sexta-feira, 29 de março de 2013

Papa vai, papa vem

Não é muito importante que a igreja se modernize, pois seus fieis já estão se modernizando há tempo 

Quando eu era criança, meu pai deixava que minha avó cuidasse de minha formação religiosa. Ela comungava todos os domingos. Querendo seguir seu ritmo, eu me preparava confessando-me no sábado, no fim da tarde. Mas eis que, na noite de sábado para domingo, um pensamento ou um sonho vagamente impuros, uma irritação, um palavrão me convenciam: eu já tinha perdido a pureza garantida pela absolvição de poucas horas antes.

Conclusão: eu precisava de uma nova confissão antes da missa de domingo. Às vezes, não tinha mais como, e eu renunciava a comungar.

Enquanto isso, eu constatava que minha avó não se confessava nunca -e olhe que, naquela época, ninguém falava em "absolvição geral" ou em "confissão uns aos outros": a única confissão que valia era a pessoal, com um sacerdote.

Tudo bem, minha avó era (ou parecia) idosa e bem-comportada. Mas, mesmo assim, eu não entendia: para mim, sem confissão (recente e por um sacerdote) não havia como acreditar no perdão divino. Criei coragem e perguntei. Ela disse que pecava pouco e, de qualquer forma, tratava do assunto diretamente com Deus. Rezo para que esse deslize herético tenha sido tratado com indulgência quando ela se apresentou no céu.

Seja como for, foi graças a essa avó muito católica que descobri precocemente o charme e alcance profundo da Reforma protestante. Ou seja, apesar da reação do Concílio de Trento com seus decretos disciplinares, seu índice dos livros proibidos e sua reorganização da Inquisição (hoje Congregação para a

Doutrina da Fé, da qual, aliás, Bento 16 foi prefeito antes de ser papa), apesar de tudo isso, o espírito da Reforma protestante ganhou corações e mentes dos católicos -se não de todos, de muitos, a começar por minha avó.

Consequência: tornou-se cada vez mais possível e frequente que alguém se considere católico praticante e decida por si o que é pecado e o que não é, num diálogo privado com Deus, sem desprezar nem a igreja nem o papa, mas sem depender deles.

Conheço numerosos católicos devotos que se casaram, se divorciaram, casaram-se novamente (no civil), não confessam a sacerdote algum o "adultério" no qual eles vivem (segundo a igreja), não se arrependem e comungam, a cada missa, alegremente, considerando-se absolvidos diretamente por Deus.

Às vezes, um pároco conhecido lhes recusa a comunhão; pois bem, mudam de igreja ou, então, esperam para comungar quando viajam e encontram, no exterior ou num lugar remoto do país, uma igreja onde ninguém saiba de sua vida no "pecado".

É fácil encontrar católicos dando provas da mesma liberdade de pensamento em matéria de camisinha e de anticoncepcionais, de homossexualidade e mesmo de aborto.

Por causa desses "novos" católicos (nem tão novos assim, se minha avó estava entre eles), contemplo com um pouco de tédio as especulações mais ou menos esperançosas sobre o rumo que o novo papa imprimirá à igreja. Será que isso ou aquilo vai ser reconhecido ou permitido? E os padres, eles poderão se casar?

Como se já não houvesse padres que, em segredo (de polichinelo) e sem a autorização romana, casam e seguem administrando os sacramentos para sua comunidade, a qual os aceita, satisfeita.

Em suma, para uma parte dos católicos (que é difícil medir, mas que é, no mínimo, uma boa minoria), a pauta dos comentários destes dias é irrelevante. Para esses católicos (que, sem se dar conta, foram conquistados pela modernidade da Reforma), o diálogo íntimo e livre com Deus está acima da opinião do papa, do pároco e da Congregação para a Doutrina da Fé.

Alguns deles acabam se tornando anticlericais: acham que o que importa é a mensagem cristã e o resto (a igreja) não passa de folclore, pompa, glose e vida institucional. Outros continuam gostando do ritual e de "seus" padres, embora considerem que a igreja militante é uma assembleia, não uma falange a mando de seus oficiais.

Se esses católicos forem o futuro do catolicismo (um futuro que já começou), a igreja de amanhã será variada e plural. Haverá católicos condenando o aborto em qualquer situação e haverá outros admitindo o aborto nas situações em que lhes parece justificado aos olhos de Deus. E eles conviverão na mesma igreja.
Ou seja, não é muito importante que a Igreja Católica se modernize. Pois seus fieis já estão se modernizando há tempo, optando pela liberdade de sua consciência, sem deixarem de ser católicos.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Fugir de casa


Hoje, depois de 50 anos, vendo "A Busca", senti o que foi a dor de meus pais quando eu fugi de casa

ANTES DE mencionar "A Busca", de Luciano Moura, eu devo me declarar impedido: por razões anteriores e exteriores ao filme, serei parcial.

Primeiro. Tenho uma tremenda admiração pela roteirista do filme, Elena Soarez -ela criou, com Cao Hamburger, o seriado "Filhos do Carnaval" (HBO), que ainda me força a ficar acordado quando esbarro numa reprise noturna.

Segundo. Desde "Central do Brasil", de Walter Salles, sou especialmente sensível às corridas território brasileiro adentro, atrás de um pai de verdade (eventualmente, marceneiro).

Terceiro e mais importante. Como o jovem Pedro no filme de Moura e com a mesma idade dele, eu fugi de casa.

 Por que Pedro foge? Difícil dizer. Talvez seja por causa da recente separação dos pais. Talvez seja porque o pai (Wagner Moura) não enxerga mais o filho, que está crescendo e tem paixões próprias. Ou talvez seja porque fugir de casa, algum dia, é necessário para todos -e tanto faz que isso aconteça realmente ou de maneira figurada.

Por que eu fugi? Mesma perplexidade: uma namorada distante, a vontade de cruzar fronteiras por minha conta, a ambição de provar que podia sobreviver sem a ajuda de ninguém... As razões que eu enumeraria naquela época e que poderia enumerar hoje não me bastam. Quanto mais me esforço para encontrar uma resposta, menos entendo: eu gostava dos meus pais e do lar no qual crescia com eles.

Ou seja, Pedro não me explicou minha fuga. Em compensação, pela primeira vez depois de 50 anos, num cinema da Gávea, eu senti o que deve ter sido a dor de meus pais, quando eu sumi. No desespero do pai de Pedro correndo atrás do filho, Brasil afora, vi o drama do meu pai. A comoção foi um arrependimento? Não pelo que fiz e que faria de novo, mas, sim, pela dor que causei, embora talvez fosse inevitável.

Lembrei-me claramente de uma manhã muito cedo, em Londres, quando meu pai, cansado, bateu na porta do apartamento que eu dividia com um amigo e do qual ele tinha conseguido o endereço numa penosa investigação entre meus conhecidos, em Milão.

Não houve nenhum abraço especial. Ele pediu que eu voltasse, porque, disse, minha mãe não aguentava minha ausência e a falta de notícias. Ele nem mencionou seu próprio sofrimento. E não perguntou por que eu tinha fugido de casa.

Aceitei voltar para tranquilizar minha mãe. Mas prometi que eu fugiria de novo, assim que pudesse. E foi o que aconteceu: fui para casa e fugi de novo.

Muitos meses depois, quando voltei de vez, tampouco conseguimos falar das razões do que tinha acontecido -talvez porque, no fundo, não houvesse razões, além da banalidade do processo de crescer, de destacar-se dos pais, de encontrar uma voz própria, fora do coro.

Nesse processo, aliás, surgem motivações genéricas suficientemente poderosas para que mal seja necessário procurar "causas" na singularidade dos pais ou dos filhos. Dois exemplos.

1) Os pais nunca nos dão tudo (nem quando são loucos a ponto de querer nos fartar). Mesmo assim, durante um tempo absurdamente longo, o que temos e esperamos vem só deles. Na adolescência, começamos a desejar coisas que eles não conseguiriam nos dar nem se quisessem nos ver eternamente satisfeitos. No entanto, como eles sempre foram responsáveis por nossas satisfações, agora eles nos parecem ser responsáveis por nossas frustrações.

2) Stanley Cavell, um grande filósofo norte-americano, num ensaio de 1987, observou que todos nós sempre resistimos a deixar que os outros nos transformem, e isso acontece, ele propôs, porque temos uma memória viva (e talvez ressentida) de quanto fomos transformados por alguns outros no começo de nossa vida.

Essa intuição de Cavell pressupõe uma mágoa para com os pais pelo próprio peso que eles tiveram na nossa infância -uma mágoa fundamental, só por eles terem criado e moldado a gente.

Obviamente, essa mágoa, que animaria a rebeldia adolescente, é, de fato, mais uma marca dos pais. Pois mesmo os pais mais invasivos nunca deixam de sonhar com a autonomia dos filhos. Hostilizamos os pais e fugimos deles porque ELES mesmos querem nos ver livres e não gostam que se prolongue a influência que eles tiveram e têm sobre nós.

Ironia: quem deseja que fujamos de casa são nossos pais. E fugindo, realizamos um desejo deles.

Claro, o outro desejo deles seria que ficássemos em casa para sempre.

quarta-feira, 13 de março de 2013

O uso reto do corpo


E, para Feliciano, será que a boca foi feita para ser invadida pela língua do outro, no beijo?

Em tese, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) luta para que cada cidadão e cada grupo de cidadãos possam exercer plenamente sua diferença (claro, à condição de que essa diferença não atrapalhe a liberdade dos outros).

Parece lógico que a comissão seja presidida por um espírito libertário. Isso não exclui pastores, padres, imames e moralistas rigorosos, à condição de que, por cultura, experiência de vida e qualidades morais excepcionais, eles saibam colocar a liberdade dos outros antes de suas próprias convicções.

Esse não parece ser o caso do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), pastor evangélico, que acaba de ser eleito presidente da CDHM. Na notável série de suas declarações boçais citadas nestes dias, minhas preferidas são: 1) "Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato."; e 2) "O reto não foi feito para ser penetrado -não sou contra o homossexual, sou contra o ato homossexual."

