quinta-feira, 5 de abril de 2001

Dores do espírito e dos músculos

Respondendo à solicitação dos familiares, encontrei uma senhora que acabava de receber um diagnóstico de fibromialgia (literalmente: dor das fibras musculares).

A doença começa a chamar a atenção da grande imprensa. Ela foi reconhecida (ou inventada) oficialmente há uma década e afetaria hoje 2% dos americanos (sobretudo mulheres brancas). No site da fibromialgia na Internet (www.fmnetnews.com), são lembrados os critérios diagnósticos: dores corporais difusas durante três meses e vários pontos do corpo doloridos ao toque - no mínimo 11 numa lista de 18 localizações em várias regiões: pescoço, ombros, quadris, joelhos e cotovelos. Além disso, uma série de sintomas associados, um pouco incertos: fadiga, irritabilidade intestinal (qualquer coisa da diarréia à constipação), desordens do sono ou sono não-restaurador, dores após o exercício físico, dor de cabeça, cólicas menstruais e por aí vai.

A fibromialgia não tem causa conhecida e não produz alterações fisiológicas verificáveis. Os médicos estão divididos. Alguns aceitam a existência da doença e se dedicam a tratar os sintomas dela com analgésicos (inclusive opiáceos ou metadona). No extremo oposto, outros duvidam da existência de uma doença cuja única prova são as sensações relatadas pelos pacientes. A maioria dos médicos e psiquiatras se situa provavelmente no meio, perplexa.

A família da senhora recém-diagnosticada comunicara-me vários acontecimentos muito penosos que poderiam ser relacionados com o surgimento das dores. Segundo seus próximos, a senhora reagira a uma série de perdas e desastres com surpreendente indiferença e logo adoecera. Tentei levar a conversa pelo lado desses fatos recentes. A senhora não quis tocar no assunto. Para contornar essa recusa intransigente, expliquei-lhe que, mesmo que as dores estivessem relacionadas a acontecimentos infelizes, nem por isso elas seriam menos reais: aflições psíquicas podem produzir dores físicas perfeitamente autênticas. Acrescentei que, de qualquer forma, talvez não fosse inútil que ela conversasse um pouco sobre o período sofrido que acabava de atravessar. Não houve jeito, a senhora tinha sido surrada pelo destino, mas não estava disposta a considerar que seu corpo doído pudesse ser o resultado metafórico dessa surra. Ao contrário: a dor que ela sentia no corpo parecia ter a função específica de evitar questões, indagações e conversas.

Essa posição era bem compreensível. Imagine uma série de catástrofes em sua vida -como diz a expressão, uma dor de cabeça atrás da outra. Imagine agora que seja possível tomar a dor de cabeça ao pé da letra, ou seja, converter todos os seus malogros e problemas em dores físicas. Seu filho não passou de ano, você perdeu o emprego, seu parceiro sumiu e os sofrimentos psíquicos eventuais seriam resumidos por simples dores de cabeça.

Não seria maravilhoso? Curaríamos as dores da existência com um analgésico. A tranquilidade estaria nas estantes da farmácia da esquina e custaria o preço de uma Novalgina.

Logo nos dias que seguiram meus encontros com a senhora, os jornais da Costa Leste dos EUA revelaram a difusão crescente, entre os adolescentes da região, de um remédio usado como droga: o OxyContin. Trata-se de um opiáceo poderoso justamente recomendado no tratamento da fibromialgia. A venda do OxyContin é estritamente controlada, de forma que ele chega ao circuito paralelo das drogas sendo revendido por pacientes para quem ele foi prescrito. Curioso círculo, no qual artrites, ciáticas, fibromialgias etc. parecem solidárias de uma nova toxicomania.

Claro, no uso como droga, os comprimidos de OxyContin são pulverizados e inalados ou então diluídos e injetados -o que deve produzir um "barato" imediato. Mas não deixa de ser notável que uma das drogas do momento venha a ser não um alucinógeno ou qualquer coisa que altere a consciência, mas um analgésico. Como se a dor de viver pudesse aparecer hoje como uma dor física. E, portanto, sua cura consistisse em sedar a sensibilidade do corpo.

Em suma, talvez nossas dores espirituais estejam transformando-se em dores musculares. Não seria de estranhar. Afinal, definimos o bem-estar cada vez mais do lado do corpo e cada vez menos em termos psíquicos ou espirituais. Por que não aconteceria a mesma coisa com o mal-estar?

Uma piada que ouvi nestes dias resume a situação. Um fiel pergunta levando os olhos ao céu: "Senhor, quero entender, por favor: há ou não há vida após a morte? Há ou não há vida eterna?". Depois de ele muito insistir, eis que, enfim, as nuvens se abrem, aparece um raio de luz e uma voz profunda responde: "Meu filho, essa coisa de vida eterna é muito complicada. Mas posso garantir que, se fizer exercício regularmente, parar de fumar e se alimentar direito, você viverá três ou quatro anos a mais. Por que você não se concentra nisso, que é muito mais simples do que a questão da vida eterna?"."

Um comentário:

  1. As dores da alma ou espirito, machucam muito, é um fogo que queima nossos sonhos, nossa fé em nos mesmos e como qualquer queimadura deixam marcas, cicatrizes... O remédio acredito que está dentro de nos mesmos, escondido em algum lugar pronto para ser descoberto... Deus nos ama, não a duvidas!!! Mas será que nos nós amamos??? Ou estamos tão envolvidos com nossos medos, vaidades, proplemas reais e imaginarios, com o a angustia de não ser- mos bons o suficientes, ficamos tão envolvidos com pena, dó de nos mesmos que não vemos mais nada???
    Cada um de nos tem suas dores...
    Cada um de nos tem seus medos...
    O que fazemos com eles é que muda tudo!!!!!
    Bjoss e LUZ!!!!!

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