Estou lendo "A Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno", de Colin Campbell (Rocco). A idéia de fundo é a seguinte: a sensibilidade romântica (que começou bem antes do romantismo) produziu a sociedade de consumo.
Eis um traço romântico que permanece em nós e que explica nosso consumismo: é a recusa de sermos reduzidos ao "aqui e agora". Sou mais do que os quilos de meu corpo, a suma de meus haveres, a rede de meus amigos e mesmo o conjunto de meus pensamentos. Minha vida só se justifica pelos sonhos que ainda não se cumpriram. Um dia, viajarei para lugares e futuros em que serei outro e darei a plena medida de mim mesmo.
Graças a nosso romantismo, caminhamos pela vida puxando atrás de nós uma ou várias pipas. Às vezes, são pipas caídas que vêm se despedaçando pelo asfalto; outras vezes, as pipas estão tão altas acima da gente que é impossível enxergar a linha que as mantém sob o controle de nossas mãos. De qualquer forma, arrastadas pelo chão ou perdidas no céu, as pipas nos representam: não olhem para mim, olhem para a pipa, é lá que estou. Não julguem meu modesto ser, mas meus sonhos. Eu pipo, logo sou ("pipar", nas ruas ao redor da estação da Luz, significa fumar crack, que é uma maneira desastrada de empinar a pipa da gente).
O menosprezo pelo que somos e pelo que temos, junto com o culto do que poderíamos ser e ter, sustenta uma sede de mudança e de aquisição, ou seja, uma fantástica economia de consumo.
E não é estranho que o consumo de massa (geladeiras para todos) tenha sido uma etapa fugaz.
Nossa pipa é o equivalente do gonfalão da antiga nobreza: deve assinalar de longe quem somos e a que viemos. Dela esperamos que diga por que somos especiais e inconfundíveis. A vida pode nos igualar na necessidade e nas frustrações, mas contamos com as fantasias para provar que somos livres e, portanto, únicos.
Por isso, poucas idéias nos indignam tanto quanto a suspeita de que nossas pipas sejam manobradas por outros. Podem nos prender, mas ai de nós se uma potência misteriosa escrevesse o script de nossas fantasias. Ela uniformizaria os sonhos que devem garantir os vôos livres de nossa individualidade. Admito (a contragosto) que as Wall Streets da vida me oprimam realmente, mas não que Madison Avenue (pátria do marketing) e Hollywood me subjuguem. Isso não: minhas pipas não são papagaios.
"Matrix" nos fascinou justamente com esse pesadelo. Éramos todos tristemente iguais, adormecidos num mesmo líquido amniótico e sugados como baterias elétricas. Até aqui, tudo bem (em termos, claro). Mas, nesse sono artificial, nosso cérebro, intubado, recebia as instruções de um código comum, a matriz, que regia nossas vidas sonhadas. Isso não dá: o que nos sobra, se o outro que nos tira a vida também decide nossos sonhos?
Agora, "Matrix Reloaded" é acusado de trazer só um suplemento de efeitos especiais. Neo, Trinity etc. seguem combatendo o domínio da matriz: penetram sua realidade virtual lutando como vírus no sistema e, de fora, na "realidade", militam na resistência da cidade dos homens livres. Ou seja, parece a mesma história. Mas não é: o novo filme é mais complexo e doloroso que o precedente.
Considere a continuidade entre os momentos em que Neo luta dentro da matriz e aqueles em que o conflito seria "real", entre a matriz e os heróis não intubados. Aparentemente, o que nos empurra a combater a matriz é uma fantasia heróica igualzinha às que a matriz permite e, quem sabe, encoraja. Aliás, num momento crucial do filme, é apresentada a Neo a hipótese de que sua luta contra a matriz seja apenas uma figura que a própria matriz produz e repete ciclicamente.
Em suma, o script preestabelecido de nossos sonhos pediria que sonhássemos também com nossa rebelião contra o script. A revolta seria mais uma figura da obediência à matriz.
Lembro-me de minha consternação quando descobri que a contracultura dos anos 60 foi fomentada pelo marketing dos anos 50, segundo o qual uma nova vontade de todos serem diferentes estimularia formas inéditas de consumo.
É possível que o terceiro filme previsto acabe, babacamente, com o triunfo dos homens livres. Mas resta que "Matrix Reloaded" propõe uma meditação interessante e sombria: talvez nossa melhor rebeldia contra a dita indústria cultural não passe de uma pipa manobrada pela mesma indústria.
Na Folha de 23 de maio, Cassiano Elek Machado entrevistava Jean Baudrillard, filósofo que escreveu alguns livros excelentes e outros menos, como "Simulacros e Simulação". Ultimamente, com base nesse livro, em vez de sonhar em ser versado nas artes marciais e assim salvar o mundo, ele sonha em ser um intelectual francês que salva o mundo denunciando os simulacros da matriz. Baudrillard declarou não ter gostado de "Matrix Reloaded", embora não o tivesse visto. É uma pena. O filme o teria ajudado a se colocar a pergunta: será que meu sonho não é tão previsto e manobrado pela matriz quanto os pulos e as pancadas de Neo?
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