1) No texto bíblico que eu li, Cam zombou do pai Noé, o qual condenou Cam e sua descendência à servidão. Mais tarde, os defensores da escravatura decidiram que Cam era o antepassado dos africanos e se serviram dessa história para justificar a posse e o comércio de escravos.

Terminar a evocação de um relato bíblico com um "isso é fato" já é ingênuo. Terminar da mesma forma a revisão do relato bíblico proposta pelos defensores da escravatura é para além de ridículo.

Feliciano, formado em teologia, talvez leia a Bíblia no grego da Septuaginta e no hebraico do texto massorético. Eu me viro em grego antigo, mas, por hábito, leio a Bíblia no latim de São Jerônimo ou no inglês do rei James. Será que ele tem acesso a fontes que eu ignoro?

2) Cada deputado recebe uma verba considerável para que possa opinar com conhecimento de causa. Mas Feliciano parece não saber que uma porcentagem substancial de homossexuais não gosta de sexo anal, enquanto, inversamente, o sexo anal faz parte das fantasias e das práticas sexuais de muitos homens e mulheres heterossexuais. Isso, sem entrar no vasto capítulo das penetrações (fantasiadas ou reais, solitárias ou não) com objetos inanimados ou outras partes do corpo.
O deputado Feliciano poderia se corrigir, generalizando: "hétero ou homo, tanto faz: o reto não foi feito para ser penetrado". Eu entenderia melhor.

Mesmo assim, fico curioso. Será que, para o deputado Feliciano, as mãos foram feitas para carícias, solitárias ou não, recíprocas ou não? E como fica a boca? Sem pensar muito longe, será que ela foi feita para ser invadida pela língua do parceiro ou da parceira?

O deputado Feliciano poderia se entrincheirar atrás da ideia de que tudo o que não serve para a reprodução deveria ser banido do sexo. É uma opinião difícil de ser sustentada, pois, justamente, somos os únicos mamíferos cujo desejo sexual não depende nem um pouco da fertilidade da fêmea e, portanto, da reprodução. Mas é uma opinião respeitável e não incompatível com a presidência da CDHM, à condição de ser, para o próprio Feliciano, apenas uma opinião.

Em outras palavras, o deputado Feliciano tem o direito de ser impenetrável, para maior glória divina. Que diga, então, que SEU reto não foi feito para ser penetrado, e ninguém protestará.

Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense, simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.

Será que Marco Feliciano, presidente da CDHM, vai defender meus direitos? Se a resposta não for um sim retumbante, a CDHM deve trocar de presidente.

Agora, quem colocou o deputado Feliciano na presidência da CDHM? Seis deputados se retiraram assim que Feliciano foi eleito; entre eles, Domingos Dutra (PT), Luiza Erundina (PSB) e Jean Wyllys (PSOL). Mas, apesar do gesto dos seis, quem entregou a comissão ao PSC e a Feliciano foi a base aliada do governo.

A presidente Dilma disse que, nas eleições, "a gente faz o diabo" -ou seja, qualquer aliança vale para ganhar. De fato, nas eleições, a maioria de nossos políticos supostamente laicos e progressistas não fazem o diabo, fazem o santinho. Para conquistar votos fundamentalistas, beijam anéis e frequentam cultos; no fim, eles recompensam, de alguma forma. Por exemplo, com comissões.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Dilemas e cartilhas


Nada mais pueril do que a certeza moral. A maturidade deveria ser o tempo da incerteza

Na coluna da semana retrasada, "Para que serve a tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?

Entre os muitos leitores que me escreveram, menos de 10% entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em sua maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.

Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e Marcelo Coelho entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio Schwartsman tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.

Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único exercício que um dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe. Muito pior: ambos declararam que não gostam de dilemas. Caramba!
Tentando não ser chato para quem não seguiu a controvérsia, aqui vai:

1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não funciona é como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não tem dinheiro no bolso.

2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco covarde para com os milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a entregar um nome ou a assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes mais profundas das que ficaram em seu corpo -sobre isso, leia-se "Exílio e Tortura", de Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).

3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve nos empurrar para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o primeiro dilema de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho e só pode consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem considere que assaltar é errado.

4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que pesquisou a formação e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e experimentou uma educação moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o único projeto de educação moral que não se pareça com uma doutrinação). Sugestão: antes de falar de dilemas, ler as obras principais de Lawrence Kohlberg -no mínimo, os "Essays on Moral Development".

5) Um dilema nunca é um modelo para situações parecidas, pois a vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato padrão da experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.

6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e pelos catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas mais tentam arregimentar as crianças -nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión de Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.

7) O dilema estimula a moralidade porque nos encoraja a não escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma punição. Para Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro íntimo é sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.

8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que pilota nosso foro íntimo. Alguns, de Kant a John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.

Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem escolhe são os indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa grandeza humana na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos motiva e o caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.

Explico: um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais. Etc. Etc.

10) Safatle chamou sua coluna "Questão de Método". Li "Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E ainda me lembro da lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades concretas.

11) Em qualquer momento histórico, entre os homens de bem, que resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens atormentados por dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos opressores.
Mas, em qualquer momento histórico, entre os opressores e os torturadores, só há portadores de cartilhas.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Yoani e as falsas alternativas


Para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos

Deveríamos recusar todas as alternativas -sempre, por princípio. Imagine que alguém diga "Se você pega o preto, perde o branco, e, se você pega o branco, perde o preto" e insista: "Então, qual será? Preto ou branco?". Quase sempre, eu responderia que existem, no mínimo, 50 tons de cinza e imediatamente devolveria a pergunta: "Por que razão escusa você tenta me acuar a escolher entre preto e branco?".

Somos crédulos, queremos acreditar que, a cada encruzilhada, exista sempre uma saída mais malandra, pela qual nos daremos bem. Em sua maioria, as alternativas nos seduzem e funcionam, justamente, quando elas exaltam nossa falsa fé em soluções que não sejam totalmente perdedoras.

Jacques Lacan, o grande psicanalista francês, para ilustrar nossa "alienação" diante das "escolhas forçadas" (palavras dele), recorria ao exemplo do assaltante que nos mandaria decidir: "A bolsa ou a vida!".

Basta pensar um instante para constatar que a alternativa é furada, visto que, se eu decidir ficar com a bolsa, não vou perder só a vida -vou perder também a bolsa, pois o assaltante não vai deixá-la com meu cadáver.

De maneira tristemente engraçada, a outra possibilidade é igualmente furada no Brasil. Aqui, se escolhermos ficar com a vida e entregarmos a bolsa com docilidade, há uma boa chance que mesmo assim o assaltante nos mate, pegando, com a bolsa, nossa vida também.

Em suma: escolha zero. No exterior, "A bolsa ou a vida!" significa "Passa a bolsa, e ponto". E, no Brasil, considere-se sortudo que não signifique "Passe a bolsa E a vida, E ponto" -como dizem os bandidos, "Você perdeu geral".

O exemplo de "A bolsa ou a vida" sugere (com pertinência) que qualquer um que tente nos impor uma escolha forçada seja provavelmente um bandido, interessado sobretudo em afirmar e consolidar seu poder sobre nós.

A política, na segunda metade do século passado, alimentou-se de uma alternativa desse tipo, uma alternativa bandida e falsa, segundo a qual deveríamos escolher entre, de um lado, as ditas liberdades burguesas (liberdade de opinião, de culto, de ir e vir pelo mundo, de ter nossa privacidade respeitada etc.) e, do outro lado, uma nova justiça social, que acabasse com miséria e fome.

Eu mesmo já pertenci a essa bandidagem. Quando me mostravam que os países ditos socialistas esmagavam as liberdades básicas, eu respondia "E a liberdade de não morrer de fome, hein?". Como se, para se livrar da fome, renunciar às liberdades burguesas fosse o preço necessário e, portanto, aceitável, se não módico.

Isso aconteceu, entre outras coisas, porque não escutei direito ao meu pai. Giustizia e Libertá (justiça e liberdade) era o nome do movimento no qual ele se reconhecia, nos anos 1930. Era um movimento socialista, antifascista e anticomunista, para o qual justiça e liberdade não podiam constituir uma alternativa.

Em geral, quem nos diz que só teremos liberdade sem justiça é um aproveitador econômico e social (quer ser livre de perseguir seus interesses sem ter que se preocupar com os outros). E quem nos diz que só teremos justiça sem liberdade é um aproveitador político (quer que abandonemos nossas liberdades de modo que ele possa se eternizar no poder sem oposição). Essas duas espécies de aproveitadores se valem.

A alternativa "liberdade ou justiça" é tão falsa quanto "a bolsa ou a vida". Em particular, a troca da liberdade pela justiça produziu mundos sem liberdade (isso era previsto) e (isso não era) totalmente injustos, corrompidos por burocracias apenas interessadas em se manter no poder.

Ora, na ocasião da chegada ao Brasil da blogueira cubana Yoani Sánchez, houve pessoas para ressuscitar essa falsa alternativa: como pode ela criticar a falta de liberdade em Cuba, quando o regime acabou com a fome na ilha?

O fato é que, para acabar com a fome na ilha, não era necessário acabar com nenhuma das liberdades dos cubanos.
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Nota. Muitos leitores debateram comigo por e-mail a coluna da semana passada, "Para que serve a tortura?". Ontem, Marcelo Coelho, em sua coluna nesta página, comentou meu texto e o tema. Anteontem, Vladimir Safatle, na página 2 da Folha, fez a mesma coisa sem citar minha coluna (sei lá por quê). Seja como for, contribuirei ao debate na próxima quinta.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Para que serve a tortura?

A tortura tem, no mínimo, três fins não excludentes: 1) tortura-se pelo prazer enjoativo de quem tortura ou de quem assiste à tortura; 2) tortura-se para que um acusado confesse seu crime; 3) tortura-se para que um acusado revele a existência de um complô, os nomes de seus cúmplices etc.

Será que a tortura consegue tudo isso? 1) Para satisfazer o desejo doentio do torturador, a tortura funciona, sempre. 2) A Igreja Católica, por séculos, torturou pecadores para que admitissem seus pecados e, sobretudo, torturou heréticos para que confessassem suas teologias desviantes.

