quinta-feira, 27 de setembro de 2012
Protestos muçulmanos
A facilidade com o qual me sinto ofendido revela que eu concordo, em parte, com a ofensa que recebi
O VÍDEO "A Inocência dos Muçulmanos", apesar de sua mediocridade, fez sucesso. Ninguém aguenta ver aquilo até o fim, mas o vídeo instigou a curiosidade dos internautas quando se soube que ele era a causa dos violentos protestos que se alastraram pelos países muçulmanos, nas últimas duas semanas.
Esquecendo os terroristas que se aproveitaram desses protestos para semear a morte, a visão dos desfiles e dos quebra-quebras foi instrutiva e desalentadora. Instrutiva por nos explicar, mais uma vez, a diferença cultural que separa o Ocidente do islã, e desalentadora porque a esperança de um entendimento recíproco parece pequena.
a) Os cristãos terão dificuldade em sentir empatia com os muçulmanos indignados pelo vídeo, pelas caricaturas dinamarquesas de seis anos atrás etc. Afinal, aqui, Jesus é uma marca de calças jeans e uma personagem de "South Park". No YouTube, encontrei um grupo francês, "Les Vampires", que, como capa de seu disco sobre a homossexualidade de Jesus, propõe o Cristo com uma mão pregada na cruz, enquanto, com a outra, ele se masturba.
Os cristãos se deleitaram com "O Código da Vinci", um best-seller, que explica que Jesus teve filhos com Maria Madalena e a igreja nos escondeu tudo isso até hoje. Qual empatia possível com os que condenaram à morte Salman Rushdie por ter escrito "Os Versos Satânicos", um grande livro, mais citado que lido, em que há sequências oníricas das quais eu nunca entendi por que seriam ofensivas para o islã? Nota: acaba de sair a autobiografia da clandestinidade de Rushdie, "Joseph Anton, Memórias" (Companhia das Letras).
b) Imaginemos, por um instante, que eu não me aguente e queira manifestar minha indignação com "Les Vampires". Uma das últimas coisas que eu faria seria atacar a embaixada da França.
Entendo que os protestos atuais passem a ser contra países cuja política seria mais favorável a Israel do que à Palestina. Mas o fato é que, neles, as massas muçulmanas reagem como se considerassem que um pensamento é a expressão e a responsabilidade do grupo ao qual seu autor pertence. No mínimo, o grupo (a nação) seria culpado porque não sabe disciplinar seus membros.
Ora, prefiro, de longe, aturar "Les Vampires" a exigir que os Estados se tornem guardiões do que pensam seus cidadãos.
Já houve épocas (não tão remotas) em que queimávamos e torturávamos pessoas que pensavam fora dos trilhos da igreja. Mesmo naquelas épocas, ninguém imaginava que os produtos das consciências individuais fossem responsabilidade do grupo ou da nação.
c) O comentário mais interessante que li nestes dias foi a citação, feita por Clóvis Rossi, de Yaron Friedman, no jornal israelense "Yediot Aharonot": "Na consciência árabe e muçulmana, Maomé e seus primeiros califas [chefes político-religiosos] do século 7º simbolizam a idade de ouro do islã e a gênese de um império árabe-muçulmano que chega ao século 12 na vanguarda do desenvolvimento cultural mundial".
"Toda ofensa feita ao profeta é cutucar a lembrança do estatuto de inferioridade no qual se encontra, desde o século 19, o mundo árabe-muçulmano em relação ao Ocidente."
É quase uma regra: qualquer suscetibilidade extrema é o sinal de uma fragilidade interna. Em outras palavras, a facilidade com o qual eu me sinto ofendido revela que eu mesmo devo concordar, ao menos em parte, com a ofensa que recebi.
Ou seja, a suscetibilidade muçulmana manifesta que deve existir, na alma muçulmana, um conflito entre o tradicionalismo religioso e uma aspiração à liberdade em suas manifestações modernas ocidentais.
d) Alguém perguntará: se estamos dispostos a aturar qualquer expressão individual, será que, para nós, nada é sagrado? Será que nenhuma opinião nos ofende a ponto de nos dar vontade, por exemplo, de manifestar?
Resposta. O que é sagrado para mim não é tal ou tal outra opinião -ainda menos a minha. O que é sagrado é o próprio direito de expressar uma opinião e de viver segundo ela manda.
Se uma mulher no Irã queima uma bandeira dos EUA ou da França, acho que é seu direito. Mas, se ela for apedrejada por ser adúltera, irei para a rua pedindo que a gente intervenha com tudo o que temos. Por ser ocidental e moderno, durmo bem com os insultos de quem pensa diferente de mim. Só não durmo bem com o grito dos indivíduos impedidos de se expressar e de viver segundo a liberdade de sua consciência.
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
A saca de sal
Antes de viver juntos, seria bom consumir uma saca de sal. Para o quê? Para se conhecer melhor?
COMEÇOU COM um e-mail bizarro me avisando que o restauro da Fontana del Sale (a fonte do sal, em Novi Ligure, Itália) estava terminado (bizarro porque o restauro foi terminado um ano atrás). Imediatamente, a mensagem evocou em mim um momento esquecido.
Novi Ligure (leia-se "lígure") é uma cidade de menos de 30 mil habitantes; apesar de seu nome, ela não está na Liguria, mas no Piemonte. Num domingo de inverno do fim dos anos 70, eu atravessava a Piazza Mariano delle Piane, em Novi, com minha avó Elena.
Sei que era domingo porque ela tinha pedido que parássemos (íamos de Rapallo a Casale Monferrato, visitar amigos) para que ela escutasse a missa. E sei que era inverno porque ela estava com um sobretudo longo de cachemira um tanto surrada, mas especialmente mórbida, com um colarinho do mesmo astracã cinza de seu chapéu "clochê".
Também ela tinha enfiado a mão, numa luva escura, debaixo do meu braço, mais pelo calor e pela intimidade do gesto do que por necessidade de apoio ao caminhar.
Eu estava lhe contando que acabava de me juntar com uma mulher, na cidade onde eu morava, que era Paris. Ela parou diante da Fontana del Sale, que está no meio da Piazza.
"Fonte do sal" não é um apelido. No passado, o sal era crucial para preservar os alimentos (pense no bacalhau), era vendido em sacas, e era precioso. Em 1814, os noveses defenderam sua reserva de sal contra franceses e ingleses. Para celebrar o esforço, foi construída a fonte, no meio da qual surge uma figura, que aperta contra o peito uma saca, que se parece com uma daquelas almofadas que as crianças querem sempre consigo e sem as quais elas não conseguem dormir (uma foto da fonte: http://migre.me/aKii8).
Minha avó, olhando para a estátua, disse: "Prima di vivere insieme, bisogna consumare un sacco de sale" -antes de viver juntos, é preciso consumir uma saca de sal. Minha avó era religiosa, mas sábia demais para se opor ao fato de eu me juntar sem me casar. Sua preocupação era com a precipitação.
Eu, nascido em tempos de geladeira, não sabia quanto tempo duraria uma saca de sal. Mas o recado era claro: antes de se juntar, um longo namoro é oportuno.
Há uma constatação que eu faço com frequência: não sei quem começou, se fomos nós ou se foram a literatura e o cinema, mas, em geral, no início das relações, a gente idealiza tanto o parceiro quanto o novo envolvimento afetivo ou sexual (as dificuldades da etapa seguinte ficam para a comédia, se não para a farsa). Consequência: o exórdio das relações aparece como um momento glorioso, cujo espírito se perderá, inelutavelmente, ao longo do tempo, consumido pela trivialidade do dia a dia e da convivência.
Uma leitora, Ester Costa, comenta: "Eu acho que, na verdade, começa mal e vai piorando. É ruim e errado desde o começo, e a gente sabe, mas, por decreto decide que vai continuar. Ninguém esconde do outro o que é, a gente é que não quer enxergar". Ou seja, "o germe da destruição" das relações está no seu começo, "o ovo da serpente está aí".
Outra leitora, Mariana Seixas, vai na mesma direção; ela acha que, quando encontramos alguém "com quem no futuro dividiremos uma vida e quatro paredes, (...), não conhecemos bem a pessoa", e o futuro nos apresentará "uma pessoa diferente daquela dos primeiros meses de namoro".
Em outras palavras, a degradação das relações está num defeito de fábrica, numa pressa ou num descuido do encontro inicial, em que, paradoxalmente, falamos demais e não nos mostramos o suficiente.
Minhas leitoras têm razão. O momento do encontro é enganoso, por um viés de otimismo: valorizamos tanto o grande amor definitivo que acabamos enxergando sua miragem no horizonte, mesmo quando não há por quê. Você lê os três primeiros números sorteados da Mega-Sena, são os que você jogou, o coração já dispara -embora até lá você não tenha ganho absolutamente nada, nem a consolação de uma quadra.
Seria bom, em suma, segundo minhas leitoras, que os futuros consortes se conhecessem melhor.
Em tese, eu concordaria. Mas, naquele domingo dos anos 70, eu completei a frase de minha avó perguntando-lhe, justamente, se o tempo da saca de sal era para o casal se conhecer melhor. Ela fez o gesto de quem descarta uma estupidez e disse: "Ma vá un po', non per conoscersi; per abituarsi", deixa de bobagens, é preciso de tempo não para se conhecer, mas para se acostumar.
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Conversas para mestres inseguros
Pode desejar fora dos trilhos, mas só se seu desejo for consequência de um trauma infantil
Ao longo do século 20, a melhor literatura erótica foi escrita por
mulheres -de Anaïs Nin a Régine Deforges e Mara. "Emmanuelle", o elo
fraco do conjunto, foi, de fato, escrito por um homem. A obra-prima da
série é "História de O", de Pauline Réage (eternamente esgotado na
Ediouro).
Juntando "História de O" com, por exemplo, "A Vida Sexual de Catherine M.", de Catherine Millet (Pocket Ouro), seria tentador chegar à conclusão de que as mulheres sejam especialistas em fantasias de submissão.
Esse "achado" seria confirmado pela nova onda de literatura erótica escrita por mulheres, nos EUA.
Já mencionei, nesta coluna, os romances de E. L. James (http://migre.me/aE4KL). E acaba de sair o primeiro da série "Crossfire", de Sylvia Day: "Toda Sua" (Paralela).
A heroína de E. L. James lida com um homem que lhe propõe amarras e chicotes. Eva, a heroína de Sylvia Day, lida com um parceiro mais interessado no controle mental e sexual do que no domínio físico. Mesmo assim, alguns homens correrão para a padaria para anunciar aos amigos, entre piadas e tragos, que as mulheres "gostam de apanhar".
Essa roda de padaria sobre a suposta submissão feminina revela uma dupla fraqueza dos homens.
1) Em qualquer encontro da comunidade sadomasoquista (real ou virtual), constata-se que sempre faltam mestres (dominadores), enquanto sobram submissos e submissas. Uma anedota explica por quê.
Uma mulher, que conheci muito tempo atrás, estava radiante por ter encontrado, enfim, um mestre rigoroso como ela queria. Um dia, o mestre, ao deixar o apartamento da escrava, descobriu que seu carro tinha sido levado pela polícia e só podia ser resgatado pagando multa na hora. O mestre voltou para o apartamento da escrava e pediu um dinheiro emprestado. Foi o fim. A escrava aceitaria e adoraria ser explorada, mas achou intolerável o pedido de um dinheiro "emprestado", porque esse pedido diminuía o mestre.
Conclusão. O que leva alguns homens até a padaria mais próxima para fazer piadas entre amigos sobre as mulheres supostamente submissas? É o medo de sua insuficiência como mestres. Mas é também o medo de suas próprias fantasias de submissão, como explico a seguir.
2) Se faltam mestres e sobram submissos, não é só porque é difícil ser mestre; é também porque a fantasia de submissão é comum a todos -isso, aliás, explica o sucesso da literatura erótica de submissão: todos, homens e mulheres, gozam com fantasias de submissão. Para explicar por que a submissão é uma fantasia básica universal, baste isto: 1) vivemos com a ideia de que o protótipo do prazer é o do bebê pendurado no seio materno, 2) você acha que tem muita diferença entre, sei lá, ser possuído/a de mãos presas, sem poder reagir, e a condição do bebê entregue, indefeso, aos cuidados de quem troca sua fralda?
Em outras palavras, um ideal nostálgico define para nós o prazer ao qual parecemos mais aspirar: é o ideal de estar literalmente nas mãos de outro que nos ama. Quem estranha que a submissão seja uma fantasia fundamental?
Enfim, uma comparação entre a literatura erótica do século 20 e a onda de hoje revela uma diferença significativa.
Na literatura erótica do século 20, cujos melhores exemplos são, em grande parte, franceses, não me lembro que as fantasias de um protagonista ou de um personagem, por mais que fossem bizarras, fossem "justificadas" pelo relato de sua infância difícil.
Ou seja, na literatura erótica (francesa e feminina) do século 20, alguém pode se excitar com fantasias sádicas, masoquistas ou outras e pode praticá-las, simplesmente, porque gosta. Não é necessário que o protagonista ou o personagem tenha sido abusado quando criança.
