Na "New York Times Magazine" de domingo passado, David Brooks (o autor de "Bubos no Paraíso") comentava o lançamento da versão on-line dos "Sims".
Os "Sims" (os simulados) é um jogo para computador que existe desde 2000 e que se tornou extremamente popular. Nada a ver com os cenários de combate de "Quake" ou "DukeNukem". Nada a ver com o mundo heróico e fantástico de "Final Fantasy". Nos "Sims", os jogadores circulam num habitat parecido com o mundo da classe média (sobretudo suburbana) e são convidados a simular a banalidade da vida.
Você volta do trabalho, prepara o jantar, vai ao shopping, ocupa-se das crianças, chama o encanador, lava os pratos, briga com seu ex, tenta encontrar alguém interessante para sair, paga as contas etc. Quando tudo isso acaba, senta-se ao computador e faz tudo de novo, na tela, simulando. Qual é a graça?
Eu imaginava, inicialmente, que a graça consistiria em compensar as frustrações do cotidiano. Os jogadores poderiam se inventar mais bonitos e mais bem-sucedidos. Aproveitariam a simulação para ludibriar seus superiores e pensar, enfim, no seu prazer. A dita simulação seria, em suma, uma transformação radical.
Mas a razão do sucesso dos "Sims" não foi essa. Frequentei um pouco os sites de discussão para jogadores dos "Sims". Descobri o seguinte: quem joga na esperança de se tornar Indiana Jones ou Lara Croft cansa rapidamente. A maioria dos jogadores assíduos parece inventar máscaras, mundos e dificuldades iguais às de sua vida real.
Até agora, essas eram apenas impressões, pois, como saber o que cada um faz, jogando sozinho com o programa, na intimidade de seu disco rígido? A partir de dezembro, a coisa mudará. Pagando uma pequena mensalidade, os jogadores internautas poderão conviver e interagir no mesmo mundo simulado.
Nos últimos meses, mais de 35 mil pessoas jogaram os "Sims" nesse mundo virtual comum, com o intento de testar o sistema (inicialmente previsto para 1 milhão de jogadores). David Brooks teve acesso a esse teste e confirma: o barato dos "Sims" consiste em duplicar as tribulações do cotidiano, não em escapar para outra vida. Estranho? Nem tanto.
Somos todos Madame Bovary. Ou seja, podemos viver na mediocridade, mas sonhamos com grandes paixões: meu trabalho é chato, meu parceiro não transa direito e fala pior ainda, mas leio Bárbara Cartland e assisto a "Titanic". No entanto, à diferença de Madame Bovary, nós somos leitores de "Madame Bovary", o livro. Ou seja, fugimos, como ela, enveredando em sonhos extremos de amor e de aventura, mas nem toda a ficção, para nós, é evasão ou compensação. Às vezes, gostamos de sonhar com a vida que temos e queremos histórias que mostrem a banalidade medíocre de nossos dias, histórias, por exemplo, que contem a vida de Madame Bovary. Por quê?
Pelas mesmas razões pelas quais se escrevem diários: para que a vida de cada dia tenha a dignidade de uma história contada. Os diários provam que a vida deve valer, ao menos, a tinta necessária para contá-la. Os "Sims" têm a mesma função: se volto para casa e simulo meu dia na tela, é uma maneira de afirmar que minha vida merece ser contada ou simulada. Quem sabe o jogo no universo paralelo dos "Sims" reavive, em nossa cultura, o carinho pela vida como ela é.
Há um outro interesse dos "Sims". Em sua versão on-line, o jogo será um laboratório. Psicólogos e sociólogos terão acesso a um universo construído por milhões de pessoas que, interagindo, inventam uma vida em comum. É uma extraordinária ocasião de descobrir e medir modelos culturais, ideais sociais, tendências etc.
Um exemplo, desde já. David Brooks relata que, durante o teste do sistema, Will Wright (inventor dos "Sims") foi impressionado pelos esforços que muitos jogadores consagravam à tarefa de encontrar amigos que quisessem compartilhar casa ou apartamento (isso no mundo virtual dos "Sims"). Parecia que eles estavam mais preocupados em constituir um grupo de faixas com quem dividir o aluguel do que em procurar uma alma gêmea com quem viver a dois.
A observação de Will Wright me fez pensar num adolescente com quem tenho conversado um pouco nestes dias. Durante o colégio, ele não teve sorte em amor e conheceu só prazeres solitários. Chegado à universidade, eis que ele gostou de uma moça que gostou dele. Passaram um ano juntos, felizes. De repente, ele quer sair da relação porque, declara, tem nostalgia "do grupo dos amigos".