 Essa tortura era tão violenta quanto a que fora praticada contra cristãos na época das perseguições, mas o desfecho era diferente. Os mártires cristãos eram torturados para eles renunciarem à religião, e, às vezes, se abjurassem, o suplício era suspenso. Os heréticos eram torturados pela Inquisição para confessarem sua heresia, mas, em geral, a "confissão" não evitava uma morte excruciante.

 Será, então, que a tortura funciona para arrancar confissões? Se você for pai, faça a experiência. Seu filho (ou filha) fez uma besteira comprovada, sem sombra de dúvida, mas você não se contenta em aplicar uma punição e quer que a criança confesse. Se ela reconhecer sua culpa, aliás, a confissão valerá como uma atenuante, enquanto que, se ela insistir em negar o que fez, a mentira será infinitamente mais repreensível do que a besteira inicial.

 Sugestão diferente: se você soube que seu filho ou sua filha fez algo que não devia, diga no que foi que errou, deixe pouco espaço de discussão e dê a punição adequada. Depois disso, amigos como antes. Quase sempre, quando uma confissão é exigida, as crianças mentem com obstinação diretamente proporcional à de seu acusador.

Elas fogem assim de uma humilhação radical, em que renunciariam à sua própria subjetividade: desistiriam de ter segredos e aceitariam que a versão do acusador substituísse a versão que elas gostariam de contar como sendo a história delas. Claro, se você insistir, ameaçando a criança com punições cada vez mais requintadas, a criança talvez "confesse", mas a confissão será apenas um ato de desistência, em que mesmo o inocente se dirá culpado do jeito que o acusador pede.

Em suma, a tortura para obter confissões é um desastre. Há uma certa beleza moral nesse fracasso: a tortura seria inútil, não ajudaria a chegar à verdade. Ou seja, existe um justificativa prática, "racional", para aboli-la, além do horror que ela inspira em qualquer um (salvo, obviamente, em torturadores, inquisidores ou deuses vingativos). 3) Infelizmente, esse argumento "racional" só se aplica à tortura que tenta extirpar a confissão do acusado.

Quanto ao uso da tortura para obter informações sobre cúmplices, paradeiros escondidos, complôs etc., vamos ter que encontrar razões puramente morais para bani-la, pois, constatação desagradável, ela funciona. O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os "interrogatórios" brutais do agente Jack Bauer, na série "24 Horas", funcionam.

E, de fato, como lembra "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.

 Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa --se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade.

 Para se declarar contra o uso da tortura no caso deste filme, alguém talvez invoque a moral kantiana e o dever de tratar os homens como fins e não como meios. A esse alguém, proponho um exemplo politicamente mais neutro, parecido com aqueles dilemas morais cuja prática (como descobriu um grande psicólogo, Lawrence Kohlberg) talvez seja a melhor forma de educação moral.

 Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o que?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Saudade de ideias perigosas

 No meio do Carnaval, para decidir meu voto (por correspondência) nas eleições políticas italianas, conversei por telefone com meu irmão, que vive em Milão.

A meu ver, em qualquer ocasião, deveria votar só quem vive na sociedade que será modificada pelo resultado da eleição. Como italiano vivendo no Brasil, eu deveria votar no Brasil, e não na Itália. Seja como for, meu irmão e eu concordamos.

Votaríamos para obter resultados parecidos: 1) resistir ao populismo regionalista da "Lega Nord" (que tem um discurso do tipo: mandemos embora os estrangeiros e voltemos a falar dialeto, tudo dará certo se ficarmos entre nós); 2) resistir ao populismo do Movimento Cinque Stelle, cinco estrelas (seu animador, Beppe Grillo, nos faz pensar na Itália das comédias de Lina Wertmüller --o país do qual fugi); 3) apoiar a centro-esquerda (sem nem pensar que o Partito Democratico seja herdeiro do antigo partido comunista, no qual militei --essa lembrança teria semeado a discórdia entre nós); 4) não reprovar o trabalho de saneamento básico feito pelo primeiro ministro Monti; 5) impedir a volta de Berlusconi. Fato notável, desde os anos 1990, meu irmão e eu conseguimos conversar de política.

A razão é simples: nem eu nem ele defendemos mais grandes ideias. Acabou a época de Marx contra Adam Smith, Gramsci contra Luigi Einaudi etc. Estamos prontos para uma democracia em que não se enfrentam projetos de sociedade, só questões concretas, em referendo: você é a favor ou contra o casamento gay? A eutanásia? A pesquisa com células-tronco? Também nestes dias recebi o e-mail pelo qual Marina Silva convida para um encontro, em Brasília, do qual deve sair um novo "instrumento político" (ninguém quer mais falar em partido, é compreensível).

 As palavras finais do convite vão na direção da política concreta que me permite conversar com meu irmão: "Podemos contribuir para recuperar o espaço da política para a prática do bem comum, do serviço, da afirmação dos direitos e deveres da cidadania. Podemos contribuir para democratizar a democracia". É uma esperança e tanto. E aprovo que a política seja uma arte de pensar o concreto, e não um debate ou conflito de ideias e ideais. Mas não deixo de sentir saudade. Dei-me conta disso ao assistir ao extraordinário "O Amante da Rainha", de Nikolaj Arcel.

Contrariamente a Luiz Felipe Pondé, em sua última coluna, o que me tocou não foi a história de amor, mas a lembrança de uma época em que havia livros proibidos, porque sua leitura ameaçava transformar o mundo. Rousseau não é meu iluminista preferido, mas, para o bem ou o mal, é um dos pilares do pensamento moderno. Em 2009, um bonito exemplar da primeira edição do "Contrat Social" (Amsterdam, 1762) custou quase US$ 50 mil (R$ 100 mil). Logo após sua publicação, em vários lugares da Europa, o mesmo exemplar custava infinitamente menos, mas saía mais caro: guardar o livro na estante de casa podia valer uma estadia na prisão, ou coisa pior. 

Nas partes do mundo que me são familiares (a Europa e as Américas -sobretudo a do Norte), faz apenas algumas décadas (não mais do que isso) que não há livros cuja posse seja comprometedora --algumas décadas que os governos deixaram de se preocupar com a difusão de opiniões "subversivas". Nasci na Europa depois do fim do fascismo e do nazismo. Não vivi na América do Sul durante as ditaduras militares. Por sorte, fui só turista na Espanha franquista e no Portugal salazarista --nunca tive que viver lá. Sorte maior ainda, nunca tive que passar mais de duas ou três semanas do outro lado da Cortina de Ferro ou em países comunistas da Ásia ou da América Central. O mesmo vale para Estados confessionais.

Em conclusão, nunca vivi debaixo de governos que temessem a difusão de ideias a ponto de tentar impedi-la à força. Mesmo assim, desde o começo da modernidade até poucas décadas atrás (até a queda do Muro de Berlim?), os livros eram tratados como armas potencialmente perigosas. Enquanto hoje, no fundo, eles e suas ideias parecem, antes de mais nada, indiferentes.

O que aconteceu? Foucault responderia, provavelmente, que a grande estratégia do poder contemporâneo é a permissividade: se é permitido dizer tudo e qualquer coisa, por que discutir, por que lutar por qualquer ideia? Fale e deixe falar. Não é?

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

As regras do bem viver


A polidez excessiva é diretamente proporcional à violência do desejo que ela mascara e contém

Um pré-adolescente me contou que ele sempre deixa as mulheres passarem primeiro nas portas, nas catracas e em todos os limiares da circulação social, segundo ele foi instruído pelos pais e pelos avós.

No entanto, esse gesto cavalheiro é acompanhado por um pensamento que ele não consegue evitar e que, um dia, ele receia, poderia explodir como um grito indomável, impossível de ser mais uma vez reprimido.

Deixo você imaginar as consequências que esse grito teria, pois, a cada vez que ele, nobremente, estende a mão para convidar uma mulher (moça ou idosa, tanto faz) a passar antes dele, o que insiste na sua mente é a frase: "Empina a bunda, sua vaca!".

Não acho estranho: as boas maneiras existem, provavelmente, para reprimir pensamentos, condutas e desejos, que, se liberados, tornariam desagradável a nossa convivência social.

Não conheço estudos sobre o costume de deixar as mulheres passarem primeiro. Algumas más línguas dizem que nasceu como uma precaução masculina, caso houvesse assassinos esperando o homem do outro lado da porta. Outras más línguas afirmam que era um jeito de os homens controlarem as mulheres, pois, se elas fossem autorizadas a ficar atrás, fugiriam na primeira ocasião.

No que me toca, aprendi que a mulher deve passar sempre antes do homem, salvo na descida de uma escada, quando o homem, indo na frente, tapa a perspectiva inconveniente de quem, a partir do piso inferior, procurasse olhar por baixo da saia da mulher. Esse deve ser um preceito recente, de quando as saias se encurtaram, mas a própria regra de deixar a mulher passar primeiro tampouco é antiga.

Seja como for, há uma distância notável entre, no meio de um saque, jogar a mulher em cima do ombro e levá-la embora, para estuprá-la mais tarde, com calma (quem sabe, entre amigos) e, no extremo oposto, abrir a porta para a mulher passar primeiro. Como ilustra a dificuldade do jovem que mencionei, a polidez excessiva é diretamente proporcional à violência do desejo que ela mascara e contém.

Em suma, as regras de boas maneiras podem parecer risíveis e são quase sempre hipócritas, mas, justamente por isso, elas são úteis e necessárias -porque não poderíamos conviver sem repressão e hipocrisia.

Norbert Elias escreveu "O Processo Civilizador" (Zahar) em 1939. Pobre, exilado em Londres no momento da maior barbárie do século 20, Elias procurou e encontrou a origem da subjetividade e da liberdade modernas logo nos tratados de boas maneiras.

Isso porque as regras de etiqueta nos ensinam a domesticar os impulsos mais perigosos e, mais ainda, porque a preocupação com o olhar do vizinho de mesa nos obriga a sermos minimamente graciosos.
Chato? Talvez. Mas a novidade moderna é que a elegância é uma qualidade social permitida a todos -basta querer. Se o requisito é a elegância (e não a nobreza, que não depende da gente), qualquer um pode ter o que precisa para ser convidado a qualquer jantar.