Na recente literatura erótica feminina do século 21, que, até agora, parece vir sobretudo dos EUA, acontece o contrário. É possível desejar (um pouco ou muito) fora dos trilhos, mas à condição que esse desejo seja apresentado como o destino patológico de quem foi "traumatizado" na infância.
Em outras palavras, podemos admitir que homens e mulheres transem de maneiras aventurosas, mas o bom costume será salvo se eles transam assim porque foram maltratados quando pequenininhos.
É uma diferença cultural entre Europa e EUA, ou seja, é caretice norte-americana? Ou é o sinal de um novo passo na longa luta da cultura ocidental (a nossa) para disciplinar o prazer? Algo assim: se não basta mais ele ser pecaminoso, que seja, ao menos, doentio...
quinta-feira, 6 de setembro de 2012
Internação e força de vontade
De que adianta nos fecharmos num spa se não temos a força de vontade para respeitar um regime?
O CANAL a cabo A&E propõe a série "Intervenção", às 23 h das quartas-feiras (trechos dos primeiros episódios no sitehttp://migre.me/ay14F).
Trata-se de um reality show, produzido no Brasil, no qual cada episódio apresenta um dependente químico (os de crack foram maioria), que é filmado na sua vida cotidiana e familiar, "para um documentário" -isso é o que o dependente acredita. No fim, o indivíduo é convidado a uma reunião-surpresa com as pessoas mais próximas; nessa ocasião, um psiquiatra sugere que o dependente consinta em ser internado para se desintoxicar e se curar.
Até agora, todos aceitaram. Entrevistados na clínica, alguns meses depois da internação, os dependentes estão "limpos" e bem melhor. Mas o que acontecerá depois que eles voltarem para a dita vida ativa? Quando "Intervenção" estreou, a reportagem da Folha registrou as críticas de colegas psiquiatras que trabalham com dependentes (http://migre.me/ay5DI).
Por exemplo, o programa transmite a impressão de que a internação seja a única solução e um tiro certeiro, enquanto, infelizmente, as estatísticas são deprimentes: no caso do crack, em média, cinco anos depois de qualquer tratamento, mais de 80% voltaram a usar a droga. O programa tampouco explica que há internações diferentes e que todas se beneficiam de programas simultâneos de trabalho com a família, de reinserção social etc.
Além disso, não sei qual valor atribuir ao consenso do dependente, que é arrancado, na reunião final, como se fosse a condição indispensável (não só juridicamente) do sucesso de uma internação. É isso mesmo?
Críticas à parte, considero importante que o grande público tenha uma visão (fiel) do que significa ser dependente e familiar de um dependente num contexto de classe média, diferente daquele dos "noias" errantes pelo centro da cidade. No mais, o programa da A&E me levou a pensar sobre internação. Por que seria interessante que os outros nos proibissem alguma coisa da qual queremos, mas não conseguimos nos desfazer?
Por exemplo, de que adianta nos fecharmos num spa onde passaremos fome se não temos a força de vontade para respeitar um regime? Será que uma imposição externa pode nos ajudar a combater um hábito ao qual não sabemos resistir?
Me lembrei de uma experiência de Roy Baumeister, de 1998, sobre o cansaço do autocontrole. Baumeister a reapresenta num livro recente, escrito com J. Tierney, "WillPower" (força de vontade, Penguin). A pesquisa original pode ser pedida em pdf no site http://migre.me/ay6Y4 : Baumeister, Bratlavsky e outros, "Ego Depletion: is the Active Self a Limited Resource?" (sangria do Ego: o self ativo é um recurso limitado?), "Journal of Personality and Social Psychology", 74,1998.
Os pesquisadores arregimentaram três grupos de estudantes famintos; todos tiveram que resolver problemas de geometria que eram insolúveis, embora os estudantes não soubessem. O grupo 1 foi direto para a tarefa. O grupo 2 ficou, primeiro, diante de cookies de chocolate quentinhos, com a autorização de comer livremente. O grupo 3 também foi exposto aos cookies quentes, mas foi autorizado a comer só rabanetes. O grupo 1 se esforçou em média 20 minutos tentando resolver os problemas insolúveis. Mesma coisa para o grupo 2. O grupo 3 (o dos rabanetes) desistiu em oito minutos. Duas interpretações possíveis.
1) Talvez as frustrações não tenham valor educativo: não é proibindo os cookies que criaríamos pessoas capazes de perseverar no esforço. Ao contrário, liberar os cookies seria uma condição para fomentar em todos uma grande força de vontade.
2) Talvez os que tiveram que se controlar para resistir à tentação dos cookies (que estavam na mesa) tenham esgotado sua força de vontade, a ponto que não lhes sobrou força alguma na hora de abordar os problemas de geometria.
Se, em vez de estarem na mesa, os cookies estivessem trancados a sete chaves ou ausentes (como para o grupo 1), os estudantes não precisariam se cansar para se impedir de comê-los. A pesquisa justificaria, por exemplo, a internação: alguém se encarrega de proibir para que eu não tenha que fazer o esforço de me abster -com isso talvez eu possa me dedicar mais eficazmente a outra coisa (meu futuro, o planejamento de minha reinserção).
Então, enigma: a pesquisa de Baumeister justifica o rigor da internação ou a permissividade?
O CANAL a cabo A&E propõe a série "Intervenção", às 23 h das quartas-feiras (trechos dos primeiros episódios no sitehttp://migre.me/ay14F).
Trata-se de um reality show, produzido no Brasil, no qual cada episódio apresenta um dependente químico (os de crack foram maioria), que é filmado na sua vida cotidiana e familiar, "para um documentário" -isso é o que o dependente acredita. No fim, o indivíduo é convidado a uma reunião-surpresa com as pessoas mais próximas; nessa ocasião, um psiquiatra sugere que o dependente consinta em ser internado para se desintoxicar e se curar.
Até agora, todos aceitaram. Entrevistados na clínica, alguns meses depois da internação, os dependentes estão "limpos" e bem melhor. Mas o que acontecerá depois que eles voltarem para a dita vida ativa? Quando "Intervenção" estreou, a reportagem da Folha registrou as críticas de colegas psiquiatras que trabalham com dependentes (http://migre.me/ay5DI).
Por exemplo, o programa transmite a impressão de que a internação seja a única solução e um tiro certeiro, enquanto, infelizmente, as estatísticas são deprimentes: no caso do crack, em média, cinco anos depois de qualquer tratamento, mais de 80% voltaram a usar a droga. O programa tampouco explica que há internações diferentes e que todas se beneficiam de programas simultâneos de trabalho com a família, de reinserção social etc.
Além disso, não sei qual valor atribuir ao consenso do dependente, que é arrancado, na reunião final, como se fosse a condição indispensável (não só juridicamente) do sucesso de uma internação. É isso mesmo?
Críticas à parte, considero importante que o grande público tenha uma visão (fiel) do que significa ser dependente e familiar de um dependente num contexto de classe média, diferente daquele dos "noias" errantes pelo centro da cidade. No mais, o programa da A&E me levou a pensar sobre internação. Por que seria interessante que os outros nos proibissem alguma coisa da qual queremos, mas não conseguimos nos desfazer?
Por exemplo, de que adianta nos fecharmos num spa onde passaremos fome se não temos a força de vontade para respeitar um regime? Será que uma imposição externa pode nos ajudar a combater um hábito ao qual não sabemos resistir?
Me lembrei de uma experiência de Roy Baumeister, de 1998, sobre o cansaço do autocontrole. Baumeister a reapresenta num livro recente, escrito com J. Tierney, "WillPower" (força de vontade, Penguin). A pesquisa original pode ser pedida em pdf no site http://migre.me/ay6Y4 : Baumeister, Bratlavsky e outros, "Ego Depletion: is the Active Self a Limited Resource?" (sangria do Ego: o self ativo é um recurso limitado?), "Journal of Personality and Social Psychology", 74,1998.
Os pesquisadores arregimentaram três grupos de estudantes famintos; todos tiveram que resolver problemas de geometria que eram insolúveis, embora os estudantes não soubessem. O grupo 1 foi direto para a tarefa. O grupo 2 ficou, primeiro, diante de cookies de chocolate quentinhos, com a autorização de comer livremente. O grupo 3 também foi exposto aos cookies quentes, mas foi autorizado a comer só rabanetes. O grupo 1 se esforçou em média 20 minutos tentando resolver os problemas insolúveis. Mesma coisa para o grupo 2. O grupo 3 (o dos rabanetes) desistiu em oito minutos. Duas interpretações possíveis.
1) Talvez as frustrações não tenham valor educativo: não é proibindo os cookies que criaríamos pessoas capazes de perseverar no esforço. Ao contrário, liberar os cookies seria uma condição para fomentar em todos uma grande força de vontade.
2) Talvez os que tiveram que se controlar para resistir à tentação dos cookies (que estavam na mesa) tenham esgotado sua força de vontade, a ponto que não lhes sobrou força alguma na hora de abordar os problemas de geometria.
Se, em vez de estarem na mesa, os cookies estivessem trancados a sete chaves ou ausentes (como para o grupo 1), os estudantes não precisariam se cansar para se impedir de comê-los. A pesquisa justificaria, por exemplo, a internação: alguém se encarrega de proibir para que eu não tenha que fazer o esforço de me abster -com isso talvez eu possa me dedicar mais eficazmente a outra coisa (meu futuro, o planejamento de minha reinserção).
Então, enigma: a pesquisa de Baumeister justifica o rigor da internação ou a permissividade?
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
O menino acorrentado
Os pais podem chegar a acreditar que o fundamento da autoridade seja a força: obedece ou te acorrento
A NOTÍCIA apareceu na internet na quinta passada, dia 23: no Paraná, um menino de nove anos foi encontrado acorrentado, sozinho em casa, sem água e sem comida ao seu alcance. A mãe e o padrasto foram trabalhar e o deixaram assim. Na primeira reportagem, as explicações do comportamento dos pais estavam no condicional: segundo eles, "seria" a primeira vez, e o menino "estaria" envolvido com drogas. Ou seja, opróbrio nos pais cruéis.
Mais tarde, o site da CGN publicou uma entrevista com o padrasto. Pergunta: "Você sabe que agora, por mais que você tenha tido uma boa intenção, vocês vão responder judicialmente pela atitude que vocês tiveram?". O padrasto: "Com certeza. Só que acontece que eu não vou criar um moleque ladrão, maconheiro e bandido dentro da minha casa, para, amanhã ou depois, vocês jogarem na minha cara que eu não fui pai e não pude educar".
Depois de o padrasto expor um rosário de roubos cometidos pela criança, nova pergunta: "Não era o caso de procurarem a Polícia Militar e falarem: 'Está assim! Não estamos conseguindo (...)', em vez de acorrentar essa criança em casa?". E o padrasto: "A minha esposa já ligou (para a PM), acho que umas três ou quatro vezes. Mas ele sai de casa, ele some".
No dia seguinte, a TV Tarobá ouviu a mãe e o menino. Para a mãe, "se tentar segurar (o menino), é pau, pedra, tijolo, faca, o que tiver na frente ele taca. Não tem quem segure". O menino acrescentou detalhes, como a vez em que cortou o braço da irmã com gilete. A mãe: "Às vezes, é melhor acorrentar ali, do que ver mais tarde ele virar um bandido, um ladrão, um drogado. E você olhar na minha cara e falar que eu não criei meu filho, que eu não prestei para ser mãe". Detalhe: fora a corrente no pé, o menino não apresentava nenhum sinal de maus-tratos.
Foi assim que, em um dia, passamos da indignação pela violência dos pais à perplexidade (humilde) diante da tarefa impossível de educar.
Os pais têm razão: se o menino se tornasse ladrão e bandido, há sabichões que os acusariam. Os mesmos sabichões diriam, aliás, que, se os pais tiveram que acorrentar o menino, é porque eles fizeram algo muito errado -algo que comprometeu sua própria autoridade.
Adoraríamos que os sabichões tivessem razão. Saberíamos com certeza que o fracasso da autoridade depende da falta de amor e de cuidados: "Você não cuidou bem de seu filho? Pior para você: ele não te respeitará. Bem feito". Ou, então, o contrário (tanto faz, o que importa é fazer de conta que a gente saiba o que não dá certo): "Você sempre o mimou. Por preguiça ou pela vontade de vê-lo rindo como você nunca riu, você foi permissivo, e por isso ele nunca te respeitará".
Infelizmente, ninguém sabe o que faz que uma educação dê certo. E pais e filhos, perdidos (os primeiros no desespero e os segundos no desafio), acabam acreditando, um dia, como no caso do menino do Paraná, que o fundamento da autoridade e da rebeldia seja a força -eu te acorrento, e você vem com gilete.
Uma pesquisa famosa de Daniel Kahneman, em 2004 (http://migre.me/asSPV, para assinantes), constatou que criar filhos não é uma fonte de bem-estar. No melhor dos casos, criar filhos deixa uma lembrança boa (idealizada), mas é uma experiência dura e, às vezes, ruim. Na mesma linha, para Daniel Gilbert ("O Que nos Faz Felizes", Campus), os filhos e o dinheiro são as coisas das quais pensamos erroneamente que nos fariam felizes.