Há razões singulares para essa vacilação, mas a observação de Will Wright aponta para uma explicação cultural imprescindível.
Para a geração que chega hoje à idade adulta, o ideal de uma vida que valha a pena não é dramático e intenso, não é, por exemplo, uma paixão amorosa. Ao contrário, a vida sonhada é leve (ou leviana?) como uma sucessão de piadas entre amigos. Seu modelo não é mais a novela, brasileira ou mexicana que seja, mas o seriado: justamente, "Seinfeld" ou "Friends", em que não há amores, só amigos engraçados que vivem juntos e se divertem. Como se divertem...
quinta-feira, 28 de novembro de 2002
quinta-feira, 21 de novembro de 2002
Edifício Master
Estréia amanhã, no Brasil, "Edifício Master", documentário de Eduardo Coutinho, o autor de "Santo Forte" e "Babilônia 2000".
O Master é um prédio de Copacabana, a uma quadra da praia. São 276 conjugados (23 por andar), em que vivem mais ou menos 500 pessoas (donos ou inquilinos). O aluguel de um apartamento é por volta de R$ 350, com despesas de condomínio de R$ 135.
Coutinho e sua equipe ficaram no prédio por um mês, filmando entrevistas. Na montagem final, aparecem os depoimentos de 37 moradores.
Antes de assistir ao filme, ao anoitecer, contemple o tabuleiro das janelas acesas na fachada de um grande prédio. A luz trêmula dos televisores parece sugerir uma banalidade comum. Alguém dirá: são vidas massificadas (sempre subentendendo: à diferença da minha, não é?). Mas as sombras que se movimentam atrás das cortinas falam de existências concretas: quem são nossos vizinhos?
Fique mais um pouco na frente do prédio e considere o paradoxo da modernidade urbana: uma extrema proximidade física, vidas que se tecem a poucos metros umas das outras, atrás de uma parede ou de um piso, mas que mal se cruzam. De maneira inédita na história e na variedade das culturas, nós acreditamos que todos são nossos irmãos ou semelhantes. Mas não conseguimos bem explicar por quê e no quê. Os prédios em que moramos são aldeias paradoxais: compartilhamos cheiros, barulhos, gritos, sem por isso saber o que define a nossa tribo; ou seja, sem saber o que temos em comum ou mesmo sem admitir que tenhamos algo em comum. Até porque, em geral, preferimos curtir a ilusão de nossa unicidade absoluta.
Qual é o comum denominador de humanidade que reconhecemos em nossos vizinhos e semelhantes? Como essa humanidade comum se concilia com a presunção de nossa unicidade? O filme de Coutinho responde. Graças a ele, descobrimos que nossos vizinhos não são exóticos; ao contrário, são banais, mas, apesar disso, suas vidas são tão únicas quanto as nossas.
Em suma, somos todos membros da mesma tribo moderna justamente por isso: porque somos todos únicos. No edifício Master, nos sentiríamos em casa, não apesar da diversidade das escolhas e dos destinos, mas por causa dessa diversidade.
Vera viveu no Master a vida toda, mas teve uma existência cigana, porque passou por 28 apartamentos diferentes: sem deixar o edifício, viu suicídios, assassinatos, mortes, cafetinas e prostitutas. Esther, que foi costureira "da alta sociedade", começou um dia a tirar retratos e ficou encantada consigo mesma. Renata fugiu da mãe que a forçou a abortar e, agora, ela tem um namorado nos EUA. Nadir tem oito netos, toca e canta. Carlos e Maria Regina se amam, mas ele tem mania de olhar para outras mulheres, e ela quis se jogar pela janela. Três jovens querem ser músicos. Oswaldo e Geicy são felizes: encontraram-se pelos classificados, começaram a morar juntos três dias depois e são um casal há 13 anos. Daniela, que viveu em Nova Orleans, EUA, luta contra seu medo de encarar a vida escrevendo poesias em inglês e pintando: ela mostra um quadro intitulado "A Floresta de meu Desespero". Roberto, camelô e aposentado, ainda chora a morte de seus pais. Alessandra sustenta a si mesma e a sua filha fazendo programas: é tão bonita e corajosa que, depois do filme, aposto que receberá propostas de casamento pelo correio. Jasson compôs e canta samba. Fernando José foi ator em mais de 30 novelas e 62 filmes. Cristina foi exilada no Master, junto com o filhinho, pelo pai de classe média alta, revoltado pela gravidez precoce da filha. Maria Pia, espanhola e doméstica, já visitou duas vezes a Europa. Suze foi dançarina e cantora no Japão. Paulo Mata jogou futebol no México, na França, nos EUA e na Venezuela, foi treinador na Arábia Saudita e no Sudão e agora compõe e canta. Eugênia é poeta. E por aí vai.