Engraçado: criticamos as aparências e a etiqueta como se fossem leviandades, sem pensar que seu triunfo nos libertou das barreiras intransponíveis de uma divisão social decidida pelo berço no qual cada um tinha nascido.

Parêntese: estou lendo "Consider the Fork: A History of How We Cook and Eat" (pense no garfo: uma história de como cozinhamos e comemos, Basic Books), de Bee Wilson, que conta muito bem como fomos transformados pela evolução dos costumes de cozinha e de mesa.

Enfim, estava no meio dessas reflexões quando, sábado passado, fui assistir a "As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade Moderna", de Jean-Luc Lagarce, no Sesc Ipiranga, em São Paulo (imperdível, e atenção: só nos próximos três sábados, às 19h30). A atuação de Lorena da Silva é perfeita. E o texto, francamente engraçado, é uma pérola de inteligência.

Lagarce nos lembra os usos e costumes dos rituais da vida, do nascimento até a morte, passando por batismo, casamento, bodas de prata etc. Ele escreveu "As Regras" em 1993, dois anos antes de morrer de complicações relacionadas à Aids; pelo destino que o espreitava, ele poderia ter sido sarcástico com a suposta "frivolidade" de nossos rituais. Mas ele tomou outro caminho: ele fez, sim, que as regras básicas de nossa etiqueta nos parecessem estranhas e eventualmente hipócritas, mas sem que a gente perdesse de vista que elas são a própria trama de um mundo que amamos -e do qual ele já devia sentir saudade.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

"Amor" letal


Algumas reflexões depois de assistir a "Amor", de Michael Haneke. 

Adolescente, eu já achava bizarra a certeza com a qual alguns amigos se expressavam: "Se eu ficar 'assim'", diziam, "eu me mato na hora. E, por favor, se eu não me matar, seja generoso comigo, mate-me você".

O "assim" que justificava tamanha convicção dependia de relatos, leituras e filmes --ia desde uma impotência sexual talvez passageira (mas que parecia acabar com o charme da vida) até a condição terrificante do protagonista de "Johnny Vai à Guerra", livro e filme de Dalton Trumbo: o soldado Joe, sem braços, sem pernas, sem rosto, parece ser apenas uma carne disforme, enquanto a mente dele continua funcionando.

Eu não concordava com a certeza suicida de meus amigos; imaginava que, antes de decidir me matar, seria bom experimentar minha nova condição durante um tempo. Afinal, em geral, as imperfeições nunca impediram os humanos de viver --ao contrário.

Na época de minha adolescência, não dispúnhamos do exemplo do físico Stephen Hawking ou de Christy Brown, o protagonista de "Meu Pé Esquerdo", de Jim Sheridan. Em compensação, um amigo de meus pais, severamente inválido, disse-me, uma vez: "Você, por exemplo, não pode voar como as aves e é desafinado como um sino quebrado; ou seja, tem coisas que não pode fazer, e você vai procurar o valor de sua vida em outras coisas, que você pode fazer. Comigo não é diferente".

Entendi. Mas me sobrou um certo medo (justamente, pela leitura precoce de "Johnny Vai à Guerra"): poderia acontecer que, de imediato, por causa de um acidente cerebral ou, sei lá, de um incidente de carro, eu me encontrasse numa condição na qual eu não quisesse viver de jeito nenhum e na qual eu não tivesse sequer a capacidade material e mental de pôr fim à minha vida ou de pedir para um próximo que ele me ajudasse a morrer.

Anos atrás, conheci alguém realmente preocupado (muito mais do que eu) com essa eventualidade. Ele envelheceu desesperado, oscilando entre o medo de se matar cedo demais, quando ainda poderia viver um tempo que valesse a pena, e o perigo de esperar além da conta e decidir sair de cena quando ele não tivesse mais condição de se matar ou de pedir a alguém que o matasse.

O mesmo alguém se consolava pensando assim: no caso extremo em que eu não pudesse mais pedir, quem me ama (ou melhor, quem amava aquela pessoa que eu era antes) saberá decidir que eu, embora impedido de me manifestar por minha invalidez, não estou querendo mais viver. Nessa situação, para quem me ama (ou amava, que seja), me ajudar a morrer seria um gesto de amor.

Pois é. Não é tão fácil assim nem tão claro. Na sua coluna de sexta passada, Barbara Gancia escreveu, com razão, que "o fardo de cuidar dos idosos tornou-se um dos maiores dramas da atualidade". Os avanços da medicina fazem que, hoje, sejam cada vez mais numerosos os que cuidam de próximos que sobrevivem transformados pela idade, pela invalidez ou pela demência. E sobrevivem, muitas vezes, tanto irreconhecíveis quanto incapazes de reconhecer os que cuidam deles. Perguntas básicas.

1) Será que o outro que nós amávamos, se ele pudesse escolher, toparia viver como ele está agora?

2) Será que o ser do qual cuidamos hoje é o mesmo que nós amávamos antes do acidente, da invalidez ou da demência? Se ele não for o mesmo, será que esse "novo" ser não tem seus próprios critérios do que é uma vida que valha a pena de ser vivida --critérios diferentes dos do nosso amado de antes?

3) Difícil continuar amando alguém que não nos reconhece mais. Mas será que por isso o deixaríamos morrer --por ele não ser mais aquele ou aquela que amávamos?

4) Por que sempre chega um dia em que ninguém aguenta mais cuidar? É porque o custo (em todos os sentidos) é excessivo e queremos recuperar nossas vidas? Ou é porque é quase impossível fazer o luto de um amado que já se foi, mas continua de corpo presente?

Acontece que alguém se suicide depois de ter matado um amado inválido e demente, de quem não consegue mais cuidar. É mais que uma maneira de evitar a culpa: renunciando a viver sem você, confirmo que foi por amor que matei você --ou melhor, que matei o desconhecido que tinha tomado seu lugar.

Pois é, foi mesmo por amor que matei você? Ou por vingança, por você ter me deixado sozinho?

Seja como for, fica confirmado, embora num sentido inabitual, que o amor resiste dificilmente ao tempo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Atores famosos no palco

Passei um mês em Nova York --escrevendo, lendo e frequentando teatros, cinemas e galerias. Aproveitei para ver ao vivo alguns atores de cinema ou de televisão. Por que eu não estaria a fim de "conhecer os corpos" de atores que dão vida a ficções que me tocam?

 No teatro, nunca desdenho uma primeira fileira, de onde é fácil ouvir a respiração e enxergar as gotas de suor e de saliva que constituem, para mim, o charme da presença material, física do ator. Vi Jessica Chastain (a imperdível protagonista de "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que estreará em 15 de fevereiro), David Strathairn e Dan Stevens (o Matthew Crawley de "Downton Abbey" --agora no GNT), todos em "The Heiress" ("A Herdeira"), de R. e A. Goetz, no Walter Kerr Theatre. E vi Scarlett Johansson em "Cat on a Hot Tin Roof" ("Gata em Teto de Zinco Quente"), de Tennessee Williams, no Richard Rodgers Theatre.

 Ao entrarem no palco, os atores eram recebidos por aplausos que sustavam a ação: afinal, o público estava lá para vê-los. Mas, fora essas breves suspensões, todos eles seguiam o que é hoje um padrão de atuação: uma sólida quarta parede. Explico. No teatro, o palco é delimitado por três paredes, a quarta sendo a que está faltando, de modo que a plateia possa enxergar a ação. Os atores podem aproveitar dessa abertura para interagir com o público (lembrando assim a todos que se trata de uma peça) ou, no extremo oposto, agir como se eles estivessem sozinhos, entre quatro paredes.

Hoje, em regra, o ator (ainda mais se for de cinema) tende a atuar assim, entre quatro paredes, como se não houvesse câmera nem plateia. A ponto que uma cumplicidade com o público parece intencional --um jeito de transgredir o padrão dominante, de nos fazer rir ou de nos distanciar da história representada.

A experiência foi diferente quando fui ver Al Pacino em "Glengarry Glen Ross", de David Mamet, no Schoenfeld Theatre. Aqui, a atuação de Al Pacino era um grande aparte endereçado ao público. Mesmo nos diálogos com os outros atores, ele olhava e falava para nós.

Não vou me queixar de que, num diálogo comigo (e 800 outros, claro), ele usasse as manhas de Michael Corleone, Frank ("Perfume de Mulher") ou Lefty ("Donnie Brasco"). Afinal, eu estava lá para isso, não é?
No Brasil, também, já vi atores famosos do cinema e da televisão atuando no teatro. Nunca vi um deles dar uma de Al Pacino e quebrar a quarta parede para oferecer ao público um banho de presença estrelada.
Em compensação, fico quase sempre com a impressão de que, no Brasil, os atores mantêm uma conexão com a plateia que abre uma fresta na famosa quarta parede.

É óbvio que não estou me referindo a peças nas quais, de maneira intencional, os atores interagem com a plateia como se não houvesse quarta parede. É óbvio também que não estou falando de rupturas escrachadas da quarta parede, como, sei lá, apartes ou piscadinhas engraçadas para o público.

Ao contrário, gostaria de descrever (mas não consigo) uma impressão sutil de que os atores, aqui no Brasil, atuam PARA mim. Ou seja, que a presença da plateia pesa no que acontece no palco.

Se essa minha impressão capta alguma realidade, qual seria uma origem possível do fenômeno? É difícil superestimar a importância da telenovela na cultura nacional (e, por consequência, na formação dos atores). Ora, há uma especificidade da novela que dota a quarta parede de uma leve, mas constante transparência. Qual?

A novela é escrita enquanto está sendo gravada e vai ao ar --ela é um pouco herdeira da "commedia dell'arte", uma gloriosa forma de teatro em que os atores improvisavam a partir de uma sinopse.

A primeira consequência disso é que, na novela, como em nenhum outro gênero, a relevância de um personagem e seu destino na história podem depender da recepção que o público lhe reserva.

O ator sabe que, se seu personagem conquistar o público (pelo bem ou pelo mal), ele ganhará relevância nos capítulos seguintes (um personagem pode ser secundário na sinopse e se tornar central ao longo da novela). Ou seja, o caráter inacabado do texto impõe ao ator uma tarefa que corrói a opacidade da quarta parede: a tarefa de ser especialmente apreciado (gostado ou odiado, tanto faz).