Uma recente pesquisa feita por M. Myrskylä (http://migre.me/as4jY) foi recebida com alívio porque mostra apenas isto: 1) depois da dureza e das crises dos primeiros meses do filho, os casais não desmoronam definitivamente na infelicidade, mas, aos poucos, eles voltam ao nível de bem-estar de quatro ou cinco anos antes de engravidar; 2) depois dos 40, os casais com filhos adultos estão um pouco melhor do que os que não tiveram filhos.
Seja como for, a criação dos filhos é uma experiência menos satisfatória do que todos queremos acreditar que seja.
O que foi? Será que, de repente, na modernidade, perdemos a mão, e ninguém sabe mais ser pai direito? Por que, na hora de educar, nossos avós pareciam se sair melhor do que a gente -com menos questionamentos e menos dramas?
É uma questão de expectativas: eles não esperavam nem um pouco que criar filhos lhes trouxesse a felicidade. E é uma questão de lugar: para eles, as crianças não eram o centro da vida dos adultos.
A NOTÍCIA apareceu na internet na quinta passada, dia 23: no Paraná, um menino de nove anos foi encontrado acorrentado, sozinho em casa, sem água e sem comida ao seu alcance. A mãe e o padrasto foram trabalhar e o deixaram assim. Na primeira reportagem, as explicações do comportamento dos pais estavam no condicional: segundo eles, "seria" a primeira vez, e o menino "estaria" envolvido com drogas. Ou seja, opróbrio nos pais cruéis.
Mais tarde, o site da CGN publicou uma entrevista com o padrasto. Pergunta: "Você sabe que agora, por mais que você tenha tido uma boa intenção, vocês vão responder judicialmente pela atitude que vocês tiveram?". O padrasto: "Com certeza. Só que acontece que eu não vou criar um moleque ladrão, maconheiro e bandido dentro da minha casa, para, amanhã ou depois, vocês jogarem na minha cara que eu não fui pai e não pude educar".
Depois de o padrasto expor um rosário de roubos cometidos pela criança, nova pergunta: "Não era o caso de procurarem a Polícia Militar e falarem: 'Está assim! Não estamos conseguindo (...)', em vez de acorrentar essa criança em casa?". E o padrasto: "A minha esposa já ligou (para a PM), acho que umas três ou quatro vezes. Mas ele sai de casa, ele some".
No dia seguinte, a TV Tarobá ouviu a mãe e o menino. Para a mãe, "se tentar segurar (o menino), é pau, pedra, tijolo, faca, o que tiver na frente ele taca. Não tem quem segure". O menino acrescentou detalhes, como a vez em que cortou o braço da irmã com gilete. A mãe: "Às vezes, é melhor acorrentar ali, do que ver mais tarde ele virar um bandido, um ladrão, um drogado. E você olhar na minha cara e falar que eu não criei meu filho, que eu não prestei para ser mãe". Detalhe: fora a corrente no pé, o menino não apresentava nenhum sinal de maus-tratos.
Foi assim que, em um dia, passamos da indignação pela violência dos pais à perplexidade (humilde) diante da tarefa impossível de educar.
Os pais têm razão: se o menino se tornasse ladrão e bandido, há sabichões que os acusariam. Os mesmos sabichões diriam, aliás, que, se os pais tiveram que acorrentar o menino, é porque eles fizeram algo muito errado -algo que comprometeu sua própria autoridade.
Adoraríamos que os sabichões tivessem razão. Saberíamos com certeza que o fracasso da autoridade depende da falta de amor e de cuidados: "Você não cuidou bem de seu filho? Pior para você: ele não te respeitará. Bem feito". Ou, então, o contrário (tanto faz, o que importa é fazer de conta que a gente saiba o que não dá certo): "Você sempre o mimou. Por preguiça ou pela vontade de vê-lo rindo como você nunca riu, você foi permissivo, e por isso ele nunca te respeitará".
Infelizmente, ninguém sabe o que faz que uma educação dê certo. E pais e filhos, perdidos (os primeiros no desespero e os segundos no desafio), acabam acreditando, um dia, como no caso do menino do Paraná, que o fundamento da autoridade e da rebeldia seja a força -eu te acorrento, e você vem com gilete.
Uma pesquisa famosa de Daniel Kahneman, em 2004 (http://migre.me/asSPV, para assinantes), constatou que criar filhos não é uma fonte de bem-estar. No melhor dos casos, criar filhos deixa uma lembrança boa (idealizada), mas é uma experiência dura e, às vezes, ruim. Na mesma linha, para Daniel Gilbert ("O Que nos Faz Felizes", Campus), os filhos e o dinheiro são as coisas das quais pensamos erroneamente que nos fariam felizes.
Uma recente pesquisa feita por M. Myrskylä (http://migre.me/as4jY) foi recebida com alívio porque mostra apenas isto: 1) depois da dureza e das crises dos primeiros meses do filho, os casais não desmoronam definitivamente na infelicidade, mas, aos poucos, eles voltam ao nível de bem-estar de quatro ou cinco anos antes de engravidar; 2) depois dos 40, os casais com filhos adultos estão um pouco melhor do que os que não tiveram filhos.
Seja como for, a criação dos filhos é uma experiência menos satisfatória do que todos queremos acreditar que seja.
O que foi? Será que, de repente, na modernidade, perdemos a mão, e ninguém sabe mais ser pai direito? Por que, na hora de educar, nossos avós pareciam se sair melhor do que a gente -com menos questionamentos e menos dramas?
É uma questão de expectativas: eles não esperavam nem um pouco que criar filhos lhes trouxesse a felicidade. E é uma questão de lugar: para eles, as crianças não eram o centro da vida dos adultos.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
Procuras de desejos perdidos
Casei, nada depende mais de mim; agora, ele (ou ela) me impede de me tornar o que eu tanto queria ser
No fim de semana, assisti a dois filmes que dialogam na minha cabeça.
Primeiro, vi "Um Divã para Dois", de David Frankel. Após 30 anos de casamento, Kay e Arnold, sexagenários, vivem uma rotina miserável. Faz quatro anos que eles não têm relações sexuais, mal se falam e mal se tocam. Talvez eles tenham se amado no passado, mas pouco ou nada disso aparece. Um dia, Kay não aguenta mais e decide recorrer a um terapeuta de casal que propõe terapias intensivas de uma semana no Maine, longe do Nebraska onde eles moram. Arnold acha bobagem e dinheiro posto fora, mas acaba seguindo a mulher até lá.
Quis ver o filme porque a história do casamento de Kay e Arnold é, ao mesmo tempo, trivial e raramente contada. Também me interessava o terapeuta, que, segundo alguns críticos, era um extravagante.
Bom, o terapeuta do filme não é extravagante. Alguns dos exercícios que ele sugere ao casal são extremos (e cômicos, como sexo oral num cinema), mas, no conjunto, não há nada de heterodoxo em pedir que os cônjuges se esforcem para voltar a se abraçar e tocar ou que revelem suas fantasias sexuais ao outro.
Uma vez instalada a distância na vida de um casal, "discutir a relação" não é suficiente (quando não piora o caso): é preciso romper, de entrada, diretamente, os hábitos constituídos do isolamento.
Em geral, nos dois membros de um casal que não se fala e não se toca, mas se obstina a conviver, há uma tremenda vergonha de estar traindo um grande desejo de parar com a palhaçada do afastamento e reencontrar o parceiro.
Mas trair o próprio desejo da gente é confortável. E, para muitos, o casamento serve para isso: é um pretexto para descansar da tarefa de desejar e de inventar a vida. Assim: casei, nada depende mais de mim, ele (ou ela) me prende nesta rotina e me impede de me tornar o que eu tanto queria ser -boa desculpa, hein?
O segundo filme, "A Vida de Outra Mulher", de Sylvie Testud, conta a história de Marie, que, num dia de 2011, aos 41, acorda para descobrir que ela esqueceu tudo o que aconteceu nos últimos 15 anos de sua vida. Ela tem um filho, que ela "nunca" conheceu, e está se divorciando do homem por quem, pelo que ela se lembra, ela acaba de se apaixonar (só que isso foi 15 anos antes). Marie tentará reconquistar o marido que ela ama como o amava na época em que se apaixonou por ele.
A amnésia repentina de Marie (pouco provável clinicamente) é uma ótima parábola. Por que pessoas que se lançam na vida com paixão um pelo outro, com planos e apostas comuns, podem acordar um dia no rancor de uma separação?
Kay e Arnold, na hora de tentar entender o que foi que os afastou, estão tão perdidos quanto Marie. Mas Marie tem sorte: ela não pode transformar o que aconteceu nos últimos anos em tema de debate (Quem está com razão? Quem deixou de amar? Quem não soube cuidar? Quem traiu quem?). Ela não se lembra de nada e só pode voltar para sua última lembrança: o momento mágico do encontro e da primeira noite.
Para os mortais comuns, como Kay e Arnold, que podem até se calar, mas se lembram de tudo o que deu errado, o caminho é mais complicado.
Alguém dirá que, se Marie retomar seu casamento sem poder sequer refletir sobre os caminhos pelos quais ele se degradou (ela só pode supor, imaginar), então, inelutavelmente, nada mudará, e, alguns anos depois, Marie e o marido acabarão se separando numa repetição do mesmo divórcio.
Não sei se isso é verdade. A degradação de um casal é feita de um acúmulo de pequenas palavras e condutas, que parecem insignificantes na hora e mesmo depois, na memória: não liguei naquele dia, cheguei atrasado no outro, preferi dormir quando você queria outra coisa, não disse o que eu queria porque tanto faz... Nada precisa ser drástico e, no fundo, tudo é contingente: se eu estivesse apenas menos cansado, naquela noite, não teria dormido enquanto você falava... Conclusão: mesmo recomeçando sem poder recorrer às ditas "lições" do passado, talvez o desfecho não seja necessariamente o mesmo.
Além disso, mesmo se Marie retomar seu casamento (que, para ela, mal começou) na ignorância do que deu errado na primeira vez e se por isso, anos depois, ela divorciar novamente, qual é o problema? Aos poucos, eles cometerão os mesmos erros que cometeram no passado, e o casal não será para sempre? E daí, quem disse que só vale a pena o que for para sempre?
quinta-feira, 16 de agosto de 2012
"Paidrastos" (e "mãedrastas")
Mesmo um padrasto atencioso se esquece de seus enteados assim que ele se separa da mãe deles
Domingo passado foi Dia dos Pais -como disse R., 9 anos, é o dia em que o pai dá um dinheiro para que a mãe compre um presente para ele, o qual será entregue pelas crianças.
Esta coluna chega com um pouco de atraso; por isso, é sobre os pais do segundo turno: os padrastos.
Não encontrei uma estatística que me dissesse quantas famílias, no Brasil, vivem com filhos de casamentos anteriores de um dos pais ou de ambos (talvez um leitor sociólogo possa me ajudar).
Mas é fácil constatar que muitas famílias são hoje compostas de pais, filhos e, como se expressou uma vez um de meus enteados, de "paidrastos" e "mãedrastas". O tema, claro, mereceria mais do que estas pequenas notas.
Sobre as madrastas, só o essencial: o homem que tem filhos de um casamento anterior acredita cegamente que sua nova mulher os amará como se fossem filhos dela (ser mãe, para uma mulher, seria um instinto irresistível). O pai de Cinderela, mesmo vivo, não se daria conta de que sua filha era a rival detestada e perseguida pela sua nova mulher e pelas suas enteadas.
Ora, com várias exceções (claro), para a nova mulher, os filhos do casamento anterior do marido são rivais, irmãozinhos metidos que disputam com ela o amor do "pai" comum -isso vale especialmente quando ela tem filhos de um casamento anterior ou planeja ter mais filhos no novo casamento.
Mas vamos aos padrastos, que são o nosso tema do dia.
1) Apesar dos testes de DNA, ser pai continua sendo uma questão mais simbólica que real, ou seja, o pai ainda é aquele que a mãe indica como pai. Uma consequência disso é que os homens são perfeitamente capazes de se esquecer de seus filhos depois de uma separação (a não ser que a mulher continue lhes repetindo, noite e dia, que eles são os pais das ditas crianças).
Por essa mesma razão, os homens são facilmente padrastos atenciosos -basta que a nova mulher lhes atribua essa função. Agora, por serem "atenciosos", eles não são menos precários: como acontece no caso dos próprios filhos, o laço do homem com seus enteados é subordinado ao laço com a mulher que é mãe deles. Em outras palavras, se o padrasto se separar da nova mulher, dificilmente ele manterá uma relação com os enteados, mesmo que eles tenham se criado com ele durante anos.
Triste? Talvez. Mas já imaginou a complicação no caso de vários casamentos sucessivos? Que tal um almoço de Dia dos Pais com pai, padrasto 1, padrasto 2 e padrasto 3?
2) Disse que os homens são facilmente padrastos atenciosos. Justamente, aqui surge um problema: ao redor da educação dos enteados, o padrasto quase sempre descobre que há, entre ele e sua nova mulher, diferenças de valores -que só aparecem na hora de cada um mostrar seus dotes pedagógicos. No eventual conflito, o padrasto está, de fato, quase impotente.
