Estava curioso para ver os seriados da nova TV-realidade que -vinda da Europa- seduz nestes dias os espectadores americanos. Na segunda assisti "The 1900 House", na PBS: uma família de classe média (inglesa) é instalada numa casa de 1900 perfeitamente reconstruída e deve viver -durante 90 dias- se atendo rigorosamente aos recursos e aos hábitos da época. A televisão registra tudo.
Terça é a vez de "The Real World", na MTV. Um grupo de jovens de origens étnicas e sociais variadas passa o verão num casarão de New Orleans. Entendem-se ou não, gostam-se, apaixonam-se, embebedam-se, odeiam-se etc. Na frente das câmeras.
Quarta é o dia do programa de maior sucesso hoje: "Survivor", na CBS. Sobreviventes de um hipotético naufrágio são jogados numa ilha deserta do Pacífico. São pessoas de todo tipo: brancos e pretos, jovens e velhos, legais e chatos. Divididas em duas tribos, elas devem construir abrigos, encontrar a comida que a ilha oferece (churrasco de rato, por exemplo) e competir.
A cada semana, o grupo que perde vota para expulsar um dos seus. Sobreviverá só um sujeito, que levará para casa US$ 1 milhão. Aprendi pela coluna de Anna Lee na Folha que a Globo está preparando sua versão no Ceará.
Os comentadores lamentam o fim da privacidade, o voyeurismo e o exibicionismo generalizados. Estigmatizam o narcisismo: pessoas comuns olham para pessoas comuns, ou seja, olham-se no espelho. Lembram dois filmes recentes como sábios precursores de suas críticas.
"The Truman Show - O Show da Vida", com Jim Carrey, agitava o espantalho de nossa alienação num mundo que seria um estúdio de TV sem que a gente se desse conta. "EDtv" -mais engraçado- fomentava a revolta contra a insuportável invasão de privacidade imposta pela TV-realidade.
Os mesmos críticos evocam a presença persecutória das telecâmeras no universo totalitário imaginado por Orwell em "1984". Ora, toda essa indignação é o maior argumento de marketing do "televoyeurismo". A prova disso: para o 5 de julho a CBS promete "Big Brother", com dez pessoas coabitando presas numa casa onde tudo será filmado minuciosamente.
"Big Brother" (O Grande Irmão) era o nome da agência persecutória no romance de Orwell. Maneira de dizer: "É isso mesmo, que horror! Não vão perder essa...". Enfim, o inesperado foi descobrir que os programas não são chatos. E os protagonistas são ótimos. Em todos os programas há momentos em que eles fazem apartes com a câmera.
Nestes, eles são sempre convincentes, como se estivessem escrevendo para seu "caro diário". Também em todos os programas, a presença dos técnicos filmando não altera em nada o comportamento dos protagonistas. Eles agem, pensam, falam como se a situação de serem filmados fosse-lhes indiferente.
Contrariamente ao que aconteceria com atores, eles reconhecem a presença da câmera, mas não por isso são menos espontâneos. Demonstra-se que sujeitos quaisquer conseguem viver sob o olhar constante de câmeras que gravam e transmitem suas vidas pelo mundo afora sem perder por isso sua naturalidade.
Estava passeando e ponderando esta constatação quando, numa esquina perto de casa, parei ao lado de uma mulher de meia idade. Ela estava visivelmente tomada por alguma fantasia de olhos abertos e falava animadamente com um interlocutor imaginário: "E daí? Você acha mesmo que pode me tratar deste jeito...". Não estava bêbada nem drogada. De um carro, alguém a apostrofou: "Está louca?!". A mulher, vermelha de vergonha, saiu correndo. O grito me trouxe uma lembrança de quando eu era bem moço. Eu fazia isso o tempo todo: ia pelas ruas falando em voz alta com interlocutores ausentes. De vez em quando, o mesmo grito me precipitava na vergonha -só que em italiano: "O maaattoooo!".
Na verdade, ensaiava a peça de minha vida. Às vezes eu previa e preparava um encontro: "Desculpe o atraso, mas..." ou então "Foi impossível completar o dever de casa...". Elaborava maneiras de ser convincente. Não que quisesse mentir, mas -fiel a Aristóteles- sabia que a verossimilhança importa mais do que a verdade.
Outras vezes repetia uma cena que já acontecera, mas que teria um desfecho mais satisfatório se eu agisse de outro jeito. Outras, ainda, me preparava para viver as situações que, segundo prometia o cinema, algum dia se verificariam (o cinema tinha razão, se verificaram quase todas -infelizmente nem sempre consegui me valer de meus ensaios).