Em suma, talvez a telenovela, por sua relevância e por essa sua caraterística, produza, entre nós, atores particularmente atentos ao retorno da plateia. Não sei se é um bem ou um mal.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Loucos e adolescentes suicidas


Nos EUA, desde o massacre na escola primária Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, o debate não para: quem mata, as armas ou os homens? 

Obviamente, quem mata são homens com armas --e é mais fácil controlar as armas do que controlar os homens, os quais são bastante imprevisíveis.

Para a NRA (Associação Nacional dos Rifles), ao contrário, as armas não seriam problema à condição de que elas não caíssem nas mãos de malucos. Como evitar que isso aconteça? O presidente da associação propõe a criação de uma lista nacional das pessoas que, em algum momento da vida, precisaram de atendimento em saúde mental. Os que estivessem nessa lista seriam barrados na hora de adquirir uma arma.

Não se sabe se a lista incluiria só os que recorreram a psiquiatras e a medicações ou também os que recorreram a um psicoterapeuta (sem contar os que pediram ajuda a padres, pastores, rabinos e outros "sábios").

Mesmo supondo que se trate só dos pacientes medicados, imagine as consequências. Dez anos atrás, você ficou triste porque perdeu o emprego, e um médico (talvez desavisado) quis ajudar e lhe prescreveu antidepressivos (que, aliás, provavelmente não serviram para nada). Pois bem, desde então, você está na tal lista nacional (a qual, não se iluda, não será consultada só quando você pedir para adquirir uma arma).

Anos atrás, psicoterapeuta nos EUA, eu atendia pacientes que tinham direito ao reembolso da terapia pelo seu seguro de saúde, mas que preferiam pagar meus honorários de seu bolso: eles não queriam que ficasse registrado em lugar algum que eles tinham precisado de assistência em saúde mental --achavam que essa "fraqueza" mancharia seu currículo. Essa preocupação me parecia descabida, mas talvez eles tivessem razão.

Recorrer à psicoterapia e à medicação psiquiátrica se tornou banal. Isso não é só consequência de diagnósticos e prescrições apressados, mas também de uma mudança na ambição da psiquiatria e da psicologia clínica, que querem, como a medicina, cuidar da gente, ou seja, exercer seu poder sobre nossas vidas.

Em vários casos, a nova versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), da Associação Americana de Psiquiatria, prevista para este ano, baixa o limiar do que pertence à patologia, designando como transtornos --passíveis de cuidado médico e psicológico-- afetos, pensamentos e humores que, até hoje, eram considerados parte da experiência humana normal.

Em outras palavras, somos cada vez mais considerados como "doentes" (e convidados a procurar tratamento) por uma psicologia e uma psiquiatria que não param de definir nossa "normalidade" --com as melhores intenções.

Isso é bom ou ruim? Nem sempre é fácil responder. Eis um exemplo, complicado.
Acabo de ler uma pesquisa sobre suicídio na adolescência, de Matt Nock (professor de psicologia em Harvard) e outros, publicada em 9 de janeiro no "JAMA Psychiatry", o Jornal da Associação Médica Americana on-line (íntegra:http://migre.me/cNp2O ).

Numa amostra de mais de 6.000 adolescentes de 13 a 18 anos, os pesquisadores acharam que 12% pensaram em suicídio de maneira consistente e continuada --as meninas mais do que os meninos: entre elas, 6% fizeram planos de suicídio e 5% tentaram se matar. Esses números não destoam de minha experiência, tanto de clínico como de ex-adolescente, mas, claro, preocupam.

No entanto, a repercussão do estudo é devida a outro dado: como o "New York Times" destacou, segundo a pesquisa, mais da metade dos adolescentes suicidários tinham recebido algum tipo de tratamento antes de planejar ou mesmo tentar o suicídio.
Receávamos que nossos adolescentes não tivessem acesso ao tratamento do qual precisam, mas o problema, aparentemente, é que os tratamentos não estariam funcionando direito. Claro, é preciso aperfeiçoá-los, estender seu alcance etc. Mas será que nossos tratamentos não funcionam ou será que estamos esperando deles o impossível?
Mal precisa dizer que devemos evitar que os adolescentes se suicidem. Por outro lado, é raríssimo que alguém atravesse a adolescência sem pensar, de vez em quando, que o futuro poderia não valer a pena.
Seria fácil, mais uma vez, designar esse pensamento normal como transtorno e, para curar alguns adolescentes, pretender curar a adolescência, tentando tirar dela aquela dor de viver que, bem ou mal, a define.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Então, era só isso?


 Mal conseguimos ver o tempo passar sem pensar que a nossa vida poderia ou deveria ter sido diferente 

 MICHAEL APTED é um diretor de cinema inglês, premiado e popular (participou das "franquias" James Bond e Nárnia). Em 1964, aos 23 anos, ele fez um filme para a televisão inglesa, chamado "7 Up" (de sete para cima, com um trocadilho com o nome de um refrigerante), no qual entrevistou 14 crianças de sete anos, de origem social variada, perguntando quais eram seus sonhos, planos e desejos. Ele prometeu que voltaria a entrevistar as crianças a cada sete anos.

 Apted manteve sua promessa. Entrevistou o mesmo grupo aos 14 anos, aos 21, aos 28 etc. A cada filme, os entrevistados comentavam suas repostas anteriores, ou seja, mediam as mudanças em sua vida.

 Na semana passada, estreou, em Nova York, "56 Up": as crianças de 1964 (todas vivas) têm hoje 56 anos. Para ter uma ideia do conjunto e do último documentário, veja trechos no site da CBS: http://migre.me/cHQ6k.

 A intenção inicial de Apted era documentar, ao longo de décadas, as consequências das diferenças econômicas e de classe. De fato, a mobilidade social existiu, mas não foi grande. Os mais ricos, que estudavam nas melhores escolas, foram para as melhores universidades e, hoje, estão, como se diz, bem de vida. Os mais pobres (alguns vinham de uma espécie de asilo para crianças carentes, outros, do East End de Londres) tiveram uma vida mais dura. Em suma, tudo tocante e mais ou menos previsível, salvo a sensação com a qual fiquei ao sair do único cinema de Manhattan em que o filme está passando, o IFC Center, na Sexta Avenida, na altura de 3rd Street.

 Quase em frente ao IFC, do outro lado da avenida, está o Blue Note, que, desde os anos 1980, é um templo do jazz nova-iorquino. Deixando o cinema, deparei-me com o letreiro do clube: a "blue note" é aquela nota que é cantada ou tocada meio tom abaixo do que seria esperado e confere, portanto, à música e às letras uma dimensão de tristeza quase existencial (o "blues"). Por isso, alguns dizem que a "blue note" tem a ver com a vida nas plantações, sua dureza e a nostalgia de outro destino.

 O trecho da Sexta Avenida de ambos os lados do cinema IFC fica animado até muito tarde: há dois sex shops e cinco ou seis estúdios de tatuagem e piercings. Para quem passar por Nova York e quiser se aventurar por lá: nenhuma preocupação, não há perigo de ser assaltado.

 Mas há outros perigos, sobretudo se você já tiver esbarrado no letreiro do "Blue Note", depois de assistir ao documentário de Michael Apted. No meu caso, aconteceu o seguinte: fiquei parado, na calçada, intensamente triste, sem saber por quê. As únicas palavras que vinham à minha cabeça eram: "Então, era isso?".

 Cuidado: nenhum dos entrevistados de Apted, nem na infância nem na juventude, expressou desejos extravagantes. A maioria, de um jeito ou de outro, teve a chance de tentar realizar seus sonhos. Claro, alguns escondem suas dificuldades (de nós e de si mesmos), mas, no conjunto, a vida não foi propriamente cruel com nenhum dos 14. Quase todos tiveram amores, filhos, alguma realização; um construiu uma bonita fazendola, outro comprou uma casa de férias na Espanha e outro, que fracassou na vida, foi eleito representante de sua comunidade. Então, qual é a razão da "blue note" que ressoou em mim?

 Talvez seja a sensação de que a vida vai (aos poucos, de sete em sete anos) e que poderia ter sido outra. Mas será que poderia? E outra como?

 Os estúdios de tatuagem e os sex shops da Sexta Avenida parecem sugerir que há vidas que, à diferença da nossa e da dos entrevistados de Apted, queimam rápido, sem se resguardar; mas basta entrar nas lojas para descobrir que nada aí dentro é "extremo" -o ideal de uma vida intensa, como um único grande e curto fogo de artifício, mal tem existência própria, mas é apenas o efeito da nossa nostalgia de "outra coisa".

 Só há uma vida: a que estamos vivendo. É óbvio. Mas por que mal conseguimos viver sem imaginar que ela possa ou deva ser "outra"?

 É uma aflição moderna, pós-romântica. Imagine que Emma Bovary e Anna Karenina tenham se juntado, desistido de complicar sua vida com amantes e sonhos, e transferido todas suas aspirações para seus filhos, ou seja, para nós. Rebentos dessas duas maravilhosas mulheres, como poderíamos achar que o que vivemos é suficiente? Como poderíamos ver o fim da vida se aproximando sem resmungar: "Então, era só isso?".

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Experiência para 2013


A vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las seria esconder nossa maior riqueza

Vinte anos atrás, fui ao casamento de uma amiga em Saratoga Springs, no norte do Estado de Nova York. Era o fim do inverno; a cidade ainda não recebera a turma das águas termais, que chega na primavera, e ainda menos a turma das corridas de cavalos, que acontecem no verão.

Na noite antes da festa, passeando pela rua principal (que, se não me engano, chama-se Broadway), entrei numa loja para fugir do vento. Num canto, estavam os restos dos restos das liquidações de inverno, descontados até não poder mais: as camisas custavam US$ 5 (R$ 10, mais ou menos). Adquiri duas camisas idênticas de sarja pesada, de um cinza escuro, quase preto. Eram as últimas duas no meu tamanho.