Primeiro, se ele quiser impor regras, a nova mulher entenderá isso como análogo ao que ela mesma gostaria de fazer com os filhos do casamento anterior do marido -ou seja, ela achará que o marido usa uma severidade seletiva, que ele nunca aplicaria aos seus próprios filhos.
Segundo, educar implica correr o risco de ser detestado -risco que um pai deve correr sem hesitação; mas o padrasto precisa e quer conquistar a simpatia dos enteados, sob pena de ouvir o fatídico: "Você não é meu pai!".
3) Os enteados não são anjos. Num primeiro momento, todos eles podem festejar a recomposição de um quadro familiar, seja ele qual for. Logo, os meninos tendem a se tornar paladinos da honra materna e paterna (como é que a mãe se interessa por outro homem que não seja eu? Quem é este cara que quer ocupar o lugar do meu pai?).
Quanto às meninas, elas oscilam entre três caminhos: lamentam que a mãe, e não elas, conquiste todos esses homens; receiam que, aceitando o padrasto, elas trairiam o pai e seriam desamadas por ele; enfim, bem mais do que os meninos, elas não querem compartilhar a mãe com ninguém.
A experiência do divórcio dos pais criou jovens interessantes. A sensação de que eles não foram uma razão suficiente para que os pais ficassem juntos produziu, em alguns, uma insegurança doentia para a vida toda, mas, em outros, deixou um fundo de sabedoria melancólica que resiste bravamente às ideias narcisistas mais estupidamente grandiosas.
Quanto às complexidades da vida numa segunda ou terceira família, está na hora de considerar suas consequências para as crianças e os adultos que delas virão. Voltarei ao tema.
quinta-feira, 9 de agosto de 2012
Epidemia de amor pelas crianças
Os elogios incondicionais dos adultos aos filhos não produzem "autoconfiança", mas uma dependência
1) É habitual que, na infância e na adolescência, um jovem sonhe com vitórias e aplausos, sem pensar nos esforços necessários para merecê-los.
Nestes dias, deparo-me com crianças ninadas por devaneios de glória olímpica. Sem querer, corto seu barato, explicando o que é indispensável fazer para que esses sonhos se transformem numa chance real de chegar lá.
As crianças respondem que elas não têm a intenção de realizar o tal sonho: apenas querem o prazer de devanear em paz. Até aqui, tudo bem, mas os pais me acusam de estragar, além dos sonhos, o futuro dos filhos, os quais, segundo eles, para triunfar na vida, precisariam confiar cegamente em seus dotes.
O problema é que os elogios incondicionais dos pais e dos adultos não produzem "autoconfiança", mas dependência: os filhos se tornam cronicamente dependentes da aprovação dos pais e, mais tarde, dos outros. "Treinados" dessa forma, eles passam a vida se esforçando, não para alcançar o que desejam, mas para ganhar um aplauso.
Claro, muitos pais gostam que assim seja, pois adoram se sentir indispensáveis (no cinema, uma mãe enfia a cara embaixo de seu próprio assento para atender o telefone que vibrou no meio do filme e sussurrar um importantíssimo: sim, pode tomar refrigerante).
2) Meu irmão, aos dez anos, quis que todos escutássemos uma música que ele acabava de "compor". Movimentando ao acaso os dedos sobre o teclado (não tínhamos a menor educação musical), ele cantou uma letra que começava assim: sou bonito e eu o sei. Minha mãe escutou, constrangida, e, no fim, declarou que a letra era uma besteira, e a música, inexistente. Mas, se meu irmão quisesse, ele poderia estudar piano -à condição que se engajasse a se exercitar uma hora por dia. Meu irmão (desafinado como eu) desistiu disso e se tornou um médico excelente.
3) Os pais dos meus pais davam, no máximo, um beijo na testa de seus filhos. Já meus pais nos beijavam e abraçavam. Mesmo assim, não éramos o centro da vida deles, enquanto nossos filhos são facilmente o centro da nossa.
Para a geração de meus avós e de meus pais, a vida dos adultos não devia ser decidida em função do interesse das crianças, até porque o principal interesse das crianças era sua transformação em adulto (criança tem um defeito, foi-me dito uma vez por um tio: o de ser ainda só uma criança).
Lá pelos meus oito anos, eu tinha passado o domingo com meus pais, visitando parentes. A noite chegou, e eu não tinha nem começado meu dever de casa. Pedi uma nota assinada que me desculpasse. Meu pai disse: esta criança está com sono e deve trabalhar, façam um café para ele. Detestei, mas também gostei de aprender que, mesmo na infância, há coisas mais importantes do que sono e bem-estar.
4) Na pré-estreia do último "Batman", em Aurora, Colorado, um atirador feriu 58 pessoas e matou 12. Um comentador da TV norte-americana (não sei mais qual canal) disse, de uma menina assassinada, que ela era "uma vítima inocente".
Se só a menina era inocente, quer dizer que os outros 11, por serem adultos, eram culpados e mereciam os tiros?
Tudo bem, estou sendo de má-fé: o comentador queria nos enternecer e supunha, com razão, que, para a gente, perder um adulto fosse menos grave do que perder uma criança, que tem sua vida pela frente e, como se diz, ainda é "um anjo". No entanto, eu não acredito em anjos e ainda menos acredito que crianças sejam anjos. Também não sei o que é mais grave perder: a esperança de um futuro ou o patrimônio das experiências acumuladas de uma vida? Você trocaria seus bens atuais por um bilhete da Mega-Sena de sábado que vem?
5) Cuidado, não sonho com uma impossível volta ao passado. Essas notas servem para propor uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos. Explico.
A partir do fim do século 18, no Ocidente, as crianças adquiriram um valor novo e especial. Únicas continuadoras de nossas vidas, elas foram encarregadas de compensar nossos fracassos por seu sucesso e sua felicidade.
Desde essa época, em que as crianças começaram a ser amadas e cuidadas extraordinariamente, nós nos preocupamos com os efeitos nelas de uma eventual falta de amor. Agora, começo a pensar que nossa preocupação com os estragos produzidos pela falta de amor sirva, sobretudo, para evitar de encarar os estragos produzidos pelos excessos de nosso amor pelas crianças.
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
Pornografia possível
A fantasia sexual é objeto de negociação entre o que cada um imagina e o que ele, de fato, aguenta
"Cinquenta Tons de Cinza", o primeiro volume da trilogia de E. L. James, acaba de sair em português pela Intrínseca. Espero que os volumes restantes cheguem logo (é bom ler os três sem interrupção).
James escrevia ficções derivadas de "Crepúsculo", de Stephenie Meyer. Esse tipo de produção se tornou popular, pois muitos leitores se frustram com o fim de sua saga preferida. Eles querem viver mais um pouco no mundo para o qual a leitura os levou. No caso de "Crepúsculo", depois de reler a trilogia e rever os filmes da adaptação pela décima vez (vi isso acontecer), eles podem procurar sites nos quais os próprios fãs escrevem continuações, versões alternativas, histórias de personagens menores etc.
O que James escrevia nesses sites se tornou autônomo e erótico demais, e, em 2011, James soltou sua própria trilogia, que não deve quase nada à obra de Meyer e na qual não se trata de vampiros e lobisomens, mas de gente.
A editora foi um "print-on-demand": você encomenda um livro, eles imprimem um exemplar e mandam. Não sei se James não conseguiu encontrar uma editora disposta a distribuir sua obra normalmente, ou se ela pensou que sua prosa erótica nunca encontraria as graças de uma casa tradicional. Mas o fato é que, muito rapidamente, a obra de James se tornou um sucesso de boca a boca entre internautas. Conclusão: em abril de 2012, a Vintage Books imprimiu a série, que, em poucos meses, vendeu milhões de exemplares mundo afora.
Agradeço a E.L. James porque, ao longo de 1.500 páginas, lidas em dez dias, não perdi o prazer da leitura. Além disso, apreciar um best-seller me alegra, porque confirma que consigo gostar de coisas das quais uma boa parte de meus contemporâneos também gosta.
Não foi sempre assim. Houve uma época da minha vida em que eu desdenhava uma obra só por causa do seu sucesso e tentava nunca concordar com a massa, provavelmente para evitar a triste constatação de que eu não era muito diferente dos outros.
Claro, não quero compartilhar, a cada vez, o gosto da maioria; basta-me ser capaz de empatia, ou seja, de sentir e apreciar o que a maioria pode achar numa obra, mesmo que ela não coincida com meu ideal estético. Enfim, o que me pegou (e pegou milhões de leitores), no caso da trilogia de James?
Alguns atribuíram o sucesso de James ao seu "soft porn", ou seja, a seu erotismo explícito, mas "aceitável": James escreveria pornografia domesticada, para mães de família. Pode ser, mas é porque James (coisa rara) escreve, digamos assim, sobre a pornografia possível. Explico.
Para Christian (o protagonista de James), o sexo coincide com a prática de fantasias sadomasoquistas. Anastasia, seu par, é inexperiente e descobre sexo e fantasias com Christian. Essa desproporção e a iniciação de Anastasia, aliás, são uma fantasia em si (para ambos).
A fantasia sadomasoquista chega facilmente a paroxismos que, se fossem realizados, seriam intoleráveis. O pensamento de ser açoitado pode ser excitante para muitos, mas, na realidade, a dor só é excitante para pouquíssimas pessoas. Para Christian e Anastasia, como para a grande maioria dos casais reais, a fantasia é um objeto de negociação, não só dentro do casal (entre o que você gosta e o que eu aceito -e vice-versa), mas sobretudo no âmago do indivíduo, entre o que a fantasia de cada um imagina e o que cada um, de fato, aguenta.
Alguns acharam que a dominação sexual faria de Anastasia uma escrava. Mas, para James (e concordo com ela), a dominação no sexo é justamente o que permite que, fora do sexo, Christian e Anastasia sejam um casal de iguais, cada um cioso de sua liberdade.
Em geral, as histórias de amor seguem o modelo do conto de fadas, ou seja, narram o apaixonamento -a convivência depois disso, se fosse narrada, seria terreno para a comédia. A trilogia de James, ao contrário, é uma longa história sobre como fazer um casal funcionar, de briga em briga, de quase ruptura em quase ruptura: quanto cada um pode e deve mudar para o outro, e quanto pode e deve esperar e pedir que o outro mude?
É graças a esse longo esforço (e não por um passe de mágica) que Christian e Anastasia realizam nossa suprema fantasia cultural: a da coexistência, num casal, do amor com um jogo sexual que satisfaz uma fantasia comum.
Bom, leitores e leitoras só podiam estar a fim de aprender como isso é possível.
quinta-feira, 26 de julho de 2012
Onde está Batman?
Dizem que Batman fez falta em Aurora, Colorado; ms talvez ele estivesse lá, disfaraçado de espectador
O filme "O Cavaleiro das Trevas" estreia amanhã. Pelo trailer, entendi que Batman reaparece em Gotham City, que precisa dele, desesperadamente. O novo vilão que assola a cidade é Bane, vestido de colete à prova de balas e máscara antigás.
O filme "O Cavaleiro das Trevas" estreia amanhã. Pelo trailer, entendi que Batman reaparece em Gotham City, que precisa dele, desesperadamente. O novo vilão que assola a cidade é Bane, vestido de colete à prova de balas e máscara antigás.
Na madrugada do dia 20, em Aurora, Colorado, um tal James Holmes, 24, vestido à la Bane e armado de rifle, espingarda e duas pistolas, atirou na plateia que assistia à pré-estreia do filme. Ele matou 12 pessoas e feriu dezenas. Por sorte, a arma mais letal, o rifle, travou no meio da matança.
Na noite do massacre, a frase que pipocava na tela era: "Where is Batman when we need him?", onde está Batman quando precisamos dele?
Entre os espectadores sobreviventes, vários vestiam a camiseta com o logo do morcego. Alguns talvez estivessem completamente a caráter, pois existe, nos EUA, o hábito de comparecer a uma estreia vestindo o figurino de um personagem do filme. Ora, os espectadores disfarçados de Batman não supririam a falta de Batman. Em compensação, é possível que tenha acontecido o inverso: talvez Batman tenha comparecido lá, em Aurora, disfarçado de espectador.
Jon Blunk, Matt McQuinn e Alex Teves jogaram suas namoradas no chão e as protegeram dos tiros com seu corpo: eles se sacrificaram, e elas se salvaram. E Jarell Brooks, 19 anos, no meio daquele inferno, empurrou na sua frente e levou até à saída Patricia Legarreta com suas duas filhas pequenas, que ele encontrou perdidas no escuro e nos disparos. Patricia e as meninas se salvaram. Jarell não morreu, mas, ao amparar as três como um escudo, foi baleado nas costas.
Fazer a coisa certa não é um automatismo: o marido de Patricia e pai das meninas, por exemplo, desorientado no meio do massacre, encontrara só a saída, não a mulher e as filhas, que ficaram por conta.
Em suma, talvez Batman estivesse naquele cinema de Aurora, disfarçado de Jarell Brooks, Jon Blunk, Matt McQuinn e Alex Teves.