Com isso, entendi por que os protagonistas da TV-realidade conseguem ser naturais e espontâneos. Na verdade, estão vivendo a vida de sempre: um triunfo do aparecer, um constante jogo cênico. Vivemos para os outros, somos a imagem que conseguimos apresentar. Que diferença faz que câmeras de televisão estejam ou não apontadas para nós?
A TV-realidade pretende ser fiel à vida. À primeira vista nada está mais longe de nossa experiência do que viver no meio duma selva de câmeras apresentando nossas gestas ao mundo.
Mas é só à primeira vista: de fato, este olhar que nunca pisca e sonda sem parar nossos charmes e nossas misérias é o âmago da vida como ela é.
quinta-feira, 29 de junho de 2000
quinta-feira, 22 de junho de 2000
Ser vítima é bom e explica tudo
O barão de Munchausen ficou famoso por sua férvida imaginação. Ele exagerava e inventava ao contar suas proezas.
De maneira não muito apropriada, seu nome foi escolhido para designar uma síndrome na qual o sujeito produz intencionalmente sintomas para merecer atenção, carinho e cuidados médicos -pouco importa que isso implique investigações diagnósticas pesadas ou intervenções cirúrgicas. Estes "transtornos fictícios", como são chamados, nada têm a ver com as simulações para obter vantagens materiais (como compensações por invalidez). Também não devem ser confundidos com as preocupações do hipocondríaco, que se imagina ou presume doente. A síndrome de Munchausen se identifica pela motivação: o sujeito quer ser reconhecido e tratado como alguém que sofre.
Os pacientes-Munchausen chegam a extremos para produzir doenças dignas de interesse e compaixão. Desde automutilações até injeções de matérias fecais para gerar misteriosas infecções localizadas.
Existe também a síndrome de Munchausen por procuração. Neste caso, um dos pais (geralmente a mãe) produz uma doença em seu rebento para receber -por criança interposta- simpatia e comiseração.
Um estudo na revista "Pediatrics" de junho monitorou casos suspeitos recorrendo a câmeras escondidas em quartos de hospital. Apareceu um desfile desconcertante: mães acrescentando sua própria urina à intravenosa de seus nenês, outras se forçando a vomitar para atribuir o vômito ao bebê etc.
Há quem afirme que 1% das hospitalizações nos países do Primeiro Mundo poderiam ser Munchausen. Também a síndrome seria mais frequente nos países desenvolvidos.
De fato, esta curiosa figura patológica é filha de nossa cultura. As idéias cristãs que estão na origem do espírito moderno promovem a esperança de que as vítimas serão amadas e de que muito será perdoado a quem muito sofreu. Ser vítima deve ser bom.
Mas há algo além disso: nós, modernos, não confiamos nas virtudes do berço. Damos mais importância à experiência. Para nós, as pessoas valem segundo a qualidade e a intensidade de suas vidas. Por isso a banalidade do cotidiano é nossa inimiga permanente, pois imaginamos que nosso valor dependa do valor de nossas experiências. De fato, experiências excepcionais (viver na Antártida, atravessar um furacão, combater a Máfia) dão destaque decisivo a uma vida.
Ora, como o romantismo descobriu logo, o patético é uma forma simples e acessível de excepcionalidade. Sofrer e ser vítima pode ser incômodo, mas torna a vítima diferente e facilmente heróica.
Melhor ainda, numa cultura na qual é fácil e rentável contar vantagens, o sofrimento carrega consigo uma aura de autenticidade. Qualquer um pode contar que circunavegou a Terra num balão, mas quem se atreveria a mentir declarando: "Estou com câncer"? Pois é, o Munchausen se atreve.
Ele não é o único. Fazer-se de vítima é um esporte cultural induzido pela (mórbida) sedução que a figura da vítima exerce sobre nós.
Sandro do Nascimento, o assaltante do ônibus 174, para que suas ameaças fossem escutadas, não proclamou: "Cuidado, que sou sanguinário!". Ele disse (segundo "O Globo"): "Meu pai morreu de tiro. Perdi um irmãozinho na Candelária. Arrancaram a cabeça de minha mãe quando eu era pequeno. Eu sou maluco e não estou para bobeiras". Ou seja, ele é de verdade, deve ser levado a sério porque sofreu.