O Master é um edifício de pequena classe média. Seus moradores são, socialmente, de pequena classe média, mas eles não têm nada de médio e nada de pequeno: são todos heróis. Pela arte de Coutinho, suas vidas, milagrosamente, revelam uma grandiosidade épica.
Henrique emigrou para os EUA com 17 anos. Vive de sua aposentadoria americana, sozinho e modestamente. O que ele conseguiu já deu para os filhos, que residem todos nos EUA.
Recentemente, caiu e teve um derrame. Recuperado, canta para nós "My Way" de Sinatra, com entusiasmo e braço erguido. Ao escutá-lo e vê-lo cantar naquele pequeno conjugado de Copacabana, longe de qualquer estereótipo do sucesso, poderíamos perguntar: mas qual é seu triunfo, qual o seu orgulho? A letra da música de Sinatra responde: Henrique canta e se comove porque viveu "do jeito que quis". Orgulha-se e celebra a grandeza de ter vivido e de viver. Só isso, mas não conheço postura mais digna.
P.S. Uma sugestão: se você gostar do filme de Coutinho, ou seja, se você achar graça e grandeza nos heróis do apartamento ao lado e do andar de cima, leia ou volte a ler o livro de Georges Perec, "A Vida - Modo de Usar".
O Master é um prédio de Copacabana, a uma quadra da praia. São 276 conjugados (23 por andar), em que vivem mais ou menos 500 pessoas (donos ou inquilinos). O aluguel de um apartamento é por volta de R$ 350, com despesas de condomínio de R$ 135.
Coutinho e sua equipe ficaram no prédio por um mês, filmando entrevistas. Na montagem final, aparecem os depoimentos de 37 moradores.
Antes de assistir ao filme, ao anoitecer, contemple o tabuleiro das janelas acesas na fachada de um grande prédio. A luz trêmula dos televisores parece sugerir uma banalidade comum. Alguém dirá: são vidas massificadas (sempre subentendendo: à diferença da minha, não é?). Mas as sombras que se movimentam atrás das cortinas falam de existências concretas: quem são nossos vizinhos?
Fique mais um pouco na frente do prédio e considere o paradoxo da modernidade urbana: uma extrema proximidade física, vidas que se tecem a poucos metros umas das outras, atrás de uma parede ou de um piso, mas que mal se cruzam. De maneira inédita na história e na variedade das culturas, nós acreditamos que todos são nossos irmãos ou semelhantes. Mas não conseguimos bem explicar por quê e no quê. Os prédios em que moramos são aldeias paradoxais: compartilhamos cheiros, barulhos, gritos, sem por isso saber o que define a nossa tribo; ou seja, sem saber o que temos em comum ou mesmo sem admitir que tenhamos algo em comum. Até porque, em geral, preferimos curtir a ilusão de nossa unicidade absoluta.
Qual é o comum denominador de humanidade que reconhecemos em nossos vizinhos e semelhantes? Como essa humanidade comum se concilia com a presunção de nossa unicidade? O filme de Coutinho responde. Graças a ele, descobrimos que nossos vizinhos não são exóticos; ao contrário, são banais, mas, apesar disso, suas vidas são tão únicas quanto as nossas.
Em suma, somos todos membros da mesma tribo moderna justamente por isso: porque somos todos únicos. No edifício Master, nos sentiríamos em casa, não apesar da diversidade das escolhas e dos destinos, mas por causa dessa diversidade.