Infelizmente, além de Batman em vários disfarces, no cinema de Aurora, havia também seus (e nossos) inimigos -James Holmes estava disfarçado de Bane e com os cabelos do Curinga.
A moral dessa história é que os "ruins" se vestem de Bane ou de Curinga: eles querem se destacar, mostrar ao mundo que eles são únicos e confirmar seu "glamour" graças ao nosso olhar -admirativo ou apavorado, pouco importa, contanto que fiquemos vidrados neles.
Em tese, a mesma coisa poderia ser dita de Batman, que, apesar de não revelar sua identidade, é tão espalhafatoso quanto qualquer Curinga. Só que Batman não esteve em Aurora. Em Aurora, nossos heróis, os "bons", ao contrário do assassino, foram quase invisíveis.
Como explicar o que aconteceu aos nossos filhos? Acharia bom lhes dizer que o que aconteceu (ou algo parecido) vai acontecer sempre; e, quando acontecer, não poderão contar com a chegada de Batman, mas poderão, isso sim, descobrir se há um Batman neles, ou não.
Nota. Barbara Gancia continua discutindo com uma coluna misteriosa, que eu nunca escrevi. Cito Marcius Lepick, um dos leitores que me comunicaram seu e-mail para Barbara: "Oi Barbara, li seu artigo em que critica o texto do Contardo Calligaris (...), acho que você teve dificuldades em compreendê-lo, (...) lendo seu artigo parece que o colunista desmerece o AA, na verdade ele diz exatamente o oposto: 'Se você precisar se desfazer de um desses hábitos, procure encorajamento em qualquer programa que o leve a encontrar outros que vivem o mesmo drama e querem os mesmos resultados que você'. (...) Quando ele diz que 'Deu certo, mas, depois de um tempo, houve uma recaída brutal', foi você quem tomou a expressão 'Dar certo' como significar uma cura permanente, (...) está claro no texto do Contardo que ele respalda sua tese, e do AA, de que não há cura definitiva para esses casos, e sim uma luta diária. (...)
Quanto à internação, em nenhum momento Calligaris a defendeu, apenas disse que o grupo respaldou a ideia, Calligaris não fez nenhum juízo de valores sobre o fato, se a internação vai contra a filosofia do AA, talvez valha a ti tentar descobrir qual grupo, e em que circunstâncias isso ocorreu, agora o que não procede é criticar o colunista, pois ele nem remotamente defendeu a ideia, apenas relatou um fato, sua intenção era apenas apresentar um caso que ensejasse a discussão que lhe interessava, cuja conclusão coincide completamente com o seu ponto de vista e do AA.
Bom recomendo uma nova leitura do texto do Calligaris, e boa sorte na sua luta dentro do AA".
quinta-feira, 19 de julho de 2012
"Na Estrada"
Preferimos segurança ou aventura? Quanta aventura sacrificamos à nossa segurança?
Assisti a "Na Estrada", de Walter Salles, na sexta passada, no Rio. E passei o fim de semana pensando na minha vida.
Li "Na Estrada", de Jack Kerouac, no fim dos anos 1960, provavelmente em Nova York -mas talvez em Houston. O texto que eu li era uma versão expurgada; isso, na época, eu não sabia. Não voltei ao texto em 2007, quando a Viking publicou o manuscrito original (em português pela L&PM). Mas o texto voltou em mim com força, na sexta-feira, quando assisti ao filme.
Nos anos 1960, eu era um hippie lendo um "beat". Na mesma época, "Almoço Nu", de William Burroughs, me seduzia, mas me assustava -longe demais de minha experiência (das drogas, do sexo e da vida). Também lia Allen Ginsberg e Gregory Corso, mas, aos dois, preferia Lawrence Ferlinghetti -outra escolha "bem comportada", dirá alguém.
O fato é que "Na Estrada" foi a parte da herança "beat" da qual eu me apropriei imediatamente. Por quê? As drogas, o álcool ou o sexo "livre" me pareciam secundários -apenas um jeito de dizer: "Não esperem que a gente viva como manda o figurino".
O essencial, para mim, era a junção da fome de aventura com uma raivosa vontade de escrever. A vida se confundia com um projeto literário que exigia os excessos: era preciso viver intensa e loucamente, de peito aberto, para que valesse a pena contar a história. Por isso, eu e outros podíamos, ao mesmo tempo, venerar Kerouac e Hemingway -os quais, álcool à parte, provavelmente, não se dariam.
Pensando bem, eu fui mais um "beat" atrasado do que um hippie. A procura por iluminações interiores e comunhões cósmicas da idade de Aquário, tudo isso me parecia pacotilha para "Hair", coisa da Broadway. Fiz minha peregrinação à Índia e ao Nepal, mas considerava com desconfiança o orientalismo que estava na moda: o budismo dos anos finais de Kerouac e Ginsberg não me parecia mais sério do que o hinduísmo dos Beatles.
O problema é que eu era um espécimen bastardo: "mezzo" hippie e "mezzo" maio-68 francês, "mezzo" descendente dos "beats" e "mezzo" filho marxista do pós-guerra europeu.
Kerouac não tinha simpatia pelo marxismo. Ele preferia o individualismo dos que procuram uma fronteira para desbravar -pouco a ver com um projeto de reforma social ou de revolução. Para os "beats", aliás, transformar a sociedade seria um problema. Certo, Neal Cassady e Gregory Corso passaram tempo na cadeia; e Burroughs, Kerouac e Ginsberg foram censurados. Mas, justamente, num mundo que não lhes resistisse, a vida dos "beats" perderia sua dimensão épica.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, fazendo um balanço, eu teria dito que, em mim, a herança marxista europeia prevalecera sobre a herança "beat". Hoje, penso o contrário -não sei se por decepção política ou por maturidade. Mas não tenho muitas certezas: por exemplo, minha errância pelo mundo foi uma experiência da estrada ou uma versão "chique" do cosmopolitismo forçado dos trabalhadores modernos?
E será que vivi como um fogo de artifício? Ou então durar e continuar vivo se tornou, para mim, mais importante do que me arriscar na intensidade das experiências?
O filme de Salles está sendo a ocasião imperdível de um balanço -ainda não decidi se festivo ou melancólico. Cuidado, o balanço não interessa só minha geração. Cada um de nós pode se perguntar, um dia, como resolveu a eterna e impossível contradição entre segurança e aventura: quanta aventura ele sacrificou à sua segurança?
Essa conta deveria ser feita sem esquecer que 1) a segurança é sempre ilusória (todos acabamos morrendo) e 2) qualquer aventura não passa de uma ficção, um sonho suspenso entre a expectativa e a lembrança.
Que você tenha lido ou não o livro de Kerouac, e seja qual for sua geração, assista ao filme e se interrogue: se uma noite, inesperadamente, Neal Cassady tocar a campainha de sua casa, louco de aventuras para serem vividas e com o olhar fundo de quem dirige há horas e ainda quer se jogar na estrada, você saberia e poderia, sem fazer mala alguma, simplesmente ir embora com ele?
Nota. Na semana passada, neste espaço, escrevi, como sempre, uma coluna (www.migre.me/9Ttsq). Aparentemente, Barbara Gancia leu outra. A essa outra coluna, que eu não escrevi, ela respondeu na sexta (www.migre.me/9TtFI). Não sei se um mal-entendido tamanho tem conserto ou interesse. Seja como for, hoje, comentar "Na Estrada" era decididamente mais importante, para mim.
quinta-feira, 12 de julho de 2012
Os outros que ajudam (ou não)
Amigos e próximos, em vez de nos ajudar com reforços positivos, torcem contra nossos esforços para mudar
Muitos anos atrás, conheci um alcoólatra, que, aos 40 anos, quis parar de beber. O que o levou a decidir foi um acidente no qual ele, bêbado, quase provocara a morte da companheira que ele amava, por quem se sentia amado e que esperava um filho dele.
O homem frequentou os Alcoólatras Anônimos. Deu certo, mas, depois de um tempo, houve uma recaída brutal. Desanimado, mas não menos decidido, com o consenso de seu grupo dos AA, o homem se internou numa clínica especializada, onde ficou quase um ano -renunciando a conviver com o filho bebê.
Ele voltou para casa (e para as reuniões dos AA), convencido de que nunca deixaria de ser um alcoólatra -apenas poderia se tornar, um dia, um "alcoólatra abstêmio".
Mesmo assim, um dia, depois de dois anos, ele se declarou relativamente fora de perigo. Naquele dia, o homem colocou o filhinho na cama e, enfim, sentou-se na mesa para festejar e jantar.
E eis que a mulher dele chegou da cozinha erguendo, triunfalmente, uma garrafa de "premier cru" de Château Lafite: agora que ele estava bem, certamente ele poderia apreciar um grande vinho, para brindar, não é?
O homem saiu na noite batendo a porta. A mulher que ele amava era uma idiota? Ou ela era (e sempre tinha sido) companheira, não da vida do marido, mas de sua autodestruição? Seja como for, a mulher dessa história não é um caso isolado.
Quem foi fumante e conseguiu parar, quase certamente encontrou um dia um amigo que lhe propôs um cigarro "sem drama": agora que você parou, vai poder fumar de vez em quando -só um não pode fazer mal.
Também há parentes e próximos que patrocinam qualquer exceção ao regime que você tenta manter estoicamente: se for só hoje, uma massa não vai fazer diferença, nem uma carne vermelha. Seja qual for a razão de seu regime e a autoridade de quem o prescreveu, para parentes e próximos, parece que há um prazer em você transgredir.
Em suma, há hábitos que encurtam a vida, comprometem as chances de se relacionar amorosa e sexualmente e, mais geralmente, levam o indivíduo a lidar com um desprezo do qual ele não sabe mais se vem dos outros ou dele mesmo.
Se você precisar se desfazer de um desses hábitos, procure encorajamento em qualquer programa que o leve a encontrar outros que vivem o mesmo drama e querem os mesmos resultados que você. É desses outros que você pode esperar respeito pelo seu esforço -e até elogio (quando merecido).
Hoje, encontrar esses outros é fácil. Há comunidades on-line de pessoas que querem se livrar de seu sedentarismo, de sua obesidade, do fumo, do alcoolismo, da toxicomania etc. Os membros de uma comunidade registram e transmitem, todos os dias, seus fracassos e seus sucessos. No caso do peso, por exemplo, há uma comunidade cujos membros instalam em casa uma balança conectada à internet: o indivíduo se pesa, e a comunidade sabe imediatamente se ele progrediu ou não.
Parêntese. A balança on-line não funciona pela vergonha que provoca em quem engorda, mas pelos elogios conquistados por quem emagrece. Podemos modificar nossos hábitos por sentirmos que nossos esforços estão sendo reconhecidos e encorajados, mas as punições não têm a mesma eficácia. Ou seja, Skinner e o comportamentalismo têm razão: uma chave da mudança de comportamento, quando ela se revela possível, está no reforço que vem dos outros ("Valeu! Força!").
Já as ideias de Pavlov são menos úteis: os reflexos condicionados existem, mas, em geral, se você estapeia alguém a cada vez que ele come, fuma ou bebe demais, ele não parará de comer, fumar ou beber -apenas passará a comer, fumar e beber com medo.
Volto ao que me importa: por que, na hora de tentar mudar um hábito, é aconselhável procurar um grupo de companheiros de infortúnio desconhecidos? Por que os próximos da gente, na hora em que um reforço positivo seria bem-vindo, preferem nos encorajar a trair nossas próprias intenções?
Há duas hipóteses. Uma é que eles tenham (ou tenham tido) propósitos parecidos com os nossos, mas fracassados; produzindo nosso malogro, eles encontrariam uma reconfortante explicação pelo seu.
Outra, aparentemente mais nobre, diz que é porque eles nos amam e, portanto, querem ser nossa exceção, ou seja, querem ser aqueles que nós amamos mais do que nossa própria decisão de mudar. Como disse Voltaire, "Que Deus me proteja dos meus amigos. Dos inimigos, cuido eu".
quinta-feira, 5 de julho de 2012
A cura gay
Mesmo se quisessem, psicólogos e psiquiatras não saberiam modificar a orientação sexual de alguém
Em 1980, a homossexualidade sumiu do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais". Em 1990, ela foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde.
Médicos, psiquiatras e psicólogos não podem oferecer uma cura para uma condição que, em suas disciplinas, não é uma doença, nem um distúrbio, nem um transtorno. Isso foi lembrado por Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia, numa entrevista à Folha de 29 de junho.
No entanto, o deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, pede que, por decreto legislativo, os psicólogos sejam autorizados a "curar" os homossexuais que desejem se livrar de sua homossexualidade.
Um pressuposto desse pedido é a ideia de que os psicólogos saberiam como mudar a orientação sexual de alguém (transformá-lo de hétero em homossexual e vice-versa), mas seriam impedidos de exercer essa arte -por razões ideológicas, morais, politicamente corretas etc.
Ora, no estado atual de suas disciplinas, mesmo se eles quisessem, psicólogos e psiquiatras não saberiam modificar a orientação sexual de alguém -tampouco, aliás, eles saberiam modificar a "fantasia sexual" de alguém (ou seja, o cenário, consciente ou inconsciente, com o qual ele alimenta seu desejo).
