, vivem um combate contínuo com o maligno, preparam-se para o dia da ira divina, em que o Universo será reduzido a cinzas, segundo as predições de David e da Sibila. Enquanto isso, letras e músicas do "Dies Irae" (o dia da ira divina, justamente) foram retiradas da liturgia católica pelo Concílio Vaticano 2º, nos anos 60.
Em suma, o discurso evangélico é infinitamente mais dramático. Considere o seguinte: se fosse para ser antropólogo, você sonharia em administrar cursos de graduação a bandos de alunos sonolentos ou preferiria ser Indiana Jones? Na mesma linha: se é para ser cristão, você prefere servir a missa ou lutar contra o demônio de espada na mão?
A fé e a prática religiosa são sensíveis à paixão moderna pela aventura. Nas últimas décadas, talvez a literatura e Hollywood tenham feito mais para a Igreja Católica do que muitos esforços de catequese. Aliás, sobretudo Hollywood: não sei quantos ainda lêem as histórias do padre Brown de Chesterton, mas o jesuíta de nossos sonhos é o do filme "O Exorcista". Hoje, a religião que inspira mais é aquela que promete ao fiel que sua vida será um romance ou, melhor, um filme em que ele será um Schwarzenegger da fé.
Agora, um comentário para introduzir mais um detalhe (que talvez não seja um detalhe) sobre o reverendo LaHaye.
O psicanalista Jurandir Freire Costa acaba de publicar "O Vestígio e a Aura, Corpo e Consumismo na Moral do Espetáculo". Mesmo que você deteste psicanálise, não deixe de ler ao menos a segunda parte do livro. É um ensaio necessário, lúcido e esclarecedor sobre a moral dos nossos tempos. Costa não compra o lugar-comum pelo qual seríamos definidos pelo simples declínio dos valores, mas tenta enxergar os indícios de uma moral possível nos comportamentos contemporâneos. Um capítulo é consagrado à "Personalidade Somática de Nosso Tempo", que coloca o desempenho e a aparência corporais "no mesmo patamar do aperfeiçoamento sentimental ou das finalidades cívicas".
Ora, compartilho com Costa o esforço para reconhecer a possível dimensão ética dos traços mais salientes da cultura de hoje. Mas, às vezes, a coisa fica difícil. Por exemplo, a revista "Time" de 7 de fevereiro publicou uma foto-retrato do casal LaHaye: Tim (79 anos) e Beverly (75, fundadora de uma grande organização contra o aborto e o casamento gay) nos olham intensamente. Seus rostos são inundados e reluzentes de Botox, os cabelos de Tim são pateticamente ruivos de tintura, como suas sobrancelhas; os de Beverly são loiríssimos e levemente cotonados. Seus sorrisos suaves, posados e posudos, me dão calafrios. Confesso que me é difícil encontrar sinais de vida espiritual nessas caretas da "personalidade somática de nosso tempo".
Pois é, penso: aqui está o autor do best-seller que quer revigorar nossa fé com a promessa de que logo viveremos a maior aventura de todos os tempos, o fim do mundo.
quinta-feira, 3 de março de 2005
Dificuldades do juízo estético
Está sendo desmontada a instalação de Christo e Jeanne-Claude no Central Park de Nova York. Durante 18 dias, as trilhas do parque (37 km) foram enfeitadas por 7.503 portais de quase cinco metros de altura com largura correspondente à largura dos caminhos (de dois a seis metros). Na trave de cada portal era fixado um pano, que descia até pouco mais de dois metros do chão e flutuava ao vento. Tudo isso na cor laranja da roupa dos monges tibetanos.
Em geral, Christo e Jeanne-Claude se interessam pouco pelo "sentido" das instalações que produzem pelo mundo afora. Concentram-se nos desafios da realização concreta e no efeito estético, plástico, das mudanças temporárias que eles impõem às paisagens.
Já os usuários e os críticos nunca resistem à tentação de explicar e justificar. Alguns notaram que os portais eram como os "torii", que afastam os maus espíritos na entrada dos templos xintoístas japoneses. Outros lembraram que um portal é símbolo de mudança e de acesso a outras dimensões da vida.
Diante de uma expressão artística, essa preferência pela "descoberta" de sentidos, óbvios ou recônditos, parece compensar nossa dificuldade em articular e manifestar uma apreciação estética.