Vera viveu no Master a vida toda, mas teve uma existência cigana, porque passou por 28 apartamentos diferentes: sem deixar o edifício, viu suicídios, assassinatos, mortes, cafetinas e prostitutas. Esther, que foi costureira "da alta sociedade", começou um dia a tirar retratos e ficou encantada consigo mesma. Renata fugiu da mãe que a forçou a abortar e, agora, ela tem um namorado nos EUA. Nadir tem oito netos, toca e canta. Carlos e Maria Regina se amam, mas ele tem mania de olhar para outras mulheres, e ela quis se jogar pela janela. Três jovens querem ser músicos. Oswaldo e Geicy são felizes: encontraram-se pelos classificados, começaram a morar juntos três dias depois e são um casal há 13 anos. Daniela, que viveu em Nova Orleans, EUA, luta contra seu medo de encarar a vida escrevendo poesias em inglês e pintando: ela mostra um quadro intitulado "A Floresta de meu Desespero". Roberto, camelô e aposentado, ainda chora a morte de seus pais. Alessandra sustenta a si mesma e a sua filha fazendo programas: é tão bonita e corajosa que, depois do filme, aposto que receberá propostas de casamento pelo correio. Jasson compôs e canta samba. Fernando José foi ator em mais de 30 novelas e 62 filmes. Cristina foi exilada no Master, junto com o filhinho, pelo pai de classe média alta, revoltado pela gravidez precoce da filha. Maria Pia, espanhola e doméstica, já visitou duas vezes a Europa. Suze foi dançarina e cantora no Japão. Paulo Mata jogou futebol no México, na França, nos EUA e na Venezuela, foi treinador na Arábia Saudita e no Sudão e agora compõe e canta. Eugênia é poeta. E por aí vai.
O Master é um edifício de pequena classe média. Seus moradores são, socialmente, de pequena classe média, mas eles não têm nada de médio e nada de pequeno: são todos heróis. Pela arte de Coutinho, suas vidas, milagrosamente, revelam uma grandiosidade épica.
Henrique emigrou para os EUA com 17 anos. Vive de sua aposentadoria americana, sozinho e modestamente. O que ele conseguiu já deu para os filhos, que residem todos nos EUA.
Recentemente, caiu e teve um derrame. Recuperado, canta para nós "My Way" de Sinatra, com entusiasmo e braço erguido. Ao escutá-lo e vê-lo cantar naquele pequeno conjugado de Copacabana, longe de qualquer estereótipo do sucesso, poderíamos perguntar: mas qual é seu triunfo, qual o seu orgulho? A letra da música de Sinatra responde: Henrique canta e se comove porque viveu "do jeito que quis". Orgulha-se e celebra a grandeza de ter vivido e de viver. Só isso, mas não conheço postura mais digna.
P.S. Uma sugestão: se você gostar do filme de Coutinho, ou seja, se você achar graça e grandeza nos heróis do apartamento ao lado e do andar de cima, leia ou volte a ler o livro de Georges Perec, "A Vida - Modo de Usar".
quinta-feira, 14 de novembro de 2002
Suzane: pano de fundo
É sábado . Parece que, na cidade, só se fala da confissão de Suzane von Richthofen. Com o namorado e o irmão dele, ela levou a cabo o assassinato de seus pais, que se opunham ao namoro. Calma, não é necessário trancar os quartos; filhos e filhas não nos matarão nesta noite. Mas muitos pais se perguntam: a casa dos Richthofen era muito diferente da nossa?
À noite, vou ao shopping Frei Caneca, para assistir a "Madame Satã", e João, motorista do táxi Abreu que me leva, comenta sobre Suzane: "Matar os pais por causa do namorado é safadeza mesmo". Parece-lhe intolerável que a cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a aliança entre pais e filhos. Concordo, mas receio que a coisa não seja uma novidade.
Enquanto espero a hora do filme, erram pelos corredores do shopping vários grupos de adolescentes. São coesos, cada grupo tem um "look" próprio: um corte de cabelo, uma maneira de vestir as calças, um jeito de andar. Passam três meninos de oito ou nove anos, todos com um brinco na orelha direita. São graciosos, mas o que estão fazendo de noite, num shopping, sozinhos?
É uma banalidade: cada vez mais, na vida dos jovens, na escolha de suas condutas e na invenção de sua identidade íntima, os companheiros contam mais do que os pais. O pai de Suzane não gostou disso, reagiu e morreu coberto de razão, pois ficou demonstrado que as companhias de Suzane eram, bem como ele pensava, péssimas.
Em 1998, o livro de Judith Rich Harris "Diga-me com Quem Anda..." provocou um pequeno tumulto no mundo da psicologia. Rich Harris declarava que os jovens não são (mais) o efeito dos cuidados que receberam na sua primeira infância. Pouco importa que, com suas crianças, você seja carinhoso ou estupidamente ausente: de qualquer forma, a influência do grupo de amigos decidirá quem serão seus filhos. Os jovens se formam em relações horizontais, entre companheiros e iguais. As relações verticais, hierárquicas (com os pais e outros adultos dotados de autoridade), contam cada vez menos.