Como, ao que parece, ninguém arrancou a cabeça da mãe, o assaltante -como um paciente-Munchausen- inventou e elaborou para fazer valer seu estatuto de vítima. A coisa funcionou: a estudante Luana, que estava entre os reféns, ameaçada de morte durante horas, achou bom dizer para Sandro que, na verdade, a maior vítima era ele, o próprio assaltante. Quem sabe esta observação tenha salvo a vida da jovem, pois talvez fosse tudo o que Sandro quisesse ouvir.
Mas não deixa de ser uma estranha inversão.
Na mídia desta semana, a transformação de Sandro em vítima é tema dominante. O assaltante se tornou o "sobrevivente da Candelária".
Sandro foi vítima dos policiais que o levaram preso. Também ele teve uma infância dolorosa. Mas, enquanto assaltante, ele não foi vítima coisa nenhuma. As vítimas dessa história são Geisa Firmo Gonçalves e os outros passageiros.
Ora, acontece que preferimos explicar (justificar seria demais, não é?) seu comportamento de algoz por ele ter sofrido no passado. Aparece assim mais uma função de nosso "vitimismo": ele satisfaz nossa ingenuidade voluntária. Graças a ele, podemos evitar ter de reconhecer desejos incômodos e nojentos. Pois o mal seria apenas uma reação (compreensível, então, não é?) a traumas e dores -uma espécie de vingança das vítimas.
Quem foi bem tratado será feliz e ordeiro, quem foi maltratado sairá errado e assaltante. Você acredita que, se fôssemos um país rico, se os pais reconhecessem seus filhos e se as mães pudessem cuidar das crianças, seríamos também uma sociedade de pessoas boas e de boas pessoas? Bom, não vamos ficar ricos tão cedo. Mas, se acontecer, prepare-se para uma decepção, pois não é assim.
De maneira não muito apropriada, seu nome foi escolhido para designar uma síndrome na qual o sujeito produz intencionalmente sintomas para merecer atenção, carinho e cuidados médicos -pouco importa que isso implique investigações diagnósticas pesadas ou intervenções cirúrgicas. Estes "transtornos fictícios", como são chamados, nada têm a ver com as simulações para obter vantagens materiais (como compensações por invalidez). Também não devem ser confundidos com as preocupações do hipocondríaco, que se imagina ou presume doente. A síndrome de Munchausen se identifica pela motivação: o sujeito quer ser reconhecido e tratado como alguém que sofre.
Os pacientes-Munchausen chegam a extremos para produzir doenças dignas de interesse e compaixão. Desde automutilações até injeções de matérias fecais para gerar misteriosas infecções localizadas.
Existe também a síndrome de Munchausen por procuração. Neste caso, um dos pais (geralmente a mãe) produz uma doença em seu rebento para receber -por criança interposta- simpatia e comiseração.
Um estudo na revista "Pediatrics" de junho monitorou casos suspeitos recorrendo a câmeras escondidas em quartos de hospital. Apareceu um desfile desconcertante: mães acrescentando sua própria urina à intravenosa de seus nenês, outras se forçando a vomitar para atribuir o vômito ao bebê etc.
Há quem afirme que 1% das hospitalizações nos países do Primeiro Mundo poderiam ser Munchausen. Também a síndrome seria mais frequente nos países desenvolvidos.
De fato, esta curiosa figura patológica é filha de nossa cultura. As idéias cristãs que estão na origem do espírito moderno promovem a esperança de que as vítimas serão amadas e de que muito será perdoado a quem muito sofreu. Ser vítima deve ser bom.
Mas há algo além disso: nós, modernos, não confiamos nas virtudes do berço. Damos mais importância à experiência. Para nós, as pessoas valem segundo a qualidade e a intensidade de suas vidas. Por isso a banalidade do cotidiano é nossa inimiga permanente, pois imaginamos que nosso valor dependa do valor de nossas experiências. De fato, experiências excepcionais (viver na Antártida, atravessar um furacão, combater a Máfia) dão destaque decisivo a uma vida.
Ora, como o romantismo descobriu logo, o patético é uma forma simples e acessível de excepcionalidade. Sofrer e ser vítima pode ser incômodo, mas torna a vítima diferente e facilmente heróica.
Melhor ainda, numa cultura na qual é fácil e rentável contar vantagens, o sofrimento carrega consigo uma aura de autenticidade. Qualquer um pode contar que circunavegou a Terra num balão, mas quem se atreveria a mentir declarando: "Estou com câncer"? Pois é, o Munchausen se atreve.