Desde então, com o uso, a sarja se tornou mais macia e a cor desbotou um pouco. Por sorte minha e das camisas, isso aconteceu ao longo de uma época que me parecia valorizar, digamos assim, as marcas da experiência. É dessa forma que sempre entendi a moda do brim desbotado, das bainhas desfeitas e desfiadas ou das calças jeans furadas e rasgadas: a vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las (por exemplo, atrás de roupas novas) significaria esconder a maior riqueza que acumulamos, a dos percalços de nossa existência -que eles tenham sido bons ou ruins, tanto faz.

Um dia, 8 anos atrás, a manga de uma dessas camisas brigou com a maçaneta de uma porta, e o tecido foi rasgado, na forma de um sete -de cinco centímetros por oito.
Mandei consertar, sem dissimular o remendo. Afinal, o mundo me parecia maduro para isso: tanto eu quanto minha camisa (que se tornou a preferida das duas) podíamos mostrar sem vergonha as marcas dos anos e das batalhas.

Durante muito tempo, carreguei meu remendo na manga como o distintivo de uma honrada patente militar. Ou como uma declaração à la Neruda, feita por mim e por minha camisa: "confesso que eu vivi".
Como disse, minha confiança no espírito dos tempos era um pouco ingênua, e isso foi revelado nos últimos dias, quando, de repente, um menino de dez anos apontou o dedo para a manga de minha camisa e estranhou: "Mas este é um rasgo?".

Pensei que ele estivesse censurando o que talvez lhe aparecesse como desleixo: por que eu não compraria uma camisa nova e pararia de impor ao mundo a triste visão de um remendo? Mas logo percebi que ele estava usando uma calça jeans rasgada com afinco, de modo que era suficiente ele dobrar levemente as pernas para que seus joelhos estivessem ao ar livre.

Agora, a própria existência de calças rasgadas e desbotadas para crianças invalida meu entendimento de que os nossos tempos valorizariam a experiência. Pois, mesmo vivendo intensamente, uma criança não teria tempo para maltratar sua calça a ponto de lhe imprimir um "look" rasgado radical.

Conclusão: para o menino, meu rasgo e meu remendo eram ruins porque eram verdadeiros. Enquanto os rasgos da calça jeans dele eram bons porque eram de mentira. Ou seja, o que ele aprendera a valorizar não era a experiência real (pressuposto de eventuais acidentes com suas calças), mas os rasgos falsos, ou seja, a pura aparência da experiência.

Entendo que adolescentes e pré-adolescentes tentem aparentar "quilometragem". Alguns, aliás, fazem "besteiras" para acumular logo experiências que lhes permitam se comparar aos adultos. Outros (hoje mais numerosos, talvez?) fazem menos besteiras, porque escolhem um atalho (que os pais, em geral, adoram propor): eles descobrem que arriscar-se a viver é mais difícil e mais cansativo do que acumular e exibir as falsas aparências da experiência. Para eles, os rasgos falsos são propriamente melhores do que os verdadeiros. E brincar é sempre melhor do que viver.

Escrevo esta coluna no dia 31. Estou perto de Times Square. Ao longo da tarde, periodicamente, ouço uma "hola" das pessoas que já esperam para o fim do ano. A "hola" corresponde aos momentos em que as redes de televisão ligam as câmeras. Faz frio e ficar 12 ou 14 horas em Times Square é chato. À meia-noite, você dará um abraço e um beijo nos amigos que estão com você, mas isso você poderia ter feito em casa ou numa festa. A razão de estar em Times Square não é sua experiência, é a aparência de alegria que você talvez possa mostrar ao mundo, na televisão.

Para todos, os votos de um 2013 com rasgos e remendos reais, ou seja, de uma vida que não precise ser confundida com um reality show para convencer aos outros (e à gente) de que ela vale a pena.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Mundo Não Acabou


Depois do fim do mundo, a gente se encarará sem mediação, com uma mão pronta em cima do coldre 

PODE SER que o mundo acabe entre hoje (segunda, dia em que escrevo) e quinta, 27, dia em que seria publicada esta coluna. Em tese, eu não devo me preocupar: meu título não será desmentido -pois, se o mundo acabar, não haverá mais ninguém para verificar que eu me enganei.

 Tudo isso, em termos, pois o fim do mundo esperado (mais ou menos ansiosamente) por alguns (ou por muitos) não é o sumiço definitivo e completo da espécie. Ao contrário: em geral, quem fantasia com o fim do mundo se vê como um dos sobreviventes e, imaginando as dificuldades no mundo destruído, aparelha-se para isso. Na cultura dos EUA, os "survivalists" são também "preppers": ou seja, quem planeja sobreviver se prepara.

A catástrofe iminente pode ser mais uma "merecida" vingança divina contra Sodoma e Gomorra, a realização de uma antiga profecia, a consequência de uma guerra (nuclear, química ou biológica), o efeito do aquecimento global ou, enfim (última moda), o resultado de uma crise financeira que levaria todos à ruina e à fome.

 A preparação dos sobreviventes pode incluir ou não o deslocamento para lugares mais seguros (abrigos debaixo da terra, picos de montanhas que, por alguma razão, serão poupados, lugares "místicos" com proteção divina, plataformas de encontro com extraterrestres etc.), mas dificilmente dispensa a acumulação de bens básicos de subsistência (alimentos, água, remédios, combustíveis, geradores, baterias) e (pelo seu bem, não se esqueça disso) de armas de todo tipo (caça e defesa) com uma quantidade descomunal de munições -sem contar coletes a prova de balas e explosivos. Imaginemos que você esteja a fim de perguntar "armas para o quê?".

Afinal, você diria, talvez a gente precise de armas de caça, pois o supermercado da esquina estará fechado. Mas por que as armas para defesa? Se houver mesmo uma catástrofe, ela não poderia nos levar a descobrir novas formas de solidariedade entre os que sobraram? Pois bem, se você coloca esse tipo de perguntas, é que você não fantasia com o fim do mundo. Para entender no que consiste a fantasia do fim do mundo, não é preciso comparar os diferentes futuros pós-catastróficos possíveis.

Assim como não é preciso considerar se, por exemplo, nos vários cenários desolados do dia depois, há ou não o encontro com um Adão ou uma Eva com quem recomeçar a espécie. Pois essas são apenas variações, enquanto a necessidade das armas (e não só para caçar os últimos coelhos e faisões) é uma constante, que revela qual é o sonho central na expectativa do fim do mundo. Em todos os fins do mundo que povoam os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município, lei, polícia, nação ou condomínio.

Nenhum tipo de coletividade instituída sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos, como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos. Esse é o desejo dos sonhos do fim do mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas particulares. O que nos parece justo, no nosso foro íntimo, sempre tentará prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme à lei.

 Por isso, depois do fim do mundo, a gente se relacionará sem mediações -sem juízes, sem padres, sem sábios, sem pais, sem autoridade reconhecida: nós nos encararemos, no amor e no ódio, com uma mão sempre pronta em cima do coldre. E não é preciso desejar explicitamente o fim do mundo para sentir seu charme. A confrontação direta entre indivíduos talvez seja a situação dramática preferida pelas narrativas que nos fazem sonhar: a dura história do pioneiro, do soldado, do policial ou do criminoso, vagando num território em que nada (além de sua consciência) pode lhes servir de guia e onde nada se impõe a não ser pela força.

 Na coluna passada, comentei o caso do jovem que matou a mãe e massacrou 20 crianças e seis adultos numa escola primária de Newtown, Connecticut. Pois bem, a mãe era uma "survivalist"; ela se preparava para o fim do mundo. Talvez, junto com as armas e as munições acumuladas, ela tenha transmitido ao filho alguma versão de seu devaneio de fim do mundo.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O Massacre de Newton



Na sexta passada, em Newtown, Connecticut, um jovem de 20 anos voltou para sua antiga escola primária e matou 20 crianças, de seis e sete anos, e seis adultos (a diretora, a psicóloga da escola e quatro professoras). Em casa, ele já tinha assassinado sua própria mãe. 

 Fiquei diante da televisão durante boa parte do fim de semana. O cenário bucólico da região reforçava a insensatez do acontecido.

 1) Poucas horas depois do massacre, o dr. Sanjay Gupta, neurocirurgião e "correspondente médico" da CNN, afirmava enfaticamente que precisamos de "uma legislação que permita que as autoridades façam o que deve ser feito". "Essas coisas", ele acrescentou, "podem ser previstas e podem ser tratadas".

 Na emoção do momento, Gupta (que, em geral, é competente e prudente) reiterou que sempre há sinais que nos avisam de que algo terrível está para acontecer. Seu exemplo? Veja: "Alguém está irritado e isolado, sofre de alucinações auditivas, tem paixão por armas e frequenta um estande de tiro".

 Diante desse quadro, lamentou Gupta, você não tem como chamar a polícia, pois ela não tem os meios legais para intervir. Por sorte, acrescento eu.

 Mais tarde, também na CNN, uma psiquiatra declarou que o atirador "era um perigo para sua própria família" (fácil de se dizer, sobretudo DEPOIS de ele ter assassinado a mãe). Segundo ela, fomos longe demais no respeito por doentes e perigosos: temos medo de prender as pessoas. A mesma psiquiatra disse que pessoas como o assassino, infelizmente, se recusam a serem medicadas.

 Ou seja, não é que nossos diagnósticos sejam imprecisos e tardios, nem que nossos remédios sejam insuficientes e precários. Também não é que a gente não saiba prever uma explosão de loucura assassina.

 Nada disso. Na sexta-feira, segundo a CNN, se tivéssemos os meios legais de internar e medicar à força, teríamos resolvido o problema definitivamente. Eu mesmo adoraria jurar, em cima das tumbas das vítimas de Newtown (e de milhares de outras, mundo afora), que, a partir de suas mortes, tudo mudará. Mas essas são palavras que apenas servem para nos consolar.

 2) Sou favorável ao movimento para que sejam verificados a sanidade (até onde possível, que é pouco) e os antecedentes dos que adquirem armas. Sou favorável à proibição da venda das armas de guerra --e talvez até de todas as armas. Mas, por favor, SEM ILUSÕES.

 No caso, em Connecticut, o controle já existe, e as armas usadas pelo assassino de Newtown eram devidamente registradas: elas pertenciam à mãe de assassino, uma de suas vítimas.