Claro, ao longo de uma terapia, alguém pode conseguir conviver melhor com seu próprio desejo, mas sem mudar fundamentalmente sua orientação e sua fantasia.
Por via química ou cirúrgica (administração de hormônios ou castração real -todos os horrores já foram tentados), consegue-se diminuir o interesse de alguém na vida sexual em geral, mas não afastá-lo de sua orientação ou de sua fantasia, que permanecem as mesmas, embora impedidas de serem atuadas. A terapia pela palavra (psicodinâmica ou comportamental que seja) tampouco permite mudar radicalmente a orientação ou a fantasia de alguém.
O que acontece, perguntará João Campos, nos casos de homossexualidade com a qual o próprio indivíduo não concorda? Posso ser homossexual e não querer isso para mim: será que ninguém me ajudará?
Sim, é possível curar o sofrimento de quem discorda de sua própria sexualidade (é a dita egodistonia), mas o alívio é no sentido de permitir que o indivíduo aceite sua sexualidade e pare de se condenar e de tentar se reprimir além da conta.
Por exemplo, se eu não concordo com minha homossexualidade (porque ela faz a infelicidade de meus pais, porque sou discriminado por causa dela, porque sou evangélico ou católico), não posso mudar minha orientação para aliviar meu sofrimento, mas posso, isso sim, mudar o ambiente no qual eu vivo e as ideias, conscientes ou inconscientes, que me levam a não admitir minha orientação sexual.
Campos preferiria outro caminho: o terapeuta deveria fortalecer as ideias que, de dentro do paciente, opõem-se à homossexualidade dele. Mas o desejo sexual humano é teimoso: uma psicoterapia que vise reforçar os argumentos (internos ou externos) pelos quais o indivíduo se opõe à sua própria fantasia ou orientação não consegue mudança alguma, mas apenas acirra a contradição da qual o indivíduo sofre. Conclusão, o paciente acaba vivendo na culpa de estar se traindo sempre -traindo quer seja seu desejo, quer seja os princípios em nome dos quais ele queria e não consegue reprimir seu desejo.
Isso vale também e especialmente em casos extremos, em que é absolutamente necessário que o indivíduo controle seu desejo. Se eu fosse terapeuta no Irã, para ajudar meus pacientes homossexuais a evitar a forca, eu não os encorajaria a reprimir seu desejo (que sempre explodiria na hora e do jeito mais perigosos), mas tentaria levá-los, ao contrário, a aceitar seu desejo, primeiro passo para eles conseguirem vivê-lo às escondidas.
O mesmo vale para os indivíduos que são animados por fantasias que a nossa lei reprova e pune. Prometer-lhes uma mudança de fantasia só significa expô-los (e expor a comunidade) a suas recidivas incontroláveis. Levá-los a reconhecer a fantasia da qual eles não têm como se desfazer é o jeito para que eles consigam, eventualmente, controlar seus atos.
Agora, não entendo por que João Campos precisa recorrer à psicologia ou à psiquiatria para prometer sua "cura" da homossexualidade. Ele poderia criar e nomear seus especialistas; que tal "psicopompos"? Ou, então, não é melhor mesmo "exorcistas"?
quinta-feira, 28 de junho de 2012
Sorria!
Pesquisas mostram que valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão
Na frente da câmara fotográfica, ninguém precisa nos dizer "Sorria!"; espontaneamente, simulamos grandes alegrias, sorrindo de boca aberta. Em regra, hoje, os retratos são propaganda de pasta de dentes -se você não acredita, passeie pelo Facebook, onde muitos compartilham seus álbuns, rivalizando para ver quem parece melhor aproveitar a vida.
O hábito de sorrir nos retratos é muito recente. Angus Trumble, autor de "A Brief History of the Smile" (uma breve história do sorriso, Basic Books), assinala que esse costume não poderia ter se formado antes que os dentistas tornassem nossos dentes apresentáveis.
Além disso, os retratos pintados pediam poses longas e repetidas, para as quais era mais fácil adotar uma expressão "natural". O mesmo vale para os daguerreótipos e as primeiras fotos: os tempos de exposição eram longos demais. Já pensou manter um sorriso por minutos?
Outra explicação é que o retrato, até a terceira década do século 20, era uma ocasião rara e, por isso, um pouco solene.
Mas resta que nossos antepassados recentes, na hora de serem imortalizados, queriam deixar à posteridade uma imagem de seriedade e compostura; enquanto nós, na mesma hora, sentimos a necessidade de sorrir -e nada do sorriso enigmático do Buda ou de Mona Lisa: sorrimos escancaradamente.
Certo, o hábito de sorrir na foto se estabeleceu quando as câmaras fotográficas portáteis banalizaram o retrato. Mas é duvidoso que nossos sorrisos tenham sido inventados para essas câmaras. É mais provável que as câmaras tenham surgido para satisfazer a dupla necessidade de registrar (e mostrar aos outros) nossa suposta "felicidade" em duas circunstâncias que eram novas ou quase: a vida da família nuclear e o tempo de férias.
De fato, o álbum de fotos das crianças e o das férias são os grandes
repertórios do sorriso. No primeiro, ao risco de parecerem idiotas de tanto sorrir, as crianças devem mostrar a nós e ao mundo que elas preenchem sua missão: a de realizar (ou parecer realizar) nossos sonhos frustrados de felicidade. Nas fotos das férias, trata-se de provar que nós também (além das crianças) sabemos ser "felizes".
Em suma, estampado na cara das crianças ou na nossa, o sorriso é, hoje, o grande sinal exterior da capacidade de aproveitar a vida. É ele que deveria nos valer a admiração (e a inveja) dos outros.
De uma longa época em que nossa maneira e talvez nossa capacidade de enfrentar a vida eram resumidas por uma espécie de seriedade intensa, passamos a uma época em que saber viver coincidiria com saber sorrir e rir. Nessa passagem, não há só uma mudança de expressão: o passado parece valorizar uma atenção focada e reflexiva, enquanto nós parecemos valorizar a diversão. Ou seja, no passado, saber viver era focar na vida; hoje, saber viver é se distrair dela.
Ao longo do século 19, antes que o sorriso deturpasse os retratos, a "felicidade" e a alegria excessivas eram, aliás, sinais de que o retratado estava dilapidando seu tempo, incapaz de encarar a complexidade e a finitude da vida.
Alguém dirá que tudo isso seria uma nostalgia sem relevância, se, valorizando o sorriso e o riso, conseguíssemos tornar a dita felicidade prioritária em nossas vidas. Se o bom humor da diversão afastasse as dores do dia a dia, quem se queixaria disso?
Pois é, acabo de ler uma pesquisa de Iris Mauss e outros, "Can Seeking Happiness Make People Happy? Paradoxical Effects of Valuing Happiness", em Emotion on-line, em abril de 2011 (http://migre.me/9CT8e).
Em tese, a valorização ajuda a alcançar o que é valorizado -por exemplo, se valorizo as boas notas, estudo mais etc. Mas eis que duas experiências complementares mostram que, no caso da felicidade (mesmo que ninguém saiba o que ela é exatamente -ou talvez por isso), acontece o contrário: valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão. De que se trata? Decepção? Sentimento de inadequação?
Um pouco disso tudo e, mais radicalmente, trata-se da sensação de que a gente não tem competência para viver -apenas para se divertir ou, pior ainda, para fazer de conta. Como chegamos a isso?
Pouco tempo atrás, na minha frente, uma mãe conversava pelo telefone com o filho (que a preocupa um pouco pelo excesso de atividade e pela dispersão). O menino estava passando um dia agitado, brincando com amigos; a mãe quis saber se estava tudo bem e perguntou: "Filho, está se divertindo bem?".
Na frente da câmara fotográfica, ninguém precisa nos dizer "Sorria!"; espontaneamente, simulamos grandes alegrias, sorrindo de boca aberta. Em regra, hoje, os retratos são propaganda de pasta de dentes -se você não acredita, passeie pelo Facebook, onde muitos compartilham seus álbuns, rivalizando para ver quem parece melhor aproveitar a vida.
O hábito de sorrir nos retratos é muito recente. Angus Trumble, autor de "A Brief History of the Smile" (uma breve história do sorriso, Basic Books), assinala que esse costume não poderia ter se formado antes que os dentistas tornassem nossos dentes apresentáveis.
Além disso, os retratos pintados pediam poses longas e repetidas, para as quais era mais fácil adotar uma expressão "natural". O mesmo vale para os daguerreótipos e as primeiras fotos: os tempos de exposição eram longos demais. Já pensou manter um sorriso por minutos?
Outra explicação é que o retrato, até a terceira década do século 20, era uma ocasião rara e, por isso, um pouco solene.
Mas resta que nossos antepassados recentes, na hora de serem imortalizados, queriam deixar à posteridade uma imagem de seriedade e compostura; enquanto nós, na mesma hora, sentimos a necessidade de sorrir -e nada do sorriso enigmático do Buda ou de Mona Lisa: sorrimos escancaradamente.
Certo, o hábito de sorrir na foto se estabeleceu quando as câmaras fotográficas portáteis banalizaram o retrato. Mas é duvidoso que nossos sorrisos tenham sido inventados para essas câmaras. É mais provável que as câmaras tenham surgido para satisfazer a dupla necessidade de registrar (e mostrar aos outros) nossa suposta "felicidade" em duas circunstâncias que eram novas ou quase: a vida da família nuclear e o tempo de férias.
De fato, o álbum de fotos das crianças e o das férias são os grandes
repertórios do sorriso. No primeiro, ao risco de parecerem idiotas de tanto sorrir, as crianças devem mostrar a nós e ao mundo que elas preenchem sua missão: a de realizar (ou parecer realizar) nossos sonhos frustrados de felicidade. Nas fotos das férias, trata-se de provar que nós também (além das crianças) sabemos ser "felizes".
Em suma, estampado na cara das crianças ou na nossa, o sorriso é, hoje, o grande sinal exterior da capacidade de aproveitar a vida. É ele que deveria nos valer a admiração (e a inveja) dos outros.
De uma longa época em que nossa maneira e talvez nossa capacidade de enfrentar a vida eram resumidas por uma espécie de seriedade intensa, passamos a uma época em que saber viver coincidiria com saber sorrir e rir. Nessa passagem, não há só uma mudança de expressão: o passado parece valorizar uma atenção focada e reflexiva, enquanto nós parecemos valorizar a diversão. Ou seja, no passado, saber viver era focar na vida; hoje, saber viver é se distrair dela.
Ao longo do século 19, antes que o sorriso deturpasse os retratos, a "felicidade" e a alegria excessivas eram, aliás, sinais de que o retratado estava dilapidando seu tempo, incapaz de encarar a complexidade e a finitude da vida.
Alguém dirá que tudo isso seria uma nostalgia sem relevância, se, valorizando o sorriso e o riso, conseguíssemos tornar a dita felicidade prioritária em nossas vidas. Se o bom humor da diversão afastasse as dores do dia a dia, quem se queixaria disso?
Pois é, acabo de ler uma pesquisa de Iris Mauss e outros, "Can Seeking Happiness Make People Happy? Paradoxical Effects of Valuing Happiness", em Emotion on-line, em abril de 2011 (http://migre.me/9CT8e).
Em tese, a valorização ajuda a alcançar o que é valorizado -por exemplo, se valorizo as boas notas, estudo mais etc. Mas eis que duas experiências complementares mostram que, no caso da felicidade (mesmo que ninguém saiba o que ela é exatamente -ou talvez por isso), acontece o contrário: valorizar a felicidade produz insatisfação e mesmo depressão. De que se trata? Decepção? Sentimento de inadequação?
Um pouco disso tudo e, mais radicalmente, trata-se da sensação de que a gente não tem competência para viver -apenas para se divertir ou, pior ainda, para fazer de conta. Como chegamos a isso?
Pouco tempo atrás, na minha frente, uma mãe conversava pelo telefone com o filho (que a preocupa um pouco pelo excesso de atividade e pela dispersão). O menino estava passando um dia agitado, brincando com amigos; a mãe quis saber se estava tudo bem e perguntou: "Filho, está se divertindo bem?".
quinta-feira, 21 de junho de 2012
Arrastões
Hoje, é impossível invocar um aumento da diferença econômica para explicar a volta da criminalidade
Um amigo, dono de um restaurante paulistano tradicional, não perde a piada. Ele me explicou por que sua categoria está preocupada com a recente onda de arrastões: é que pensávamos, ele me disse, que assaltar os clientes fosse prerrogativa exclusiva da gente.
Piada à parte, na semana passada, a TV Folha me entrevistou sobre os arrastões que estão acontecendo logo em São Paulo -onde sair para jantar é o programa convivial por excelência, e o restaurante é um lugar tão familiar quanto a casa da gente.
Mesmo sem considerar essa especificidade paulistana, o assalto à mesa é sempre perturbador. A oralidade é o prazer mais primitivo, cuja "lembrança" (digamos assim) permanece em nós como modelo de qualquer outro prazer (por isso, aliás, é difícil parar de fumar ou de comer: as tentações orais são as mais irresistíveis).