Ele não é o único. Fazer-se de vítima é um esporte cultural induzido pela (mórbida) sedução que a figura da vítima exerce sobre nós.
Sandro do Nascimento, o assaltante do ônibus 174, para que suas ameaças fossem escutadas, não proclamou: "Cuidado, que sou sanguinário!". Ele disse (segundo "O Globo"): "Meu pai morreu de tiro. Perdi um irmãozinho na Candelária. Arrancaram a cabeça de minha mãe quando eu era pequeno. Eu sou maluco e não estou para bobeiras". Ou seja, ele é de verdade, deve ser levado a sério porque sofreu.
Como, ao que parece, ninguém arrancou a cabeça da mãe, o assaltante -como um paciente-Munchausen- inventou e elaborou para fazer valer seu estatuto de vítima. A coisa funcionou: a estudante Luana, que estava entre os reféns, ameaçada de morte durante horas, achou bom dizer para Sandro que, na verdade, a maior vítima era ele, o próprio assaltante. Quem sabe esta observação tenha salvo a vida da jovem, pois talvez fosse tudo o que Sandro quisesse ouvir.
Mas não deixa de ser uma estranha inversão.
Na mídia desta semana, a transformação de Sandro em vítima é tema dominante. O assaltante se tornou o "sobrevivente da Candelária".
Sandro foi vítima dos policiais que o levaram preso. Também ele teve uma infância dolorosa. Mas, enquanto assaltante, ele não foi vítima coisa nenhuma. As vítimas dessa história são Geisa Firmo Gonçalves e os outros passageiros.
Ora, acontece que preferimos explicar (justificar seria demais, não é?) seu comportamento de algoz por ele ter sofrido no passado. Aparece assim mais uma função de nosso "vitimismo": ele satisfaz nossa ingenuidade voluntária. Graças a ele, podemos evitar ter de reconhecer desejos incômodos e nojentos. Pois o mal seria apenas uma reação (compreensível, então, não é?) a traumas e dores -uma espécie de vingança das vítimas.
Quem foi bem tratado será feliz e ordeiro, quem foi maltratado sairá errado e assaltante. Você acredita que, se fôssemos um país rico, se os pais reconhecessem seus filhos e se as mães pudessem cuidar das crianças, seríamos também uma sociedade de pessoas boas e de boas pessoas? Bom, não vamos ficar ricos tão cedo. Mas, se acontecer, prepare-se para uma decepção, pois não é assim.
quinta-feira, 15 de junho de 2000
O insustentável peso das palavras e das imagens
Em outubro de 1997, em Cambridge, um menino de 10 anos, Jeffrey Curley, foi estuprado e assassinado por dois homens. Ambos estão hoje condenados e presos. Espera-se que a chave seja esquecida de vez.
O caso volta para a crônica porque os pais de Jeffrey entraram na Justiça com uma ação civil contra a Nambla (traduzindo: Associação Norte-Americana para o Amor entre Homens e Meninos) e seus animadores.
A queixa dos pais de Jeffrey obriga a pensar seriamente numa questão hoje crucial: qual é a responsabilidade das palavras e das imagens públicas que parecem inspirar um crime?
Numa manhã chuvosa, que condizia com a tétrica lembrança dos fatos, fui até a corte federal de Boston para ler o texto da queixa da família Curley.
Ela alega que Charles Jaynes, o principal algoz de Jeffrey, "se tornou obcecado pela idéia de fazer sexo com meninos e de estuprá-los, como resultado direto e próximo da instigação e da promoção da atividade pedófila pela Nambla".
Foi como resultado da mesma instigação que Jaynes abordou o menino e "torturou, assassinou e mutilou o corpo de Jeffrey Curley". Tanto Jaynes quanto seu cúmplice possuíam material da Nambla. Jaynes tinha recentemente se inscrito na associação.
Detalhe sinistro: "Imediatamente antes do ato, Charles Jaynes teve acesso ao site da Nambla na Internet a partir da Biblioteca Pública de Boston". Como se procurasse uma última confirmação.
A queixa apresenta algumas publicações da Nambla para mostrar que esta encoraja seus membros "a estuprar meninos".
A associação pretende oficialmente promover o amor "consensual" entre homens e meninos. Mas os documentos exalam mesmo uma hipocrisia irrespirável.