 O Japão tem uma legislação rigorosa contra a posse de armas. Justamente, em 2001, Mamoru Takuma, condenado à forca em 2004, entrou numa escola primária de Osaka e matou oito crianças --com uma faca.

 No Reino Unido, depois do massacre de Hungerford, em 1987 (16 vítimas, entre as quais a mãe do assassino --mais o assassino, que se suicidou), as armas automáticas e semiautomáticas foram banidas pelo Firearms (Amendment) Act, de 1988. No massacre na escola de Dunblane, na Escócia, em 1996 (morreram 16 crianças, um adulto --e o assassino, que se suicidou), foram usadas duas pistolas e dois revólveres. Em consequência, foi proibida a propriedade privada de todas as armas de mão. Isso não impediu que, em 2010, alguém, no condado de Cúmbria, Inglaterra, matasse 12 pessoas e ferisse mais 11, antes de se suicidar.

 Meus amigos caçadores, membros da National Rifle Association, pensam que não é bom proibir as armas: segundo eles, se as professoras, a diretora e a psicóloga de Newtown estivessem armadas e reagissem, o balanço do horror teria sido mais leve. O mesmo argumento poderia ser invocado pelo massacre na escola Municipal Tasso da Silveira, no Realengo, no ano passado. Mas você gostaria que suas crianças frequentassem uma escola em que os professores estivessem constantemente armados?

 Minha conclusão é a de que devemos agir, sim: controlar as armas de fogo, melhorar nossos diagnósticos. Mas, por favor, sem mentir para nós mesmos.

 Nossas ações acarretarão consequências mínimas: algumas vítimas talvez sejam salvas graças às novas disposições (isso já é muito), mas horrores parecidos com os que mencionei vão acontecer de novo --e nunca teremos como evitá-los, nunca teremos mesmo como preveni-los.

 Desculpem-me se o tema da semana foi sombrio. Mesmo assim, boas-festas a todos!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O devaneio é uma doença?



Enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio numa doença
CANSADA DE sonhar de olhos abertos, uma leitora, Ana, quer saber mais sobre devaneios: "Por que acabo sempre fugindo para esse lugar fictício, onde tudo pode ser tão melhor ou pior, um mundo do que poderia ser, do que poderia ter sido, da pior hipótese fantástica, pretéritos imperfeitos, mais que perfeitos, futuros incertos -e quando vejo, perdi tanto tempo com isso?".
Tenho carinho pelos sonhos de olhos abertos. Até o começo da adolescência, o devaneio era meu aliado contra o que me parecia ser a mediocridade do mundo.
Para mim, como para Ana, o devaneio era o país de onde eu vinha (minha origem escondida) ou minha pátria futura; de um jeito ou de outro, era meu passaporte para um outro mundo, que me salvaria de meu lugar e de meu presente.
Graças ao devaneio, assisti a centenas de aulas chatérrimas aparentando minha absoluta atenção (embora de olhos um tanto vidrados). Quando atravessei a dolorosa época em que os adolescentes menosprezam os seus pais, o devaneio me consolou, alimentando a certeza de que eu, de fato, pertencia a outra família.
Enfim, à força de contar histórias para mim mesmo, aprendi a contá-las para os outros.
O que fez com que, aos poucos, meu devaneio se acalmasse (por sorte, sem se exaurir)? Será que eu "amadureci"? Ou será que as aulas, o trabalho e os amores se tornaram interessantes, e a necessidade de sonhar diminuiu?
Na hora de explicar o excesso de devaneio, o adolescente tende a acusar a realidade na qual ele vive, a qual mereceria o enfado que ela lhe inspira. Mas, em geral, não há realidade enfadonha, apenas indivíduos enfadados, que, por alguma razão, não enxergam o encanto possível do dia a dia.
Ao devanear, eu me afasto da realidade. Por outro lado, sem devanear, mal consigo inventar e desejar realidades diferentes. O que é pior? Entre renunciar a devanear e sucumbir ao devaneio, talvez seja pior renunciar a devanear.
Infelizmente, enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio num transtorno, se não numa doença. Desde um texto de 2002 no "Journal of Contemporary Psychotherapy" (revista de psicoterapia contemporânea,http://migre.me/cjDUi), monitoro a ascensão do "transtorno" de devaneio excessivo e "mal-adaptativo" (ao mesmo tempo, desadaptado e capaz de comprometer nossa adaptação ao mundo).
Rapidamente, os blogs se multiplicaram -tanto de pessoas se queixando de seus devaneios excessivos como de médicos interessados em registrar o novo transtorno e propor uma cura. Dez anos atrás, o devaneio era considerado como fuga de um provável abuso infantil. Hoje, é possível ser sonhador sem ter sido abusado; é um alívio.
No fim de 2011, foi publicada, em "Consciousness and Cognition" (consciência e conhecimento), uma pesquisa detalhando o sofrimento dos sonhadores compulsivos (http://migre.me/ciyPG): blogs e sites fizeram uma festa.
Aprendemos que os sonhadores de olhos abertos sentem vergonha de sua condição. Eles se escondem, mas podem ser identificados porque, sem se dar conta, enquanto sonham, eles atuam seus devaneios em gestos e palavras (ou seja, falam sozinhos). Enfim, eles precisam ser ajudados porque tudo isso leva a ansiedade e depressão.
Li recentemente, num blog, a carta de uma mãe preocupada porque o filho, de sete anos, não para de sonhar em proteger o mundo contra os malvados ou em distribuir dinheiro aos pobres. Será que, nas próximas décadas, o devaneio ocupará o lugar do transtorno de deficit de atenção?
Desde 2008 (http://migre.me/ciyZL), alguns garantem que a fluvoxamina (remédio, em tese, para transtornos obsessivo-compulsivos) cortaria o devaneio excessivo. Se os laboratórios decidirem que medicar o devaneio é um bom negócio, que Deus acuda as crianças.
O devaneio excessivo é o hábito de Dom Quixote, Madame Bovary, dois terços dos adolescentes, quase todos os autores de novelas e romances etc. Transformar esse hábito, tão humano, em "transtorno", é uma tentativa de regular nossas vidas com a desculpa higienista: tudo nos é imposto para nossa "saúde" e nosso bem. Pararemos de sonhar porque é mais "saudável" prestar atenção só no que está na agenda de hoje?
No fundo, nada disso me estranha. Desde o século 19, as regras para uma vida saudável (física e psíquica) são nossa nova moral. E esse ataque contra o devaneio era previsível: qualquer forma de poder prefere limitar os sonhos de seus sujeitos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O fim da infância?

Quando as notícias comunicam o número de mortos e feridos num atentado, numa catástrofe ou numa chacina, nunca falta o número de crianças.

Podemos não saber se morreram mais homens ou mulheres, mas, se houve crianças entre as vítimas, seremos informados. E, das imagens que a reportagem nos mostrará, a mais tocante será a de um pai ou de uma mãe, carregando o corpo inerte do filho ou da filha. Menos de dois séculos atrás, a frase "houve 12 vítimas, entre as quais quatro crianças" produziria provavelmente um pequeno alívio, como se a perda das crianças fosse menos deplorável do que a dos adultos. Hoje, é o inverso. Da mesma forma, hoje, se a imprensa escrevesse que houve, entre as vítimas, cinco idosos, reagiríamos pensando que é uma pena, claro, mas, menos mal: eles já estavam de saída.

Ora, um hipotético leitor de dois séculos atrás pensaria que os idosos são a perda irreparável: afinal, uma criança, ninguém sabe no que ela vai dar, enquanto um idoso é patrimônio consolidado. Num incêndio, você prefere que queime um caderno quase virgem ou o outro, no qual você anota seu diário há décadas? A mostra "The Century of the Child" (o século da criança), no Museum of Modern Art, de Nova York, fechou em 5 de novembro. Mas o catálogo (com o mesmo título, publicado pelo próprio museu) é melhor que a mostra: os documentos que foram expostos são todos reproduzidos e acompanhados por uma coletânea de ensaios excelentes.

 A tese geral é que, de 1900 a 2000, foi inventado e construído um mundo especificamente destinado às crianças e a suas necessidades presumidas, na sala de aula e na casa, na hora de aprender, de brincar e de se divertir. Ao longo desse século, as crianças deixaram de ser consideradas como adultos em miniatura ou incompletos para se tornar uma espécie autônoma e, supostamente, melhor do que a nossa --em tese, sem as más influências dos adultos, elas poderiam ser geniais, inocentes e puras como o bom selvagem. Pouco importa se perguntar o que é realmente uma criança e de qual barbárie ela seria capaz sem a ajuda dos adultos.

A invenção da especificidade da infância não diz nada sobre as crianças em si, mas revela algo sobre os adultos. Pois essas crianças, tão diferentes de nós, encarnam o que gostaríamos de ser. Dois exemplos. 1) O quarto de criança de classe média (o habitat infantil idealizado) é dominado pela estética do fofo. Os adultos se livram do desconforto da arte e das incertezas do gosto para "apreciar' sem culpa patinhos de madeira, bonecos, florzinhas e estrelinhas no teto. Eles também se livram da história: nenhum móvel e nenhum objeto antigos (a higiene é a desculpa).

Com esse interior atemporal, de conto de fada, o adulto moderno, atormentado por um irremediável desamparo existencial (falta de pátria, de classe, de tradição, se não de família), inventa, para a criança, a caricatura do amparo que ele deseja para si. 2) Quase no meio do século da criança, em 1938, Johan Huizinga publicou "Homo Ludens" (o homem que joga - ed. Perspectiva) --o clássico, que, como se sabe, situa o jogo como atividade humana por excelência.

Vale a pena lê-lo ou relê-lo pelo prazer, e também para entender quanto e como a proposta de Huizinga foi, por assim dizer, extraviada --resultando numa massa de escritos em favor do divertimento, do ócio, das férias, do brincar e do infantil como atividades muito mais humanas, produtivas e interessantes do que o trabalho, a concentração, a reflexão e a maturidade. Entende-se que crescer tenha se tornado difícil para as crianças, pois elas não podem parar de brincar, ou seja, de encenar a "virtude" do jogo, que nós, supostamente, perdemos. No começo do catálogo que citei, Juliet Kinchin, curadora, escreve: "Falando solenemente para a câmera em 1995, como parte do documentário ficcionalizado 'Children´s Video Collective', um menino faz a predição seguinte: 'No futuro, as crianças não existirão mais.