Consequência: a experiência de ser assaltado no meio de uma boa refeição é comparável à de um bebê que recebesse um cascudo bem na hora em que ele está mamando, de olhos fechados, perdidamente feliz.
Enfim, a reportagem suspeitou que os arrastões ganhassem espaço na mídia por serem contra restaurantes na moda. Será que as classes C e D são excluídas das pautas da mídia?
A questão me levou de volta aos anos 1980 e 90, quando quase todos os bem-pensantes pareciam concordar com a suposição de que a causa da apavorante criminalidade brasileira fosse a também apavorante diferença social. Essa ideia (desmentida por qualquer pesquisa séria) voltava, como um joão-bobo, a cada vez que se tratasse de explicar a insegurança nas nossas ruas.
Para proteger essa tese falida, a gente (eu mesmo cooperei) insistia na distinção entre diferença econômica e exclusão: a diferença, por maior que fosse, não seria causa de criminalidade, enquanto a exclusão social, ela sim, produziria criminalidade, pois, afinal, quem é ou se sente excluído não pertence à comunidade -e, se não pertenço à comunidade, por que eu respeitaria suas leis? Para o excluído, as ditas forças da ordem não teriam legitimidade, mas seriam uma espécie de exército estrangeiro de ocupação. Para ele, o crime seria, então, um ato de resistência? "Mamma mia."
Mesmo a ideia de uma relação entre criminalidade e exclusão mal resiste à prova dos fatos. Mas tanto faz: o que importa é que, hoje, no Brasil, é difícil invocar um aumento da diferença econômica ou da exclusão para explicar a volta da criminalidade.
De fato, sempre soubemos que a criminalidade não é um efeito da diferença econômica, nem da exclusão, mas adorávamos essa ideia porque ela satisfazia tanto nossas aspirações de clareza (temos uma criminalidade absurda, mas "sabemos" por quê) quanto nossos anseios de justiça (a criminalidade compensa a iniquidade social).
A criminalidade brasileira assim explicada não precisava de um plano de ação: a culpa era nossa, e, portanto, podíamos nos resignar a sermos "justamente" assaltados (ou quem sabe mortos) por sermos cúmplices de um sistema "injusto". Aguentaríamos a violência e a inexistência de um espaço público frequentável porque assim expiaríamos o pecado original da diferença social.
Você não acha que a violência dos anos 1980 e 90 fosse aceita como uma necessária penitência depois da confissão? Certo, havia outras razões por essa tolerância da criminalidade: uma delas é que as ditas elites econômicas eram tão estrangeiras ao país quanto os excluídos -não havia problema em entregar ruas e esquinas aos bandidos, contanto que a residência (real, psíquica ou sonhada) das elites fosse em Miami, Nova York ou Paris.
Seja como for, a prova dessa aceitação é que nenhum político nacional dos anos 1980 ou 90, nem mesmo um demagogo, apresentou-se como porta-voz de um grande plano de segurança pública. Com a verbosa exceção da "Rota na rua" de Maluf em 2002, parece que um verdadeiro projeto de segurança nunca foi prioritário (aparentemente, porque tal projeto não prometia dividendos eleitorais suficientes).
Pois bem, felizmente, nos últimos dez anos, a diferença social diminuiu, assim como diminuiu a exclusão. Portanto, não é possível explicar a criminalidade crescente pela diferença social, que não está crescendo.
Talvez, agora, possamos começar a lidar realmente com o problema da segurança pública no Brasil, sem que nossos conselheiros sejam a culpa e a necessidade de autopunição.
quinta-feira, 14 de junho de 2012
Uma linda mulher
Se você ama uma mulher por ela ser prostituta, tente entender a fantasia que está atrás de seu amor
Numa cobertura da Vila Leopoldina, em São Paulo, na noite de 19 de maio, Elize Araújo Matsunaga, 30, assassinou o marido, Marcos Matsunaga, 42, com um tiro na cabeça. Na manhã seguinte, com uma faca de cozinha, Elize esquartejou o cadáver, de modo a poder transportar os pedaços em três malas. Logo, ela foi se desfazer das malas e da faca.
Esse fato de crônica tem tudo para se tornar literatura de cordel. Há o sangue frio de Elize depois do crime. Há a diferença social entre Marcos, empresário e herdeiro da Yoki, que acaba de ser vendida por R$ 1,7 bilhão, e Elize, enfermeira e bacharel em direito, mas de origem bem humilde.
Além disso, o ciúme foi um dos motivos: na noite do crime, Marcos acabava de ser confrontado por Elize, que conseguira a prova da infidelidade do marido. Mais: o horror aconteceu depois de seis ou sete anos do que foi, ao que tudo indica, uma genuína paixão; a filha, de um ano, estava no apartamento, dormindo, durante o crime; foi Marcos que transmitiu a Elize o interesse pelo tiro e pelas armas (havia 30, todas registradas, no apartamento).
Mas, acima de tudo, o que transforma a história do casal em matéria de cordel é o fato de que Marcos encontrou Elize, em 2004, num site de garotas de programa.
A informação parece ser repetida pela imprensa como uma mensagem aos homens: olhe o risco que você corre, se você amar uma prostituta e casar com ela.
Ora, quero corrigir esse lembrete. Se você se apaixonar por uma prostituta (ex ou não, tanto faz) e quiser se casar com ela, recomendo apenas uma cautela, que não tem nada a ver com sua futura mulher e tudo a ver com você.
Claro, a culpa do crime de 19 de maio é só de Elize, mas o lembrete preventivo é para os homens, embora chegue tarde para Marcos.
Se você ama uma mulher que por acaso é prostituta, aí, tudo bem; mas, se você ama essa mulher POR ELA SER prostituta, atenção: nesse caso, seria sábio você se familiarizar com a fantasia que sustenta seu amor. Qual é, em geral, a fantasia em questão?
Todo mundo se lembra de "Uma Linda Mulher", filme adorável de Garry Marshall, em que o rico Edward (Richard Gere) se apaixona por Vivian (Julia Roberts), uma prostituta que ele "levantou" na rua. Será que a história de Marcos e Elize é "Uma Linda Mulher" sem o final feliz? De fato, sempre pensei que, depois dos sorrisos do fim do filme, Edward e Vivian acabariam mal -talvez não tão mal quanto Marcos e Elize, mas mal. Por quê?
Logo quando Edward decide trazer Vivian para o seu mundo, ele "acha graça" confessar a um amigo que aquela linda mulher que está com ele é uma prostituta de rua.
Prognóstico inelutável. Um dia, Edward não resistirá à fantasia que lhe fez escolher Vivian: ele a humilhará (e se humilhará), lembrando, eventualmente diante de amigos e parentes, que Vivian vem da sarjeta e que ele poderia jogá-la de volta para lá.
Na noite do dia 19, segundo a confissão de Elize, Marcos a ameaçou: "Vou te mandar de volta para o lixo de onde você veio". Ele também declarou que, se a mulher quisesse se separar, a filha ficaria com ele, pois será que um juiz daria a guarda da menina a uma prostituta? (Eu aposto que sim, mas sou otimista...).
Em regra, o desejo de um homem que se apaixona por prostitutas (e planeja "redimi-las") é sustentado por uma fantasia (inconsciente) de vingança -contra a mulher e contra ele mesmo, por ter se deixado seduzir. Explico.
A sexualidade de muitos homens é patologicamente neurótica: eles olham para o sexo pelo buraco da fechadura do quarto dos pais. Nessa ótica infantil, não se salva ninguém: é "puta" qualquer mulher que vai com os outros, ou seja, todas as mulheres são "putas", inclusive a mãe (surpreendentemente), porque ela vai com pai, padrasto e companhia -enquanto, para a gente, ela só tem carinho contido.
Para o homem de calça curta, ajoelhado diante da fechadura, a "puta" é um paradoxo: vergonhosamente acessível a todos, salvo a ele.
É nessa infantilidade que nascem a misoginia básica, o gosto da violência contra as prostitutas, a ideia de que todas as mulheres, se não são prostitutas, sonham com isso e uma preferência amorosa quase exclusiva por meretrizes.
Quando um desses homens ama uma prostituta e se casa com ela, seu ressentimento pode se calar em nome do amor, mas só por um tempo: ainda ele vai puni-la por ter sido e ser para sempre a "puta" que vai com os outros.
quinta-feira, 7 de junho de 2012
As coisas, os outros e os escombros
Nos entulhos, as vítimas procuram sua identidade, que ficou nas coisas e nos outros perdidos
1) Os amigos que encontro, nesta volta de viagem, querem saber do terremoto na Itália. Como foi? O que pensei e senti? Pois é, o terremoto não me inspirou pensamentos sobre a fragilidade da existência e a força da natureza -ou outro lugar-comum que valha. Na hora, só tive iniciativas práticas. Como já contei, logo no primeiro tremor, juntei numa pasta passaportes, bilhetes de avião e carteiras.
Nos dias seguintes, me deslocava sempre com esses apetrechos e, de noite, deixava ao lado da cama uma bolsa que continha a tal pasta mais o necessário para que a gente, pulando da cama para a rua, aguentasse o frio e a chuva. Será que eu me preocupava com nossa mobilidade, ou seja, com a possibilidade de irmos embora sem burocracia, em caso de catástrofe? Ou será que me preocupava em termos constantemente conosco uma prova de nossa identidade?
2) Na madrugada do primeiro tremor, no dia 20, fiquei acordado até a luz do dia, para não ser surpreendido por eventuais tremores de assentamento. Passei o tempo olhando para as coisas ao meu redor. Nos 60 anos em que meus pais mantiveram um apartamento em Veneza, eles abarrotaram seu espaço: nada de grande valor (afinal, o lugar fica desocupado durante boa parte do ano), mas muitos objetos carregados de história familiar, marcados pelas mãos e pelos olhares dos meus pais, avós ou bisavós.
De cada objeto que considerei, tentei me contar a história: de onde vinha? De quem fora? Como chegara até lá? Talvez o livro mais bonito e tocante que li nos últimos meses tenha sido "A Lebre com Olhos de Âmbar", de Edmund de Waal (Intrínseca). É a história de uma família, narrada, por assim dizer, por uma coleção de miniaturas japonesas que passa, ao longo de quase dois séculos (cheios de fúria e guerras), de mão em mão, de país em país e de um continente a outro.
Sem dúvida, há objetos que são melhores sedimentos da história do que outros. Uma miniatura japonesa, por exemplo, já nasce como vestígio da história de quem a entalhou -às vezes, meses ou anos a fio. Mas, no fundo, qualquer objeto, até um artefato industrial, tenta contar sua história. Qualquer mercadoria pode nos falar do trabalho de quem a produziu e dos desejos dos que a compraram, perderam ou trocaram. O que acontece, em geral, é que a gente não se dá o tempo de escutar.
Logo na região devastada pelo terremoto, nos claustros de San Pietro, em Reggio Emilia, está aberta até outubro (tremores permitindo) a exposição "Gli Oggetti ci Parlano" (os objetos falam conosco). Uma busca on-line explica a iniciativa e permite ver, em vídeo, partes da mostra: os cidadãos de Reggio foram convidados a emprestar objetos pessoais que tivessem, para eles, uma história significativa -a qual eles contam em depoimentos filmados.
3) Parêntese: já na primeira noite, lembrei-me de uma recomendação de meu pai, com sua sabedoria de clandestino procurado por fascistas e nazistas: "Se você fugir, não volte atrás". E ele agregava exemplos de resistentes que fugiram a tempo, mas quiseram voltar, rapidamente, para pegar algo que tinham esquecido ou mesmo só para olhar sua casa pela última vez -e foram presos.
Confirmando o conselho de meu pai, no segundo terremoto, o do dia 29, morreu o padre Martini, em Rovereto; ele voltou para a igreja de Santa Caterina, já periclitante desde o dia 20 -só um instante, para recuperar uma imagem santa. Entrou exatamente na hora do tremor das nove da manhã.
4) Passei minha infância brincando e fuçando nos escombros (de bombardeios aéreos, não de terremotos, claro). Imagino que, se minha casa fosse demolida, mesmo se não houvesse vítimas, eu ficaria, mexendo no entulho -mas à procura do quê?
De uma jarra de prata que não se amassou além da conta, de uma cerâmica que não quebrou, de um livro que sobreviveu? É fácil dizer que tanto faz, "deixa para lá: o passado está na gente, na nossa lembrança". Fácil e um pouco falso: nossa identidade é sempre dispersa aos quatro ventos.
Ela está nas pedras, nas coisas e nos outros. A clínica constata que as vítimas das grandes catástrofes, quando erram pelos entulhos, entre corpos e restos, não sabem mais direito quem elas são. O que elas procuram é sua própria identidade, que estava nas coisas, nas pedras e nos outros que se perderam.
quinta-feira, 31 de maio de 2012
Parábolas italianas
Evasão fiscal e trabalho informal são as reações da sociedade contra um Estado parasita e corrupto
ENTRE 12 e 20 de maio, Veneza hospedou a America's Cup -a competição dos catamarãs que são, hoje, a Fórmula 1 da navegação a vela. Houve regatas em mar aberto e outras na bacia de São Marcos.