Se você tiver estômago, considere esta citação que planeja uma expedição nos bosques com os meninos -se não tiver, pule este fim de parágrafo: "Aí queremos levá-los para a barraca e beijá-los e abraçá-los e acariciá-los e fodê-los e sentir seus pequenos corpos quentes fremir de prazer sexual".
A Nambla não inspira simpatia. Isso me ajuda a evitar a facilidade. Em geral, nas discussões sobre a responsabilidade criminal de imagens e de idéias que circulam na cultura e na mídia, é fácil defender a liberdade de expressão.
No caso, os animadores da Nambla não são necessariamente estupradores. Mesmo que eles façam a apologia do estupro e que sua vida sexual seja feita de masturbações com fantasias de estupro, a apologia do crime não é o próprio crime.
Além disso, agita-se como um espantalho a idéia de que estender a responsabilidade até os hipotéticos instigadores seria um pretexto para o exercício ilimitado da censura.
Por esse caminho, por exemplo, por que, junto com o Unabomber, não seriam perseguidos os professores de Harvard que, nos anos 60, formaram a ideologia antitecnológica radical do terrorista americano?
Ou, então, se de repente nas praças brasileiras chover não só ovos, mas tiros, será que quem hoje defende a necessidade da luta armada seria perseguido ao mesmo título do que o atirador? Queremos esse tipo de repressão? Claro que não.
Mas importa, enfim, admitir que as palavras e as imagens da mídia e da cultura influenciam pesadamente nossos atos.
Jaynes, até descobrir a Nambla, não manifestara nenhuma de suas fantasias. O encontro com essa associação lhe permitiu transformar fantasias até então silenciosas em planos e atos. De alguma forma, autorizou desejos que talvez ele nem admitisse para si mesmo.
Mas como? Pois bem, contrariamente ao que aparece em nossas frequentes lamentações, nós, modernos, dispomos de uma moral comum bem compartilhada. Concordamos facilmente sobre o que é certo ou errado. E o fundamento desta moral comum somos nós mesmos, nosso diálogo, nossa comunidade.
Por exemplo, estuprar meninos é errado porque concordamos que é. Não porque assim diria alguma autoridade acima da gente.
Nesta situação, em que a comunidade é a fonte da autoridade moral, é suficiente que uma opção ou uma conduta tenha destaque público para que ganhe alguma forma de legitimidade com isso.
Se algo está no cinema, na televisão, na Internet ou na imprensa, se está entre nós, se faz parte de nosso diálogo público, então tem algum direito de cidadania.
Que uma fantasia, uma conduta ou um desejo possam ser ditos, narrados ou defendidos publicamente, é suficiente para autorizá-los. Na cara perplexa de cada menor preso por homicídio, por exemplo, leio esta pergunta: "Mas não era isso que vocês gostavam de olhar na TV ou no cinema?".
E Jaynes, naquela última visita ao site da Nambla, pode ter pensado: "Pois é, se a Nambla está na Net, então dá para estuprar meninos, pois estuprar meninos é do nosso mundo".
Eu gostaria de um mundo onde todos, até os sinistros membros da Nambla, pudessem, no respeito da lei, trocar suas fantasias como figurinhas.
Mas também onde Jeffrey ainda pedalasse sua bicicleta tranquilo, porque nada encorajaria dois desgraçados a realizar suas fantasias até então inconfessáveis.
É uma contradição difícil. Talvez sem solução.
domingo, 11 de junho de 2000
Uma elite funcional
Os "bobos", com o conjunto de sua ideologia social ecologista, progressista e tolerante, são os responsáveis pelo extraordinário sucesso da economia americana na última década
Se fecho os olhos e penso nas elites americanas, duas caricaturas me afligem imediatamente. A primeira é a cara de J.P. Morgan, com suas suíças e seu nariz excessivo. Mas poderia ser um Vanderbilt ou um Rockefeller: qualquer um dos plutocratas que, na virada do século 19, constituíram-se em uma verdadeira aristocracia do dinheiro. São os protagonistas da "Idade da Inocência", de Edith Wharton, que competiam à força de "cottages" monstruosos e suntuosos em Newport ou nas colinas ao norte de Nova York. É neles que pensava Thorstein Veblen, descrevendo uma elite que afirmava e mantinha seu poder pela ostentação de sua (incrível) riqueza.
Os colarinhos afrouxaram, surgiram novos nomes, alguns se mataram em 1929, a ostentação se acalmou um pouco, mas, até três décadas atrás, substancialmente, a elite americana continuava a mesma. Nesse período, seu traço mais notável foi a disposição para dividir um pouco o bolo, inventando um capitalismo que, para garantir o crescimento, aposta no consumo de todos.