Não é de estranhar. A personalidade moderna vive numa permanente consulta ao olhar dos outros: existo porque os companheiros de meu grupo, os meus semelhantes, me aprovam e me tratam como um membro do bando. Devo quem eu sou a eles, não à bênção de alguém acima de mim. A cumplicidade e o mimetismo nas parceiradas são mais importantes do que os imperativos da autoridade.
Parêntese: essa mudança não se deu contra ou apesar dos adultos. Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a ser respeitados e obedecidos. Em suma, a subjetividade dos pais também mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos poucos, uma parceria horizontal.
Ora, ser mais membro de seu grupo do que filho de seus pais acarreta algumas consequências, que constituem o pano de fundo do crime de Suzane & cia. Para quem prefere o grupo à hierarquia familiar, o que vem dos pais não tem valor simbólico. As interdições aparecem como a expressão de uma autoridade que se justifica só na violência; a reação, se acontecer, será também violenta. Da mesma forma, o que se espera que os pais transmitam não são princípios ou exemplos, apenas bens materiais: a herança é só grana.
Outra consequência é a urgência. As relações verticais ensinavam a pacientar: um dia, você subirá na hierarquia, será adulto e tomará nosso lugar. Mas, para quem vive de relações horizontais, não há nenhuma razão para esperar. Quem estiver me atrasando que saia do caminho.
A droga, além de reforçar a cumplicidade do grupo (à diferença dos babacas, nós sabemos o que é bom), satisfaz e encoraja a urgência do querer. Não espere, o futuro sonhado já está aqui, ao alcance da mão, tome.
Depois de assistir a "Madame Satã", na falta da Lapa carioca dos anos 30, vou a pé até a Boca do Lixo, para prolongar o prazer do filme. Numa lanchonete na esquina da Augusta com a Dona Antônia de Queiroz, participo de outra conversa sobre a confissão de Suzane. Uma figura saída do filme de Karim Ainouz exclama: "Coisa de louco, logo num bairro bom". Aparentemente, segundo ele, o crime contradiz a geografia da moralidade. Apesar de todas as revelações de Freud, a casa de família de classe média e de bairro bom continua aparecendo como o lugar do bem. E a Lapa ou a Boca do Lixo, como seus opostos.
Mas há crimes -quase sempre às escondidas, mas desta vez às claras- que nos lembram qual é o preço do bem-estar moderno, que é próprio das casas dos bairros bons. No caso, o preço é uma subjetividade sem mandato, que, para descobrir a que veio, só sabe entregar-se ao conformismo dos pequenos grupos e exigir satisfações imediatas.
Mais um detalhe: muitos acharam que, no enterro dos pais, Suzane fingiu seu choro e que seu pranto seria a prova de seu cinismo. Mas uma subjetividade sem mandato não precisa fingir. Basta-lhe conformar-se ao grupo, conquistá-lo. Na parceria dos enlutados, ao redor da fossa, a órfã inconsolável era uma identidade ideal. E Suzane, aposto, chorou de verdade.
À noite, vou ao shopping Frei Caneca, para assistir a "Madame Satã", e João, motorista do táxi Abreu que me leva, comenta sobre Suzane: "Matar os pais por causa do namorado é safadeza mesmo". Parece-lhe intolerável que a cumplicidade com namorados e amigos prevaleça sobre a aliança entre pais e filhos. Concordo, mas receio que a coisa não seja uma novidade.
Enquanto espero a hora do filme, erram pelos corredores do shopping vários grupos de adolescentes. São coesos, cada grupo tem um "look" próprio: um corte de cabelo, uma maneira de vestir as calças, um jeito de andar. Passam três meninos de oito ou nove anos, todos com um brinco na orelha direita. São graciosos, mas o que estão fazendo de noite, num shopping, sozinhos?
É uma banalidade: cada vez mais, na vida dos jovens, na escolha de suas condutas e na invenção de sua identidade íntima, os companheiros contam mais do que os pais. O pai de Suzane não gostou disso, reagiu e morreu coberto de razão, pois ficou demonstrado que as companhias de Suzane eram, bem como ele pensava, péssimas.
Em 1998, o livro de Judith Rich Harris "Diga-me com Quem Anda..." provocou um pequeno tumulto no mundo da psicologia. Rich Harris declarava que os jovens não são (mais) o efeito dos cuidados que receberam na sua primeira infância. Pouco importa que, com suas crianças, você seja carinhoso ou estupidamente ausente: de qualquer forma, a influência do grupo de amigos decidirá quem serão seus filhos. Os jovens se formam em relações horizontais, entre companheiros e iguais. As relações verticais, hierárquicas (com os pais e outros adultos dotados de autoridade), contam cada vez menos.
