O artigo 3º da Constituição situa entre os objetivos da República "promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O artigo 6º estabelece o direito ao trabalho.
Conclusão: ninguém pode ser discriminado ao procurar emprego. Agora, se você for mulher, vista-se de terno e gravata, corte o cabelo com máquina três e coloque um bigodinho falso. Se você for homem, vista-se de saltos altos, meia-calça, saia, peruca e maquiagem (sem excesso, claro). Apareça assim na entrevista para um emprego que corresponde a suas qualificações e veja o resultado.
Pois é, a Assembléia Estadual da Califórnia, EUA, baseando-se nos mesmos princípios da Constituição brasileira, acaba de aprovar e submeter ao Senado uma lei segundo a qual será multado em até US$ 150 mil (R$ 435 mil) o empregador que discriminar transexuais, travestis ou "cross-dressers" (literalmente: aqueles que se vestem atravessando a fronteira entre os sexos).
Você se lembra de "Meninos Não Choram"? O filme contava a história real da jovem Teena Brandon, que viveu como homem e foi estuprada e assassinada por seus "amigos" quando estes descobriram que seu sexo biológico era feminino. O filme estreou em 2000 e, pouco depois, o Estado de Minnesota e vários municípios americanos instituíram leis de proteção a transexuais e travestis.
A lei de Minnesota e o projeto californiano são parecidos. Proíbem a discriminação por razões de gênero e definem o gênero como "identidade, aparência ou comportamento" que podem ser diferentes daqueles tradicionalmente associados ao sexo biológico do sujeito.
Vários homens e mulheres vivem (constante ou ocasionalmente) uma discordância entre seu sexo biológico e sua identidade. São de sexo masculino e se sentem de gênero feminino ou vice-versa. Cuidado: essa distância entre sexo e gênero não é uma preferência sexual, mas um conflito subjetivo no qual o corpo é vivido como estranho. Um homem que tem o sentimento de pertencer ao gênero feminino não é necessariamente homossexual. Inversamente, é famoso, na clínica, o caso de uma mulher que, nas entrevistas necessárias para que fosse aprovada sua operação de mudança de sexo, declarou aos psiquiatras que, sexualmente, gostava de homens. Réplica: então por que mudar de sexo? Não lhe seria mais fácil encontrar os parceiros desejados permanecendo mulher? Ela respondeu que queria ser homem porque se sentia homem. Certo, ela imaginava que, sexualmente, continuaria preferindo os homens. Seria, portanto, depois da operação, um homem homossexual.
O divórcio entre sexo e gênero se apresenta num leque diversificado. Há o transexual decidido a transformar a anatomia de seu corpo. E há o pai de família que, às escondidas, usa roupa íntima feminina. Entre os dois, estão os sujeitos que recorrem a modificações corporais "leves" (depilações, hormônios, silicone).
Ora, essas experiências distintas, que pressupõem personalidades radicalmente díspares, nos parecem todas indecentes. Por quê?
Os opositores da lei californiana argumentam: o dono de uma loja de artigos religiosos será obrigado a empregar travestis. Se a recepcionista da Sociedade Bíblica fosse Danny DeVito de minissaia, isso seria inconciliável com o decoro do estabelecimento.
Podemos simpatizar, mas pergunto: por que um senhor gordinho de minissaia é mais indecente do que, por exemplo, uma jovem anoréxica? Afinal, ambos sofrem de maneira análoga: não concordam com seu corpo. O senhor gordinho discorda de seu sexo, a anoréxica discorda de seu peso.
Eis a questão, rebateriam os opositores da lei: o senhor gordinho tem um problema não de peso, mas de sexo. Errado: na verdade, ele sofre de transtornos de identidade. É para nós que seus esforços para modificar o corpo têm uma significação sexual. Já que não entendemos a separação entre sexo e gênero da qual ele sofre, supomos que ele queira sobretudo gozar em dobro, como homem e como mulher. Aos nossos olhos, ele é um sujeito comandado por uma exigência sexual descomunal: um tarado.
Pouco importa que muitos travestis vivam quase castos, encontrando seu prazer em discretas emoções indumentárias. Nosso estereótipo do travesti implica uma sexualidade descontrolada. E invocamos, como prova, a presença maciça de "bonecas" prostituídas nas ruas. É um argumento hipócrita: a prostituição é uma das poucas soluções oferecidas a quem quer viver uma vida travestida. Aliás, é isso que a lei californiana pretende mudar.
Mas vai ser difícil aprender a conviver com o travesti. Pois nosso olhar o erige em representante genérico de uma sexualidade exacerbada que excita a fantasia de todos.
Um anúncio de acompanhantes especiais, na televisão americana, mostra corpos femininos dotados de pênis. Uma voz em off comenta: "O que é você? Um "ele" ou uma "ela'? Não sei, mas você é certamente feito/a para o sexo".
Em suma, para que a lei californiana "pegue", quem vai colocar dificuldade não são os travestis atrás do Jockey Club, mas seus clientes.
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