Caricatura apavorante
De repente, chega uma segunda caricatura, apavorante. Poderia ser o protagonista de "American Psycho" ou qualquer yuppie dos anos 80. Não é um plutocrata. É muito pior: trata-se de alguém que tenta desesperadamente compor a imagem de um plutocrata.
Sua vida e seu consumo têm, como única finalidade, a demonstração e confirmação de seu status. Veblen teria gostado do yuppie ainda mais do que de J.P. Morgan. Como então, no espaço de dez anos, foi possível passar de uma elite aristocrática constituída e fechada à cafonice arrivista do yuppismo dos anos da Presidência Reagan? Uma explicação consiste em pensar que tudo aconteceu por causa de uma brincadeira dos intelectuais e acadêmicos que, a partir dos anos 60, decidiram se vingar do proverbial antiintelectualismo dos plutocratas americanos. Um belo dia, eles mudaram os critérios de admissão das grandes universidades. Estas, até então, eram internatos onde os rebentos das "boas famílias" passavam o tempo necessário para selar as amizades e os contatos que lhes seriam úteis mais tarde. Eram, em suma, clubes mirins.
De repente, tornaram-se instituições meritocráticas, oferecendo uma educação de verdade a estudantes selecionados não por via hereditária, mas por sérios e complexos exames de admissão. Os yuppies foram uma consequência imediata, temporária e pouco interessante dessa mudança. E foram apenas um parêntese. Inseguros por serem a primeira leva de elites meritocráticas, eles não souberam inventar nada, mas ficaram com a estúpida ambição de se parecerem com os plutocratas precedentes. Ou de emulá-los. Levaram um tempo debatendo qual seria o relógio, o carro, a camisa e o restaurante certos para isso. E já quase não existem mais.
Agora, chega a terceira e mais recente versão das elites americanas: uma elite culta, descontraída, "cool". É essa que David Brooks descreve com muito brilho em seu livro. São os "bobos", que realizam o projeto meritocrático do qual os yuppies foram apenas um percalço. Os "bobos" eram esperados e indispensáveis. Esperados por quê? Afinal, é difícil acreditar que a mudança nas elites americanas seja apenas o fruto da frustração de acadêmicos que, para se fazer de importantes, se deram o direito de selecionar candidatos aos estudos superiores. O pós-guerra enriqueceu os americanos de todas as classes, criando um consumo de massa inédito.
Muito cedo, já nos anos 50, o marketing americano desconfiou dessa massificação, antevendo que dificilmente ela poderia sustentar para sempre os desejos dos consumidores. Com a ajuda da contracultura, Madison Avenue produziu e promoveu então um ideal de consumo oposto à massificação. Por isso, a partir dos anos 60, consumir não é mais nem tanto uma maneira de ser como os outros, de integrar uma classe social ou de adquirir status. Consumir, ao contrário, é apresentado como uma tarefa mais nobre, autêntica e quase espiritual: é o processo de invenção e produção de nossa singularidade, de nossa diferença.
A busca de auto-realização
Ora, para que essa visão do consumo triunfasse e viesse garantir um crescimento econômico que está hoje em seu auge era necessário uma elite que propusesse ideais mais complexos e variados do que festas à la "Great Gatsby" ou ternos sob medida de Paul Stuart. Os "bobos" respondem a essa exigência: eles se apresentam como uma elite que persegue não simplesmente riqueza ou status, mas sobretudo auto-realização.
O termo inventado por Brooks para descrevê-los -contração de burguês e boêmio- indica que eles pretendem resolver de vez o antigo dilema da alienação, conciliando sucesso financeiro e social com os valores existenciais mais sublimes (o português frustra um pouco essa aspiração dando a "bobo" um sentido provavelmente merecido, mas ausente em inglês).
Já nos séculos 16 e 17 as elites européias começam a se perguntar se no fundo os índios (brasileiros, por exemplo) não teriam o segredo da vida boa. No século 19, com os românticos, aos índios acrescentam-se os pobres. Wordsworth afirmava corajosamente que "os homens mal vestidos são suscetíveis a profundos sentimentos". De lá a perguntar se os maltrapilhos não vivem uma vida melhor do que os ricos há apenas um passo.
Em suma, a elite capitalista, mesmo em suas versões mais sinistras, sempre se perguntou se, acumulando dinheiro e riqueza, ela não estava perdendo algo essencial: algum prazer, algum saber ou mesmo algum sentido recôndito da existência.