Não é de estranhar. A personalidade moderna vive numa permanente consulta ao olhar dos outros: existo porque os companheiros de meu grupo, os meus semelhantes, me aprovam e me tratam como um membro do bando. Devo quem eu sou a eles, não à bênção de alguém acima de mim. A cumplicidade e o mimetismo nas parceiradas são mais importantes do que os imperativos da autoridade.
Parêntese: essa mudança não se deu contra ou apesar dos adultos. Os pais de hoje preferem ser bem-vistos e amados por seus filhos a ser respeitados e obedecidos. Em suma, a subjetividade dos pais também mudou com a modernidade, e a família torna-se, aos poucos, uma parceria horizontal.
Ora, ser mais membro de seu grupo do que filho de seus pais acarreta algumas consequências, que constituem o pano de fundo do crime de Suzane & cia. Para quem prefere o grupo à hierarquia familiar, o que vem dos pais não tem valor simbólico. As interdições aparecem como a expressão de uma autoridade que se justifica só na violência; a reação, se acontecer, será também violenta. Da mesma forma, o que se espera que os pais transmitam não são princípios ou exemplos, apenas bens materiais: a herança é só grana.
Outra consequência é a urgência. As relações verticais ensinavam a pacientar: um dia, você subirá na hierarquia, será adulto e tomará nosso lugar. Mas, para quem vive de relações horizontais, não há nenhuma razão para esperar. Quem estiver me atrasando que saia do caminho.
A droga, além de reforçar a cumplicidade do grupo (à diferença dos babacas, nós sabemos o que é bom), satisfaz e encoraja a urgência do querer. Não espere, o futuro sonhado já está aqui, ao alcance da mão, tome.
Depois de assistir a "Madame Satã", na falta da Lapa carioca dos anos 30, vou a pé até a Boca do Lixo, para prolongar o prazer do filme. Numa lanchonete na esquina da Augusta com a Dona Antônia de Queiroz, participo de outra conversa sobre a confissão de Suzane. Uma figura saída do filme de Karim Ainouz exclama: "Coisa de louco, logo num bairro bom". Aparentemente, segundo ele, o crime contradiz a geografia da moralidade. Apesar de todas as revelações de Freud, a casa de família de classe média e de bairro bom continua aparecendo como o lugar do bem. E a Lapa ou a Boca do Lixo, como seus opostos.
Mas há crimes -quase sempre às escondidas, mas desta vez às claras- que nos lembram qual é o preço do bem-estar moderno, que é próprio das casas dos bairros bons. No caso, o preço é uma subjetividade sem mandato, que, para descobrir a que veio, só sabe entregar-se ao conformismo dos pequenos grupos e exigir satisfações imediatas.
Mais um detalhe: muitos acharam que, no enterro dos pais, Suzane fingiu seu choro e que seu pranto seria a prova de seu cinismo. Mas uma subjetividade sem mandato não precisa fingir. Basta-lhe conformar-se ao grupo, conquistá-lo. Na parceria dos enlutados, ao redor da fossa, a órfã inconsolável era uma identidade ideal. E Suzane, aposto, chorou de verdade.
quinta-feira, 7 de novembro de 2002
Balanços do boom dos anos 90
Sob o título comum "A Guerra de Classe", o "New York Times" acaba de publicar dois balanços opostos da última década e do boom econômico que está implodindo.
Paul Krugman, economista e colunista, assina o primeiro texto, publicado em 20 de outubro. Ele considera que os anos 90, por mais que tenham sido agradáveis e festivos, foram o momento conclusivo de uma transformação desastrosa para a sociedade americana. Krugman constata que, nos últimos 30 anos, o poder aquisitivo do americano médio aumentou apenas 10%. No mesmo período, o salário médio dos cem dirigentes mais generosamente remunerados evoluiu de maneira diferente. Em 1970, ele era 39 vezes o salário médio do trabalhador; em 2000, os dirigentes ganhavam mais de mil vezes o que ganhava um trabalhador.
A partir dos anos 70 e com uma aceleração brutal na última década, a economia americana produziu uma concentração de renda e um nível de desigualdade que lembram a época do capitalismo selvagem. Estamos de volta aos tempos do Grande Gatsby. No começo do século, os Vanderbilts, Morgans etc. construíam mansões que eram verdadeiros museus da extravagância. Hoje, celebram-se arquitetos especializados em construir casas de 2.000 a 6.000 metros quadrados. Qual é a diferença?
