quinta-feira, 9 de agosto de 2001

Recessão para a molecada



Gostamos de imaginar que, se faltasse comida, enganaríamos nossa fome mastigando cadarços -pão, bife e sorvete continuariam aparecendo no prato de nossos filhos. É normal sacrificar-se pelo bem-estar da prole.

Essa é a maneira moderna de amar os filhos: eles são uma espécie de time da prorrogação, encarregado de salvar os jogos que nós não conseguimos ganhar durante o tempo regulamentar de nossas vidas. Portanto vê-los saborear pratos dos quais nós nos privamos é uma consolação: penamos, mas, em compensação, eles, carne de nossa carne, desfrutam cada instante.

Esse estereótipo é confirmado pelos números do consumo juvenil na última década: nas classes médias (e não só nelas), crianças e jovens foram mimados como nunca.
Agora essa década próspera acabou. Nos EUA, as empresas não fazem mais leilões para conquistar funcionários. Ao contrário, fala-se em demissões para conter os custos. A queda da Bolsa acabou com uma fonte de dinheiro fácil.

Nem por isso deveria mudar o estereótipo mencionado acima: só seria preciso que os pais se sacrificassem um pouco mais. Eles poderiam renunciar ao almoço para garantir o celular da menina, suprimir as saídas do sábado para subvencionar a roupa do menino etc. Ou seja, mesmo em clima de austeridade, os rebentos deveriam sofrer por último e sempre menos do que os pais.

Contrariando essa expectativa, um artigo do "Wall Street Journal" de 13 de julho, "A Kid Recession?" (Uma Recessão para as Crianças?), apresentou uma pesquisa segundo a qual, no fim de 2000, os adultos aumentaram (levemente) seus gastos, enquanto o consumo destinado a jovens de 8 a 24 anos de idade diminuiu em um terço. Em 2001, a tendência está confirmada: até agora, os adultos americanos seguem consumindo, mas 12% das crianças tiveram sua mesada cortada de maneira significativa e 16% queixam-se de que recebem menos presentes.
Será um simples efeito da crise? Não acredito.

De regra, as dificuldades financeiras não têm o poder de acalmar a paixão (narcisista) dos pais modernos pelos seus filhos. Todos conhecemos mães que vivem de bicos, mas esbanjam R$ 250 para colocar nos pés do filho um tênis que o moço mal queria, mas que constitui, para a mãe, uma revanche contra a vida. Assim como pais endividados que contratam palhaços e cantores para a festa do aniversário dos seis meses de seu nenê: mesma revanche. Quanto mais os pais se vêem como insatisfeitos, tanto mais eles podem querer compensar suas frustrações pelos filhos. "Não tenho comida? Caviar nos moleques."

Como entender, então, o artigo do "Wall Street Journal"? Pois bem, se a recessão leva os pais a cortar as mesadas e não suas próprias despesas, é provável que a falta de meios seja apenas um pretexto. Quem sabe os pais procurassem há tempos uma desculpa para interromper a festa dos filhos?

Como assim? Não foram eles, os pais, que permitiram e encorajaram a dita festa? Foram, sim. Mas nós, pais contemporâneos, somos atormentados por uma contradição. Adoraríamos que nossos descendentes tivessem tudo o que não tivemos. Ao mesmo tempo, gostaríamos que eles sofressem privações e interdições.

Explicamos essa incoerência da maneira seguinte: amamos nossos filhos e, portanto, somos generosos com eles, mas, para o próprio bem deles, queremos proibir seus prazeres, treiná-los, sei lá, para a "dura" realidade.

Essa explicação é um duplo conto de fadas. Nosso amor não é tão generoso assim: a satisfação dos filhos serve para abrandar nossas frustrações. Do mesmo jeito, uma boa parte de nossa eventual severidade não provém de alguma sabedoria pedagógica, mas de nossa inveja.

Inveja dos filhos? Pois é, antes de discordar indignado, considere esta contradição: frequentemente, quando contemplamos nossos filhos enquanto usufruem as mordomias que lhes proporcionamos, experimentamos um misto de contentamento e de mal-estar. Como se nos irritasse a naturalidade com a qual eles se valem do que nós mesmos lhes oferecemos.

Outra contradição: encaramos qualquer sacrifício para ver nossos filhos felizes e satisfeitos, mas passamos nosso tempo imaginando interdições para policiar seus prazeres. Colocamos uma televisão no quarto de uma criança, mas exigimos que ela a use apenas durante duas horas por dia. Instalamos um computador só para ela, mas queremos limitar e controlar o seu acesso à internet. Oferecemos telefone fixo e celular, mas proibimos comunicações frequentes ou longas demais. E por aí vai.

Gostaríamos, ao mesmo tempo, de dar tudo e de proibir tudo. Por quê? Suspeito que o espetáculo da "felicidade" das crianças -produzido para nosso prazer e consolo- esteja nos enjoando.

Era previsível que isso acontecesse. Mimamos os filhos para contemplar seus prazeres: eles gozando da vida, nós gozaríamos por procuração.

Inevitavelmente essa contemplação tornou-se indigesta. Por que eles e não a gente? Por que promover seus prazeres vicários e não pensar diretamente nos nossos? A maneira moderna de amar os filhos talvez tenha chegado a um impasse.

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