No dia 10, foram encontrados os corpos de Liana Friedenbach e Felipe Caffé.
Durante toda a semana, amigos e leitores me interpelaram, pedindo que refletisse sobre o assassinato ou que me pronunciasse sobre as questões que ele levanta. Sou a favor da pena de morte ou contra ela? E a redução da maioridade penal?
Digo logo: sou contra a pena de morte, mas não porque acredite que a prisão possa reformar os assassinos de Liana e Felipe. Meu tênue argumento é o seguinte: prefiro manter nossa diferença. Eles matam, nós não matamos; somos diferentes deles.
Quanto à redução da maioridade penal, posso concordar com a maioria dos brasileiros, pela razão que já expus: minha fé na possibilidade de reeducar é limitada, seja qual for a idade do assassino. A adolescência é uma invenção cultural graças à qual nossa sociedade prolonga o tempo de "formação" de seus membros até os 20 anos. Essa convenção social não demonstra que a adolescência seja uma época em que um sujeito estaria mais disposto a ser reformado.
Mas, no fundo, pouco me importa debater essas questões. Tampouco estou a fim de encontrar explicações psicológicas ou históricas e sociais pelos atos dos algozes de Liana e Felipe.
Muitos comentários que li e escutei nos últimos dias me inspiram uma vaga desconfiança, pois me parecem sobretudo manifestar que não sabemos aceitar a radical alteridade do mal.
Nos últimos 30 anos, nossa razão produziu um enorme esforço de compreensão do gesto criminoso. Bibliotecas inteiras explicam (sem justificar, mas explicam) a crueldade do assassino ou a violência do estuprador: é a culpa dos genes, das infâncias infelizes, das injustiças sociais. As explicações celebram a engenhosidade de nossa razão e alimentam seu otimismo arrogante: repararemos as injustiças, compensaremos com carinho pedagógico as infâncias infelizes, curaremos os estorvos genéticos. O mal, em suma, é uma anomalia que entendemos e que, portanto, saberemos corrigir.
Talvez esteja na hora de duvidar dessa perigosa arrogância de nossa razão. E de aceitar que há loucuras e há crueldades que escapam ao nosso entendimento e que não podemos emendar.
Primeiro, as loucuras. Em outubro, a Human Rights Watch, uma ONG pela defesa dos direitos humanos, publicou um relatório sobre a doença mental nas prisões americanas, "U.S. Prisons and Offenders with Mental Illness" (Prisões dos EUA e Delinquentes com Doença Mental, acessível on-line, http://www.hrw.org/reports/2003/usa1003/).
Constata-se o seguinte: nos EUA, há mais "doentes mentais" nas prisões do que nos (periclitantes) hospitais psiquiátricos. O editorial da Folha de 10 de novembro salientava os resultados da pesquisa.
Essa situação (que não deve ser muito diferente no Brasil e, em geral, no mundo ocidental) é um efeito da arrogância de nossa razão.
Desde o começo dos anos 60, a instituição psiquiátrica de internamento foi desmantelada, por duas razões, à primeira vista, ótimas. Os progressos da farmacologia levavam a esperar que os pacientes mais graves seriam contidos pelos remédios. Ao mesmo tempo, o clima da época era de otimismo subjetivo: nenhum transtorno resistiria ao diálogo e à inclusão generosa. O presidente Kennedy, em 1963, ao assinar a lei que instituía os centros comunitários de saúde mental, afirmava que a segregação seria substituída "pelo calor da comunidade cuidadosa e capaz". Quer fosse pela química, quer fosse pelo carinho, ninguém ficaria a ver ou a alucinar navios.
Aconteceu, ao contrário, que as ruas das grandes cidades se povoaram de figuras errantes, à deriva, miseráveis ou ameaçadoras.
Claro, nos EUA como alhures, faltaram os investimentos em centros comunitários etc. Mas resta que as duas esperanças, da farmacologia e da mão estendida da comunidade, manifestavam a mesma vontade de negar a existência de transtornos, de sofrimentos ou simplesmente de configurações da personalidade que podem ser inconciliáveis com a convivência social.
A prisão toma conta, hoje, dos sujeitos que não soubemos disciplinar nem à força de drogas nem à força de palavras e gestos de inclusão.
Vamos às crueldades. A prisão moderna nasceu do mesmo devaneio da razão que fechou o hospital psiquiátrico.
Vale a pena revisitar "Vigiar e Punir", de Michel Foucault. Dois séculos atrás, decidimos que não era o caso de infligir suplícios públicos aos criminosos, até porque o espetáculo poderia nos enternecer. Afinal, a modernidade nos convida a reconhecer em cada homem nosso semelhante: como não ter compaixão pelos açoitados, queimados e desmembrados em praça pública? Melhor guardá-los num lugar fechado e apostar que a disciplina da prisão, a longo prazo, os reeducará e os tornará aptos a voltar ao nosso convívio. Tanto mais que o projeto de reformar seus espíritos confirma nossa idéia de que, no fundo, somos todos humanos.
As boas intenções morreram na praia. A prisão deveria celebrar a onipotência da razão mostrando a prodigiosa mudança dos extraviados, que reencontrariam seu caminho. Só mostrou nossa capacidade de isolar os delinquentes. Alguém tem uma proposta melhor?
Talvez a gente invente um dia soluções diferentes para as crueldades que não podem conviver conosco. Só espero que as invenções futuras não sejam ditadas pela arrogância pedagógica de nossa razão.
Pois há formas de loucura que a razão não pode conter. E há formas de ódio que a razão não pode reeducar.
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