Ora, observa Krugman, entre 1930 e 1970, houve um interregno em que a América foi um país de classe média, relativamente igualitário e, sobretudo, animado por questões morais, e não só pela sede de lucros. Esse universo, no qual Krugman cresceu, surgiu após a Depressão de 1929, quando o presidente Roosevelt inspirou um pacto nacional que instituiu novas normas de justiça social na consciência americana. Essas normas resistiram por mais de três décadas. A América foi, durante esse tempo, um país nada idílico, ainda racista, capaz de todos os bigotismos, mas também constantemente preocupado com a iniquidade. Aquelas décadas foram a matriz das lutas pelos direitos civis e da contracultura dos anos 60.
Quer reconstruir esse percurso? Para evocar a América absurdamente desigual do começo do século 20, leia ou veja "O Grande Gatsby" ou "A Idade da Inocência". Logo, assista a "Wall Street" (1987) e a "American Psycho" (1991), que (deixando de lado os excessos homicidas do segundo) fornecem exemplos da personalidade ideal dos anos 90. Enfim, para ter uma imagem das melhores décadas americanas entre 1930 e os anos 70, veja ou leia "O Sol É para Todos" (romance de Harper Lee e filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck, três Oscars em 1962).
Também acaba de ser reeditado em livro de bolso outro romance famoso: "The Man in the Grey Flannel Suit" (O Homem com o Terno de Flanela Cinzenta), de Sloan Wilson, que foi um best-seller em 1955 e deu lugar a um filme, também com Gregory Peck. É a história dos tormentos de um homem que, para conseguir um salário melhor, preenche uma função que ele mesmo não aprova e que, em suas palavras, consiste em sugerir às pessoas que comprem e consumam "até que possam explodir de felicidade".
Compare os escrúpulos do herói com o cinismo de Michael Douglas no papel de Gordon Gekko, o protagonista de "Wall Street" que promovia a moral dos anos 90, declarando: "A cobiça é uma coisa boa".
Em suma, a verdadeira crise não foi o estouro da bolha na Bolsa. A crise que importa foi moral e aconteceu enquanto se festejavam sucessos e lucros: na ganância que tomou conta de todos, a sociedade perdeu seu rumo.
O outro texto da série (publicado em 27 de outubro e menos interessante) é de Michael Lewis, escritor e ex-investidor. Lewis, simplesmente, defende os anos 90: a década trouxe transformações tecnológicas que ainda darão frutos graúdos e, sobretudo para ele, a década valeu por ser uma expressão de nossa natureza. A cobiça não é nem boa nem ruim, ela nos define.
Inevitavelmente, o leitor dos dois textos fica com uma pergunta. Será que o liberalismo só sabe promover uma ética pela qual o bem coincide com o ganho? Ou, então, o interregno caro a Krugman não foi apenas uma irregularidade, e a América, com o Ocidente liberal, poderiam viver de outros valores que não a cobiça?
A questão parece primária e abstrata, mas ela é central, hoje, no espírito dos americanos. E talvez explique por que muitos encaram sem hesitação a perspectiva de uma guerra cuja necessidade estratégica não está muito clara.
Os escândalos Enron, Tyco, Worldcom etc. revelaram a face obscena da festa dos anos 90 e a debilidade moral que espreita a vontade de lucro. A guerra, ao contrário, é apresentada, entendida e vivida não como um conflito de interesses materiais, mas como uma luta entre culturas inconciliáveis. Ela aparece, portanto, como demonstração de que a América, apesar da cobiça dos anos 90, ainda tem valores para promover e defender. A guerra, em suma, é aceita porque parece ser um comportamento moral, uma maneira de se reabilitar depois dos excessos materialistas dos anos 90: quem luta e arrisca a vida para defender sua cultura não pode ser igual a Gordon Gekko.
Paul Krugman, economista e colunista, assina o primeiro texto, publicado em 20 de outubro. Ele considera que os anos 90, por mais que tenham sido agradáveis e festivos, foram o momento conclusivo de uma transformação desastrosa para a sociedade americana. Krugman constata que, nos últimos 30 anos, o poder aquisitivo do americano médio aumentou apenas 10%. No mesmo período, o salário médio dos cem dirigentes mais generosamente remunerados evoluiu de maneira diferente. Em 1970, ele era 39 vezes o salário médio do trabalhador; em 2000, os dirigentes ganhavam mais de mil vezes o que ganhava um trabalhador.
