A partir dos anos 70, as tribulações e as esperanças de cada dia pararam de ser assuntos frívolos. Na imprensa, cresceu o número de artigos sobre comportamento, sociedade e vida cotidiana. Talvez os novos temas distraíssem os leitores de afazeres mais sérios, mas, pelo menos, a maioria das reportagens indagava os objetos escolhidos. Imagine uma capa sobre o elixir de longa vida: os artigos relatariam os entusiasmos populares, mas logo exporiam os interesses econômicos em jogo e questionariam a credulidade das massas.
Algo mudou. As páginas de comportamento e de vida cotidiana são cada vez mais importantes na imprensa, mas muitas reportagens parecem sobretudo alimentar ilusões.
Acontece em todos os jornais e revistas. Esta semana foi a vez de "Istoé". Matéria de capa: "A Receita da Felicidade". Bravamente o artigo tenta mostrar a complexidade da questão, mas títulos e subtítulos desmentem o esforço dos repórteres. Por exemplo, é citada inicialmente, no texto, uma pesquisa americana insossa que acha possível nos ensinar a sermos felizes. No fim do parágrafo, os jornalistas comentam, justamente irônicos: "Simples assim". Mas o subtítulo da matéria contradiz qualquer ironia: "Cientistas comprovam que a felicidade etc". O mesmo vale para as "janelas" que acompanham o texto: são os "truques" dietéticos "para levantar o astral" e a própria "receita da felicidade".
Na semana passada, foi a vez de "Época". Nesse caso, o título da matéria de capa -"A Reconstrução do Corpo"- concordava plenamente com a reportagem: os leitores aprendiam que "técnicas arrojadas permitem o encontro das formas perfeitas". Parece-me que, poucos anos atrás, uma reportagem sobre esse tema desmascararia os lucros da indústria da aparência física, exporia os riscos das cirurgias e enumeraria as patologias do desejo de modificação corporal.
Enfim, indicaria que a insatisfação com o próprio corpo expressa quase sempre um sentimento de inadequação que se origina em outras áreas da vida, mais fundamentais e perniciosas (inadequação no amor, nos relacionamentos etc).
Mas nossa época prefere que a beleza seja fácil. E que a felicidade seja receitável.
O fenômeno não é só brasileiro. A capa de "U.S. News", de poucas semanas atrás, prometia revelar enfim "os segredos da gagueira". Ora, a reportagem propunha uma versão apenas melhorada da pedagogia da palavra de apoio que, há décadas, permite que os gagos falem. Na mesma data, a capa de "Time" convidava o leitor a descobrir "as novas curas prometedoras para centenas de fobias". De fato, do Paxil às terapias do comportamento, a única coisa nova no artigo era o otimismo de seu subtítulo.
Esse jornalismo sorridente, para festejar soluções, está disposto a inventar de maneira radical. Recentemente foi divulgada uma pesquisa sobre a localização cerebral do amor: a paixão parece ativar zonas diferentes da ternura. Isso não tem nenhuma implicação para a vida da gente. Mas o "Boston Globe", em vez de perguntar, sei lá, se a pesquisa valia o dinheiro que custou, prometeu a todos, no futuro, paixões como a de Brad Pitt por Jennifer Aniston, logo transformadas na tranquila felicidade de Paul Newman com Joanne Woodward.
O que está acontecendo? Há a hipótese paranóica: o Matrix está apoderando-se do planeta, começando pelas editorias de comportamento e de sociedade. Os extraterrestres nos preparam assim para que aceitemos a pílula da felicidade que distribuirão numa próxima invasão.
Fora essa eventualidade, resta considerar que o jornalismo da boa notícia seja um porta-voz privilegiado do momento cultural. E alguém já disse que hoje a qualquer problemática prefere-se a "solucionática".
Mas cuidado: é quase natural para nós debochar da facilidade. O romantismo nos inculcou a idéia de que as interrogações atormentadas são a nobre substância de verdade e de autenticidade. Durante muito tempo, o que não fosse triste, sombrio e difícil era considerado piegas e ridículo. O direito à felicidade, que, no começo da modernidade, foi proclamado como a nova pretensão do homem moderno, aparece hoje como uma ingenuidade para almas simplórias.
Ganhou força, sobretudo na cultura européia, a fascinação pelos impasses radicais. O impossível tornou-se sinal de elegância e de alta cultura, enquanto o possível e o realizável seriam preocupações de baixo nível. Ora, é possível que essa disposição romântica esteja se esgotando. E que, na coluna de hoje, eu seja apenas um velho rabugento que chora sobre os cacos do romantismo.
Por que não parar com isso e festejar a facilidade da felicidade? Pois é. Antes de entrar na dança, uma última pergunta: será que o sucesso da "solucionática" é o sinal de uma nova disposição de espírito mais alegre diante da tarefa de viver? Ou será que essa pretensa leveza do ser é uma vassoura com a qual empurramos furiosamente nossos problemas para baixo do tapete?
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