Hoje, perguntar se uma obra de arte é "bela" é uma ingenuidade que frisa o ridículo. Se a pieguice condena qualquer consideração sobre a "beleza", formulemos de outro jeito: a obra de Christo e Jeanne-Claude se impõe ou não como necessária por suas qualidades próprias (disposição, proporções, volumes, cores etc.)?
Cheguei a Nova York na segunda, dia 21, um feriado nos EUA. De manhã bem cedo, depois de uma noite de neve, o Central Park estava deserto, coberto por uma manta virgem. Parque adentro, só a sucessão dos portais indicava as trilhas. Era uma visão feérica, encantada. Esperei a chegada de crianças, turistas e corredores matutinos. Todos adoravam; não havia como não achar extravagantemente bonito aquele conjunto de portais laranja, árvores cinza, neve e arranha-céus. Mas os comentários eram hesitantes, envergonhados, como se fosse proibido confiar no prazer da experiência. Diziam, desculpando-se, "Até que gostei, viu?". Ou racionalizavam: "É bom para a cidade, traz turistas, não é?".
Temos dificuldade em decretar a qualidade e a necessidade plástica de uma produção artística. Dizemos "EU gosto", sublinhando o "eu" para limitar o alcance de nossa aprovação. Aliás, preferimos "eu gostei" a "eu gosto": nossa experiência foi pontual, no passado, sem conseqüências definitivas.
Uma das contribuições mais interessantes de Donald Meltzer, um psicanalista anglo-americano que morreu em 2004, é o livro "A Apreensão do Belo". Meltzer começa notando que seus pacientes "borderline" (fronteiriços, próximos da psicose ou da psicopatia) tinham uma incapacidade de apreender o belo por uma simples e confiante resposta emocional do tipo: vejo, sinto, vibro e, portanto, sei e digo que é belo.
Pois é, considerando nossa timidez estética, a crítica contemporânea e o discurso dos próprios artistas, somos todos (ou quase) fronteiriços como os pacientes de Meltzer. Compensamos a falta de confiança em nossa experiência estética à força de argumentos sociais, morais ou intelectuais.
Há uma explicação que é a mesma para todas as incertezas modernas: com o fim dos consensos tradicionais, o ônus de bem julgar ficou com o sujeito. Apreciar esteticamente não significa avaliar se uma obra respeita o cânone, nem medir seus equilíbrios internos. Apreciar, para nós, é uma questão de gosto. E a falta de critérios nos acanha e intimida.
Meltzer permite ir além dessa generalidade. Sua idéia é que, para sentir e reconhecer a qualidade estética de uma obra, precisamos de um modelo emocional, ou seja, precisamos da lembrança ou da suposição de uma grande harmonia mítica ou passada. Para cada um de nós, ele propõe, o modelo da experiência esteticamente satisfatória é nossa primeira percepção da mãe. Ou seja, sabemos reconhecer a beleza porque ela evoca em nós a mesma emoção daquela harmonia originária entre nós e os cuidados maternos.
Mas Meltzer, que foi discípulo de Melanie Klein e Wilfred Bion, sabe quanto a lembrança ou suposição dessa harmonia originária é conflitiva. A harmonia, se ela existiu, teve que ser sacrificada para que não ficássemos de bonecos da mãe, para que nos separássemos e crescêssemos. E esse sacrifício imposto e inevitável é sempre vivido como uma traição materna. Não há como evocar uma harmonia originária sem evocar a dor de sua perda.
Entende-se, portanto, que nosso juízo estético seja hesitante e oscile entre um encantamento babaca (os portais na neve de um conto de fadas) e um cinismo não menos babaca (tipo: os únicos que ganharam com isso foram os vendedores de cachorro-quente do Central Park).
Os antigos (sorte deles) podiam confiar firmemente em suas experiências estéticas, visto que seu modelo de harmonia era a sólida ordem do Universo. Segundo Meltzer, para apreciar a beleza, nós precisamos recorrer à mesma miragem de harmonia que devemos destruir para crescer e vir a ser indivíduos e adultos. Complicado.
Em geral, Christo e Jeanne-Claude se interessam pouco pelo "sentido" das instalações que produzem pelo mundo afora. Concentram-se nos desafios da realização concreta e no efeito estético, plástico, das mudanças temporárias que eles impõem às paisagens.