A partir dos anos 70 e com uma aceleração brutal na última década, a economia americana produziu uma concentração de renda e um nível de desigualdade que lembram a época do capitalismo selvagem. Estamos de volta aos tempos do Grande Gatsby. No começo do século, os Vanderbilts, Morgans etc. construíam mansões que eram verdadeiros museus da extravagância. Hoje, celebram-se arquitetos especializados em construir casas de 2.000 a 6.000 metros quadrados. Qual é a diferença?
Ora, observa Krugman, entre 1930 e 1970, houve um interregno em que a América foi um país de classe média, relativamente igualitário e, sobretudo, animado por questões morais, e não só pela sede de lucros. Esse universo, no qual Krugman cresceu, surgiu após a Depressão de 1929, quando o presidente Roosevelt inspirou um pacto nacional que instituiu novas normas de justiça social na consciência americana. Essas normas resistiram por mais de três décadas. A América foi, durante esse tempo, um país nada idílico, ainda racista, capaz de todos os bigotismos, mas também constantemente preocupado com a iniquidade. Aquelas décadas foram a matriz das lutas pelos direitos civis e da contracultura dos anos 60.
Quer reconstruir esse percurso? Para evocar a América absurdamente desigual do começo do século 20, leia ou veja "O Grande Gatsby" ou "A Idade da Inocência". Logo, assista a "Wall Street" (1987) e a "American Psycho" (1991), que (deixando de lado os excessos homicidas do segundo) fornecem exemplos da personalidade ideal dos anos 90. Enfim, para ter uma imagem das melhores décadas americanas entre 1930 e os anos 70, veja ou leia "O Sol É para Todos" (romance de Harper Lee e filme de Robert Mulligan, com Gregory Peck, três Oscars em 1962).
Também acaba de ser reeditado em livro de bolso outro romance famoso: "The Man in the Grey Flannel Suit" (O Homem com o Terno de Flanela Cinzenta), de Sloan Wilson, que foi um best-seller em 1955 e deu lugar a um filme, também com Gregory Peck. É a história dos tormentos de um homem que, para conseguir um salário melhor, preenche uma função que ele mesmo não aprova e que, em suas palavras, consiste em sugerir às pessoas que comprem e consumam "até que possam explodir de felicidade".
Compare os escrúpulos do herói com o cinismo de Michael Douglas no papel de Gordon Gekko, o protagonista de "Wall Street" que promovia a moral dos anos 90, declarando: "A cobiça é uma coisa boa".
Em suma, a verdadeira crise não foi o estouro da bolha na Bolsa. A crise que importa foi moral e aconteceu enquanto se festejavam sucessos e lucros: na ganância que tomou conta de todos, a sociedade perdeu seu rumo.
O outro texto da série (publicado em 27 de outubro e menos interessante) é de Michael Lewis, escritor e ex-investidor. Lewis, simplesmente, defende os anos 90: a década trouxe transformações tecnológicas que ainda darão frutos graúdos e, sobretudo para ele, a década valeu por ser uma expressão de nossa natureza. A cobiça não é nem boa nem ruim, ela nos define.
Inevitavelmente, o leitor dos dois textos fica com uma pergunta. Será que o liberalismo só sabe promover uma ética pela qual o bem coincide com o ganho? Ou, então, o interregno caro a Krugman não foi apenas uma irregularidade, e a América, com o Ocidente liberal, poderiam viver de outros valores que não a cobiça?
A questão parece primária e abstrata, mas ela é central, hoje, no espírito dos americanos. E talvez explique por que muitos encaram sem hesitação a perspectiva de uma guerra cuja necessidade estratégica não está muito clara.
Os escândalos Enron, Tyco, Worldcom etc. revelaram a face obscena da festa dos anos 90 e a debilidade moral que espreita a vontade de lucro. A guerra, ao contrário, é apresentada, entendida e vivida não como um conflito de interesses materiais, mas como uma luta entre culturas inconciliáveis. Ela aparece, portanto, como demonstração de que a América, apesar da cobiça dos anos 90, ainda tem valores para promover e defender. A guerra, em suma, é aceita porque parece ser um comportamento moral, uma maneira de se reabilitar depois dos excessos materialistas dos anos 90: quem luta e arrisca a vida para defender sua cultura não pode ser igual a Gordon Gekko.
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