Minha geração é provavelmente a última geração de crianças. Ou melhor, a última geração a ter a experiência da infância. Isso não significa necessariamente que chegou o momento de guardar as coisas da infância. Ao contrário, isso pode significar que o uso das coisas da infância talvez acabe sendo prolongado indefinidamente, até a morte'". Ou seja, a infância não vai acabar, mas os adultos já estão em extinção.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Decisões morais



Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois assaltantes; você vai acelerar?

É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.

Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?

Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.
O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A menina que se achava 007


 Por que uma menina de 13 anos entende um filme de James Bond, mas não a tragédia de uma família? 

 ASSISTI, NESSES dias, a um documentário bonito e tocante, "Diário de uma Busca", de 2011. 

 A autora, Flavia Castro, investiga a morte misteriosa de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro. Junto com um amigo, também militante de esquerda durante a ditadura, Celso morreu ou foi morto, em 1984, em Porto Alegre, no apartamento de um alemão que teria sido oficial nazista. 

 Na tentativa de entender o que aconteceu, Flavia reconstrói sua própria infância durante a clandestinidade e o exílio dos pais, nos anos 1960 e 1970, por Argentina, Chile, França e Venezuela. 

 Achei que uma menina como S., 13 anos, gostaria do filme, e a deixei em frente à TV, aparentemente interessada. Meia hora mais tarde, S. estava no meio da reprise de "007 - Cassino Royale", o James Bond de 2006, que ela já vira duas ou três vezes. Ela me disse que tinha parado o documentário porque "não entendia o que acontecia na história". 

 Ou seja, uma menina inteligente de 13 anos "entende" sem problema que Bond mate um tal Mollaka, explodindo, no Madagascar, a embaixada do país de Nambuto (?), e logo ele reapareça na casa de M. na Grã-Bretanha -ou talvez ele reapareça (não me lembro mais) nas Bahamas- para seduzir a mulher de Dimitrios. A mesma menina não entende a fuga de um militante de 40 anos atrás -aliás, nem estou certo que ela entenda o que era um militante de 40 anos atrás. 

 Tudo bem, lamento a mediocridade do ensino e, em geral, a futilidade da conversa dos adultos. Mas há uma outra razão, talvez mais importante, que faz que, para S., seja mais fácil entender as aventuras fantásticas de Bond do que a tragédia real da família Castro. 

 É aqui que a leitura de "O Homem que se Achava Napoleão - Por uma História Política da Loucura", de Laure Murat (Três Estrelas), torna-se indispensável. 

 Murat mostra exaustivamente como, da Revolução Francesa até a Comuna de Paris, os acontecimentos políticos e sociais modelaram a loucura e os delírios. Claro, no meio do Terror, com suas incessantes execuções públicas, era mais fácil do que hoje que alguém acreditasse ter sido decapitado e andar pelo mundo com a cabeça de outro, erroneamente instalada no seu pescoço. 

 Mas as implicações do livro de Murat são mais gerais e radicais. Como mostra Jurandir Freire Costa no breve mas importante prefácio, a questão é: "Em que medida a loucura pode ser dissociada da atmosfera cultural que a cerca?". 

 Como Murat (e como Freire Costa), tendo a pensar que cada cultura (e cada época de cada cultura) dá forma a sofrimentos psíquicos que lhe são próprios. 

 As revoluções do fim do século 18 produzem um homem novo, de quem ainda somos os herdeiros. 

 Esse homem novo é levado a "apreender a ordem do mundo através de sua subjetividade": ele "se identifica com os personagens do romance psicológico", "funda a introspeção como meio de conhecimento" e, sobretudo, ele é obrigado a reconhecer que a autoridade não é mais um atributo dos padres, dos nobres ou dos anciões. Ele mesmo, esse homem novo, deve decidir no que acreditar, seguindo seu foro íntimo e suas convicções. 

 Uma parte dos transtornos modernos derivam da incerteza de quem abandonou sua confiança tranquila nas tradições laicas ou divinas. Mas talvez esses não sejam os transtornos mais graves. 

 Bem na aurora da modernidade, Philippe Pinel, o inventor da psiquiatria, observa que, de todas as formas de mania, duas são incuráveis: "os inchaços do orgulho e o fanatismo religioso". 

 Laure Murat entende que Pinel, aqui, está sendo "político", transformando em doenças incuráveis as paixões dos grandes inimigos da Revolução Francesa (os aristocratas são "orgulhosos", e o clero é "fanático"). 

 Mas eu acho que Pinel, nessa observação, está também descrevendo com propriedade os transtornos mais graves da modernidade, que são reativos. É contra a angústia de ter que inventar e sustentar nossas próprias crenças que adotamos fanatismos religiosos nostálgicos ou fantasias grandiosas e heroicas nas quais imaginamos que somos as pedras angulares do mundo, invencíveis, imortais, extraordinários e únicos. Esse "inchaço do orgulho", aliás, é o que mais gostamos de transmitir a nossas crianças, para que continuem tão grandiosas e heroicas quanto nós somos, em nossas delirantes fantasias. 

 Entende-se por que S., 13 anos, acha que uma história de James Bond é mais compreensível do que a incerteza e a dureza do destino da família Castro.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A fé no progresso


 A ideia de progresso 'natural' é falsa. Na história, nada é garantido: tudo é, sempre, conquistado 

 ASSISTI A "Lincoln", o novo filme de Spielberg, no dia da estreia, na sexta-feira passada, numa lotadíssima sessão da tarde, em Manhattan. No Brasil, "Lincoln" chegará só no fim de janeiro. 

 O filme, que é uma obra-prima imperdível, se concentra sobre o esforço político de Lincoln para que a Câmara dos Representantes ratificasse, em 1865, a 13ª emenda da constituição dos EUA -a que aboliu a escravatura no país. 

 A escravatura era a aposta central da guerra, que durava havia quatro anos, entre o Norte e o Sul escravocrata. Mas, mesmo no Norte, nem todos eram abolicionistas, e muitos temiam que os negros liberados se tornassem um dia cidadãos e, pasme, pudessem votar. 

 Ninguém, naquela sala de cinema, na sexta passada, podia evitar de pensar que, três dias antes, o país reelegera seu primeiro presidente negro. Em menos de 150 anos, foi um progresso e tanto. 

 Falo de progresso só porque essa mudança promove valores nos quais aposto: quando eles avançam, acho que a gente progride. Não acredito na ideia de uma evolução "natural" da civilização (nota para os amigos filósofos: concordo com Voltaire, não com Condorcet, ainda menos com Saint-Simon). 

 Lembro-me de discussões intermináveis, no fim dos anos 1960, com Nicola, um jovem salernitano que fazia uma pós-graduação em geologia do petróleo em Genebra e que era decididamente anticomunista. A cada almoço, eu e meu amigo Enzo tentávamos convencer Nicola de que o futuro do socialismo seria radioso. Não funcionava. 

 Um dia, achei um escrito (filosoficamente duvidoso, mas de uma procedência que pareceu confiável a Nicola) segundo o qual, radioso o não, o futuro socialista era inelutável, previsto pelo marxismo "científico". Nicola acreditava na ciência, era ingênuo, e o texto o abalou. Não sei se ele se converteu, mas sumiu do restaurante universitário durante um tempo, e a gente se perdeu de vista. 

 Bom, Nicola, é um pouco tarde, mas talvez você esteja trabalhando numa plataforma do pré-sal e leia este jornal (o mundo é pequeno, mesmo). Nesse caso, aceite minhas desculpas: o marxismo "científico" é uma ideia calhorda, e o comunismo nunca foi inelutável. Já naquela época, aliás, eu sabia que nada acontece na história sem o engajamento subjetivo dos atores (por isso preferia, por exemplo, Henri Lefebvre a Louis Althusser -e por isso continuo gostando de Alain Badiou, porque ele nunca deixou de pensar que, sem engajamento dos sujeitos, não acontece nada, não há progresso algum). 

 Tudo isso parece óbvio? Vamos devagar: o sonho comunista pode estar morto, mas nossa (cômoda) crença num progresso "natural" e garantido continua bem viva. 

 Por exemplo, na semana passada, na eleição americana, junto com a vitória de Obama, aconteceu a derrota de dois candidatos a senador cuja oposição à legalização do aborto (mesmo em caso de estupro) era de um machismo e de uma estupidez ultrajantes. Na mesma eleição, houve também Estados que aprovaram o casamento de pessoas do mesmo sexo. 

 Nasci e cresci numa Itália em que a desigualdade de fato e de direito era sinistra, e o amparo era pouco. Nesse mundo, as mulheres estavam longe de ter direitos comparáveis aos dos homens, não existia divórcio, qualquer aborto era criminoso, o consumidor de droga era igualado ao traficante, e a homossexualidade era uma vergonha que era melhor esconder. 

 Para que essas realidades mudassem, lutei -ou seja, junto com muitos outros, votei, escrevi, desfilei, militei. Mesmo assim, tenho a estranha impressão de que fomos carregados por uma espécie de movimento "natural", ao qual era possível resistir, mas que sempre ganharia no fim -um progresso na direção do grande ideal cristão: a maior liberdade possível dos indivíduos sem renunciar à solidariedade. 

 Essa impressão de progresso "natural" é falsa e perigosa. Na história, nada é garantido: tudo é, sempre, conquistado. 

 O que nos separa de outros mundos possíveis (e horríveis) não é a inelutabilidade do progresso, mas a obstinação de pequenos grandes gestos. Entre nós e as trevas, há o corpo ferido de Malala Yousafzai, 14, baleada na cabeça pelo Talibã paquistanês porque promovia o "secularismo' (ou seja, queria ir para a escola e pensar com a sua cabeça). 

 Ou, a coragem da catarinense Isadora Faber, 13, que continua seu "Diário de Classe" on-line, embora hostilizada por professores, por administradores e talvez por um pintor negligente (Folha, 11 de novembro).