Já os usuários e os críticos nunca resistem à tentação de explicar e justificar. Alguns notaram que os portais eram como os "torii", que afastam os maus espíritos na entrada dos templos xintoístas japoneses. Outros lembraram que um portal é símbolo de mudança e de acesso a outras dimensões da vida.
Diante de uma expressão artística, essa preferência pela "descoberta" de sentidos, óbvios ou recônditos, parece compensar nossa dificuldade em articular e manifestar uma apreciação estética.
Hoje, perguntar se uma obra de arte é "bela" é uma ingenuidade que frisa o ridículo. Se a pieguice condena qualquer consideração sobre a "beleza", formulemos de outro jeito: a obra de Christo e Jeanne-Claude se impõe ou não como necessária por suas qualidades próprias (disposição, proporções, volumes, cores etc.)?
Cheguei a Nova York na segunda, dia 21, um feriado nos EUA. De manhã bem cedo, depois de uma noite de neve, o Central Park estava deserto, coberto por uma manta virgem. Parque adentro, só a sucessão dos portais indicava as trilhas. Era uma visão feérica, encantada. Esperei a chegada de crianças, turistas e corredores matutinos. Todos adoravam; não havia como não achar extravagantemente bonito aquele conjunto de portais laranja, árvores cinza, neve e arranha-céus. Mas os comentários eram hesitantes, envergonhados, como se fosse proibido confiar no prazer da experiência. Diziam, desculpando-se, "Até que gostei, viu?". Ou racionalizavam: "É bom para a cidade, traz turistas, não é?".
Temos dificuldade em decretar a qualidade e a necessidade plástica de uma produção artística. Dizemos "EU gosto", sublinhando o "eu" para limitar o alcance de nossa aprovação. Aliás, preferimos "eu gostei" a "eu gosto": nossa experiência foi pontual, no passado, sem conseqüências definitivas.
Uma das contribuições mais interessantes de Donald Meltzer, um psicanalista anglo-americano que morreu em 2004, é o livro "A Apreensão do Belo". Meltzer começa notando que seus pacientes "borderline" (fronteiriços, próximos da psicose ou da psicopatia) tinham uma incapacidade de apreender o belo por uma simples e confiante resposta emocional do tipo: vejo, sinto, vibro e, portanto, sei e digo que é belo.
Pois é, considerando nossa timidez estética, a crítica contemporânea e o discurso dos próprios artistas, somos todos (ou quase) fronteiriços como os pacientes de Meltzer. Compensamos a falta de confiança em nossa experiência estética à força de argumentos sociais, morais ou intelectuais.
Há uma explicação que é a mesma para todas as incertezas modernas: com o fim dos consensos tradicionais, o ônus de bem julgar ficou com o sujeito. Apreciar esteticamente não significa avaliar se uma obra respeita o cânone, nem medir seus equilíbrios internos. Apreciar, para nós, é uma questão de gosto. E a falta de critérios nos acanha e intimida.
Meltzer permite ir além dessa generalidade. Sua idéia é que, para sentir e reconhecer a qualidade estética de uma obra, precisamos de um modelo emocional, ou seja, precisamos da lembrança ou da suposição de uma grande harmonia mítica ou passada. Para cada um de nós, ele propõe, o modelo da experiência esteticamente satisfatória é nossa primeira percepção da mãe. Ou seja, sabemos reconhecer a beleza porque ela evoca em nós a mesma emoção daquela harmonia originária entre nós e os cuidados maternos.
Mas Meltzer, que foi discípulo de Melanie Klein e Wilfred Bion, sabe quanto a lembrança ou suposição dessa harmonia originária é conflitiva. A harmonia, se ela existiu, teve que ser sacrificada para que não ficássemos de bonecos da mãe, para que nos separássemos e crescêssemos. E esse sacrifício imposto e inevitável é sempre vivido como uma traição materna. Não há como evocar uma harmonia originária sem evocar a dor de sua perda.
Entende-se, portanto, que nosso juízo estético seja hesitante e oscile entre um encantamento babaca (os portais na neve de um conto de fadas) e um cinismo não menos babaca (tipo: os únicos que ganharam com isso foram os vendedores de cachorro-quente do Central Park).
Os antigos (sorte deles) podiam confiar firmemente em suas experiências estéticas, visto que seu modelo de harmonia era a sólida ordem do Universo. Segundo Meltzer, para apreciar a beleza, nós precisamos recorrer à mesma miragem de harmonia que devemos destruir para crescer e vir a ser indivíduos e adultos. Complicado.
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