Aliás, essa dúvida é responsável pela simpatia que ainda inspiramos ao olhar exótico das elites dos países ditos desenvolvidos. Por sermos índios e pobres, aparecemos facilmente como maltrapilhos dançarinos e primitivos que poderiam conhecer segredos essenciais da existência. Segundo o caso: o segredo do gozo da vida -escondido no fundo dos copos de carnavalescas caipirinhas- ou então o segredo do perfeito acordo com a natureza -escondido no saber iniciático de curandeiros amazônicos.
Seja como for, os "bobos" resolvem essa dúvida professando que o trabalho é para eles expressão íntima, vocação, arte. Em todo caso, ele é parte integrante de uma vida concebida como eterno esforço de aprender, conhecer, melhorar. Com isso e com o conjunto de sua ideologia social ecologista, higienista, progressista e tolerante, os "bobos" são a elite responsável pelo extraordinário sucesso da economia americana nesta última década. E o "bobismo" é a filosofia de "management" do momento -a mais bem adaptada à nova economia.
Por isso, é normal que os "bobos" sejam fundamentalmente americanos, eventualmente um pouco europeus e certamente não-brasileiros. Traços de ideologia "boba" circulam entre nós como modismos. Mas nosso capitalismo não está pronto para os "bobos". Ainda não negociamos o acesso a um consumo de massa e podemos, portanto, nos contentar com elites plutocráticas.
Estas podem eventualmente ser metidas a "bobos". Mais frequentemente, pelo atraso que sempre se dá na dinâmica do estrangeirismo, elas são hoje compostas por plutocratas metidos a yuppies. O que as torna especialmente caricaturais.
Se fecho os olhos e penso nas elites americanas, duas caricaturas me afligem imediatamente. A primeira é a cara de J.P. Morgan, com suas suíças e seu nariz excessivo. Mas poderia ser um Vanderbilt ou um Rockefeller: qualquer um dos plutocratas que, na virada do século 19, constituíram-se em uma verdadeira aristocracia do dinheiro. São os protagonistas da "Idade da Inocência", de Edith Wharton, que competiam à força de "cottages" monstruosos e suntuosos em Newport ou nas colinas ao norte de Nova York. É neles que pensava Thorstein Veblen, descrevendo uma elite que afirmava e mantinha seu poder pela ostentação de sua (incrível) riqueza.
Os colarinhos afrouxaram, surgiram novos nomes, alguns se mataram em 1929, a ostentação se acalmou um pouco, mas, até três décadas atrás, substancialmente, a elite americana continuava a mesma. Nesse período, seu traço mais notável foi a disposição para dividir um pouco o bolo, inventando um capitalismo que, para garantir o crescimento, aposta no consumo de todos.
Caricatura apavorante
De repente, chega uma segunda caricatura, apavorante. Poderia ser o protagonista de "American Psycho" ou qualquer yuppie dos anos 80. Não é um plutocrata. É muito pior: trata-se de alguém que tenta desesperadamente compor a imagem de um plutocrata.
Sua vida e seu consumo têm, como única finalidade, a demonstração e confirmação de seu status. Veblen teria gostado do yuppie ainda mais do que de J.P. Morgan. Como então, no espaço de dez anos, foi possível passar de uma elite aristocrática constituída e fechada à cafonice arrivista do yuppismo dos anos da Presidência Reagan? Uma explicação consiste em pensar que tudo aconteceu por causa de uma brincadeira dos intelectuais e acadêmicos que, a partir dos anos 60, decidiram se vingar do proverbial antiintelectualismo dos plutocratas americanos. Um belo dia, eles mudaram os critérios de admissão das grandes universidades. Estas, até então, eram internatos onde os rebentos das "boas famílias" passavam o tempo necessário para selar as amizades e os contatos que lhes seriam úteis mais tarde. Eram, em suma, clubes mirins.
De repente, tornaram-se instituições meritocráticas, oferecendo uma educação de verdade a estudantes selecionados não por via hereditária, mas por sérios e complexos exames de admissão. Os yuppies foram uma consequência imediata, temporária e pouco interessante dessa mudança. E foram apenas um parêntese. Inseguros por serem a primeira leva de elites meritocráticas, eles não souberam inventar nada, mas ficaram com a estúpida ambição de se parecerem com os plutocratas precedentes. Ou de emulá-los. Levaram um tempo debatendo qual seria o relógio, o carro, a camisa e o restaurante certos para isso. E já quase não existem mais.
Agora, chega a terceira e mais recente versão das elites americanas: uma elite culta, descontraída, "cool". É essa que David Brooks descreve com muito brilho em seu livro. São os "bobos", que realizam o projeto meritocrático do qual os yuppies foram apenas um percalço. Os "bobos" eram esperados e indispensáveis. Esperados por quê? Afinal, é difícil acreditar que a mudança nas elites americanas seja apenas o fruto da frustração de acadêmicos que, para se fazer de importantes, se deram o direito de selecionar candidatos aos estudos superiores. O pós-guerra enriqueceu os americanos de todas as classes, criando um consumo de massa inédito.
Muito cedo, já nos anos 50, o marketing americano desconfiou dessa massificação, antevendo que dificilmente ela poderia sustentar para sempre os desejos dos consumidores. Com a ajuda da contracultura, Madison Avenue produziu e promoveu então um ideal de consumo oposto à massificação. Por isso, a partir dos anos 60, consumir não é mais nem tanto uma maneira de ser como os outros, de integrar uma classe social ou de adquirir status. Consumir, ao contrário, é apresentado como uma tarefa mais nobre, autêntica e quase espiritual: é o processo de invenção e produção de nossa singularidade, de nossa diferença.
A busca de auto-realização
Ora, para que essa visão do consumo triunfasse e viesse garantir um crescimento econômico que está hoje em seu auge era necessário uma elite que propusesse ideais mais complexos e variados do que festas à la "Great Gatsby" ou ternos sob medida de Paul Stuart. Os "bobos" respondem a essa exigência: eles se apresentam como uma elite que persegue não simplesmente riqueza ou status, mas sobretudo auto-realização.
O termo inventado por Brooks para descrevê-los -contração de burguês e boêmio- indica que eles pretendem resolver de vez o antigo dilema da alienação, conciliando sucesso financeiro e social com os valores existenciais mais sublimes (o português frustra um pouco essa aspiração dando a "bobo" um sentido provavelmente merecido, mas ausente em inglês).
Já nos séculos 16 e 17 as elites européias começam a se perguntar se no fundo os índios (brasileiros, por exemplo) não teriam o segredo da vida boa. No século 19, com os românticos, aos índios acrescentam-se os pobres. Wordsworth afirmava corajosamente que "os homens mal vestidos são suscetíveis a profundos sentimentos". De lá a perguntar se os maltrapilhos não vivem uma vida melhor do que os ricos há apenas um passo.
Em suma, a elite capitalista, mesmo em suas versões mais sinistras, sempre se perguntou se, acumulando dinheiro e riqueza, ela não estava perdendo algo essencial: algum prazer, algum saber ou mesmo algum sentido recôndito da existência.
Aliás, essa dúvida é responsável pela simpatia que ainda inspiramos ao olhar exótico das elites dos países ditos desenvolvidos. Por sermos índios e pobres, aparecemos facilmente como maltrapilhos dançarinos e primitivos que poderiam conhecer segredos essenciais da existência. Segundo o caso: o segredo do gozo da vida -escondido no fundo dos copos de carnavalescas caipirinhas- ou então o segredo do perfeito acordo com a natureza -escondido no saber iniciático de curandeiros amazônicos.
Seja como for, os "bobos" resolvem essa dúvida professando que o trabalho é para eles expressão íntima, vocação, arte. Em todo caso, ele é parte integrante de uma vida concebida como eterno esforço de aprender, conhecer, melhorar. Com isso e com o conjunto de sua ideologia social ecologista, higienista, progressista e tolerante, os "bobos" são a elite responsável pelo extraordinário sucesso da economia americana nesta última década. E o "bobismo" é a filosofia de "management" do momento -a mais bem adaptada à nova economia.
Por isso, é normal que os "bobos" sejam fundamentalmente americanos, eventualmente um pouco europeus e certamente não-brasileiros. Traços de ideologia "boba" circulam entre nós como modismos. Mas nosso capitalismo não está pronto para os "bobos". Ainda não negociamos o acesso a um consumo de massa e podemos, portanto, nos contentar com elites plutocráticas.
Estas podem eventualmente ser metidas a "bobos". Mais frequentemente, pelo atraso que sempre se dá na dinâmica do estrangeirismo, elas são hoje compostas por plutocratas metidos a yuppies. O que as torna especialmente caricaturais.
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