Milhares de iates e barcos mais ou menos luxuosos se reuniram para assistir às regatas de perto, no meio do mar.
Mas quem fez mesmo a festa foi a polícia financeira italiana, que, ao longo da semana, parou e controlou mais de 1.400 embarcações, constatando irregularidades fiscais em 135. Um exemplo que repercutiu na imprensa local foi o de um barco de 14 metros (valendo R$ 350 mil), cujo dono, em sua última declaração de renda, dissera ganhar menos de R$ 15 mil por ano.
Como o atual governo considera que um dos grandes vícios italianos é a evasão fiscal, só resta celebrar a ação da polícia financeira.
No entanto, na semana de regatas, alguns venezianos mais humildes, donos de barcos pequenos (que aqui são o equivalente de um carro popular 1.0), arredondaram seu fim do mês alugando assentos a quem quisesse passar o dia no mar, no meio das competições.
A polícia financeira fez que não viu. Mas alguns desses venezianos, na hora do almoço, serviram a seus clientes um refrigerante e um sanduíche. Nesse caso, a polícia os parou e multou, por servirem bebidas e comida sem a necessária licença (como se tivessem aberto restaurantes flutuantes).
Outra parábola. O senhor Mário, meu vizinho, é incomodado pela presença crescente de trabalhadores clandestinos, sobretudo chineses, nos restaurantes e cafés de nossa rua. Ele suspeita que até alguns pequenos empreendedores sejam imigrantes ilegais.
Na hora em que saio para comprar o jornal, Mário está lá, na esquina, para comentar: "Você viu? No bar lá mais adiante, é uma família inteira...". Há, na sua inquietude, uma parte de xenofobia e há também uma preocupação com as consequências fiscais do trabalho clandestino: se ninguém paga as contribuições obrigatórias, de onde virá o dinheiro para as aposentadorias? Sem contar que os clandestinos aceitam salários de fome e estragam o mercado...
Mário gostaria de denunciar os clandestinos do bar perto de nossa casa. Pelas declarações do governo atual, ele seria assim um cidadão consciente, e não um dedo-duro. Note-se, aliás, que a Comissão da União Europeia critica o governo italiano por não estar fazendo tudo o que deveria para sair da crise e, especialmente, para acabar com a evasão fiscal e com a economia informal e clandestina.
Em contrapartida, eis outro fato de crônica local. Na semana passada, um vilarejo do Vêneto foi etapa do "Giro d'Italia". O bar ao lado da chegada da famosa competição do ciclismo mundial conheceria assim um de seus "grandes" dias; para esse dia, o casal que possui e administra o pequeno estabelecimento pediu ajuda a dois parentes próximos.
Pois bem, a polícia financeira multou o casal por ter usado trabalho informal e o obrigou a empregar formalmente os dois parentes por, no mínimo, um mês. O casal declarou falência e colocou o ponto à venda.
A primeira moral dessas histórias se aplica (em parte) ao Brasil: a Itália está perseguindo evasão fiscal e trabalho informal como se fossem os grandes responsáveis pela crise atual. A história é outra: que a gente ache isso edificante ou não, a evasão fiscal e o trabalho informal foram ingredientes cruciais da receita do crescimento italiano depois da Segunda Guerra, porque também foram as reações que a sociedade inventou contra um Estado gigantesco e, muitas vezes, parasita e corrupto.
Tratar a evasão fiscal e a informalidade como uma praga é ingênuo; tratá-los como a ÚNICA praga italiana significa proteger um Estado arcaico contra todas críticas e reformas possíveis.
O outro sentido dessas histórias é mais geral e diz que talvez regras e normas nunca mereçam ser absolutas. Mais um exemplo. No dia da final da America's Cup, domingo retrasado, não muito longe da bacia de São Marcos, enquanto os catamarãs competiam, dois corpos de pescadores profissionais boiavam na água.
Proibidos de pescar a menos de três milhas da costa e tendo perdido seu barco de pesca por causa de uma multa, sobrou aos dois, para tentar ganhar o pão para suas famílias, encarar o largo numa casca de noz.
Proibir a pesca perto da costa é certo e ecologicamente necessário. Mas, como disse antes, talvez as regras nunca mereçam ser absolutas.
quinta-feira, 24 de maio de 2012
Terremotos, bombas etc.
Liguei a luz, acordei minha mulher e constatamos que o lampadário oscilava como um pêndulo
CHEGUEI A Veneza cansado, no fim da tarde de sábado 19. Fui dormir cedo, com uma pequena ajuda química. Pelas 4h de domingo, ainda no sono, pareceu-me que alguém estivesse transando na minha cama, bem do meu lado. Com uma fórmula bizarramente polida, pensei: isto é indelicado, transar aqui enquanto estou dormindo.
O fato é que a cama (de nogueira, como a maioria dos móveis europeus do século 19) estava literalmente gemendo, como se alguém a sacudisse com violência sobre-humana. Ainda sonolento e no escuro, pensei que as camas antigas são uma loucura, não dá para se levantar sem acordar o outro. Mas quantas vezes seguidas minha mulher estava se levantando? E por quê?
Nova ideia: ela estava tendo uma convulsão. Seria inédito, mas vai que a comida do dia anterior não tivesse caído bem.
Já tinham se passado 15 segundos quando liguei a luz e acordei minha mulher: juntos, vimos o lampadário oscilando como um pêndulo. A cama, enfim, silenciou, mas agora era óbvio: terremoto.
Minha mulher se virou e continuou dormindo. Numa pochete, juntei passaportes, passagens e carteiras; destravei a porta do apartamento para facilitar a fuga. Se chegasse um segundo tremor, eu arrastaria minha mulher até à rua, onde já se reunira um grupo de vizinhos.
Como sempre depois de uma longa ausência, a internet de casa não funcionava; liguei o roaming de dados de meu celular de São Paulo (não era o momento de fazer economias): já havia centenas de comentários on-line -os mais numerosos e apavorados eram postados de Ferrara e Módena, na Emilia Romagna. Ou seja, o epicentro do terremoto era, provavelmente, a mais de cem quilômetros de Veneza.
Às 6h, contra minha vontade, peguei no sono. Um pensamento sedativo acabou com minha vigia: terremotos não são frequentes no nordeste da Itália. Houve um, forte, em 1976, mas foi nas montanhas do Friuli; aqui em Veneza, na planície e na beira do mar, essas coisas "nunca" acontecem. Pois é, "nunca" é jeito de falar.
Outro sedativo foi a ideia de que meu edifício, em Castello, sobrevivera por 500 anos e já devia ter testado sua solidez contra outros terremotos. Besteira: soube no dia seguinte que, mais perto do epicentro, o terremoto destruíra igrejas, castelos e edifícios tão antigos quanto o meu.
Depois do tremor inicial, houve um enxame sísmico de mais de cem pequenos terremotos que não percebi -mas estou, desde então, com sintomas de labirintite.
Domingo, ao ler os jornais, aprendi que o terremoto não era a única razão por a Itália estar de luto. No sábado de manhã, perto de Brindisi, na entrada de uma escola, uma bomba matara uma menina de 16 anos e ferira e queimara cinco outras, uma das quais está entre a vida e a morte.
A polícia dispõe de uma imagem do assassino, filmado por uma câmara de segurança enquanto esperava a chegada de suas vítimas; seu DNA foi encontrado nas bitucas dos cigarros que ele fumou durante a espera. Talvez se trate apenas da loucura assassina de alguém que quer se vingar de todos e da vida. Mas houve comentaristas que teceram um paralelo com os anos 1970, quando o terror (de esquerda e de direita) tomou conta do país.
De fato, desde 2003, na Itália, repetem-se atentados políticos no estilo dos anos 1970. As Brigadas Vermelhas não existem mais (embora existam umas ditas Novas Brigadas Vermelhas), mas a conjuntura pode alimentar uma estupidez parecida com a do terror da época. Desemprego alto, insegurança econômica e, sobretudo, como confirmaram as eleições administrativas desta semana, caos partidário (desastroso para a direita), confusão ideológica, vitória de demagogos populistas etc. são todos ingredientes do clima preferido pelo terror.
Claro que aquela época já passou. Estamos num momento muito diferente, e não vai recomeçar nada parecido. Não é?
Da mesma forma, nestes dias, fala-se, às vezes, que a unificação da Europa foi um erro. Sim, certo, tivemos 70 anos de paz entre as grandes nações europeias, mas essa proeza inédita não seria comprometida pela eventual falência da União Europeia. Nada a ver, não é?
Guerra Mundial na Europa é coisa do passado. É como terrorismo na Itália ou como terremoto na planície Padana. Isso não acontece mais (ou não acontece nunca).
Pois é, eu, aqui em Veneza, acabo de verificar que Forrest Gump tem razão: às vezes, "shit happens" -as m... acontecem.
quinta-feira, 10 de maio de 2012
A gangue do guardanapo
O guardanapo do Ritz é a bandana perfeita para quem quer surfar nas costas dos bananas (que seríamos nós)
A FOTOGRAFIA da semana, para mim, é a de Fernando Cavendish (dono da Delta) e Sérgio Cabral (governador do Rio), com outros políticos e empresários, alegres além da conta, todos arvorando um guardanapo branco amarrado na cabeça -isso, num restaurante de Paris (o do hotel Ritz, ao que parece), em 2009.
A cena me lembra um caso recente. Um casal de brasileiros frequenta habitualmente um restaurante de Manhattan, porque o lugar é simpático e porque o maître também é brasileiro. Uma noite, no dito restaurante, uma mesa acomoda um grupo especialmente barulhento de mais oito brasileiros: os homens competem clamando seus pedidos de vinhos caros, e as mulheres competem gritando as compras do dia.
O maître recebe o casal de "habitués" pedindo em voz baixa: "Por favor, não vamos falar português, prefiro que eles não saibam que somos brasileiros".
É difícil assumir a brasilidade quando, na boca dos emergentes, o "brado retumbante" é o barulho de quem ambiciona se apresentar ao mundo pelo chacoalho do trocado que tem no bolso.
A mobilidade social brasileira é rapidíssima: em uma geração, criam-se fortunas (com ou sem a cumplicidade do poder público corrupto). Nesse ritmo acelerado de ascensão social, os novos ricos, em regra, adotam o luxo como puro símbolo de status, sem o tempo de elaborar uma cultura que lhes permita apreciá-lo. Com isso, escreveu justamente Elio Gaspari (Folha de 2/5), tentando ser chiques, eles são bregas: sua ostentação revela a falta de um gosto próprio e a vontade de ocultar sua origem recente.
Os novos ricos se envergonham de seu passado mais humilde e tentam ocultá-lo num agito fanfarrão que, justamente, revela aquela procedência que eles gostariam de espantar. Enquanto isso, os outros, como o maître de Manhattan, envergonham-se dos privilegiados de seu país.
Mas tudo isso não nos diz ao que vêm, na festa de Cavendish e companhia, os lenços na cabeça.
Para quem não viu a foto: são guardanapos dobrados em triângulos, cuja base é amarrada ao redor da testa, de modo que o pano recaia sobre os cabelos e a ponta seja eventualmente segurada na nuca. Ou seja, são bandanas.
Pioneiros, vaqueiros e bandeirantes a caminho do Oeste usavam uma bandana, que, ao redor do pescoço, servia para proteger a boca da poeira e dos insetos ou, amarrada de baixo do chapéu, estancava o suor. Antes disso, o mesmo lenço segurava o cabelo dos piratas. Depois disso, nos anos 1960 e 1970, ele segurava o dos motoqueiros rebeldes da contracultura.
A bandana é, tradicionalmente, um apetrecho de quem se engaja (real ou metaforicamente) no vento e na poeira dos caminhos menos percorridos. O ideal do cowboy, do "easy-rider", do aventureiro, do pirata, do surfista errante ou do roqueiro pode se encarnar em usuários mais sedentários, mas não menos ousados -à condição, claro, que eles precisem segurar o cabelo (é o caso, por exemplo, dos chefes de cozinha de hoje). Mas como esse mesmo ideal se encarnaria nos clientes brasileiros do Ritz de Paris?
Talvez a bandana da foto de Cavendish, Cabral etc. seja apenas uma versão da gravata na testa daqueles primos bêbados, que, no fim de uma festa de casamento, escolhem mostrar a todos os outros ("inibidos", "caretas" e "obviamente" invejosos) que eles, sim, sabem se divertir e são os verdadeiros heróis do hedonismo -os que não recuam diante do prazer. Isso, claro, até eles vomitarem num canto (conselho: nunca fique num casamento depois da saída dos noivos).
Ou talvez Cavendish, Cabral etc. achem que eles são mesmo os novos "easy-riders", cowboys ou bandeirantes. Mas qual é, então, sua aventura? Em que jornada eles precisam segurar o cabelo para correr livres no vento?
O guardanapo branco do Ritz é uma curiosa bandana: ele diz que a aventura desses pretensos aventureiros é apenas a de esbanjar seu privilégio (mais ou menos legal), sonhando em ser o objeto da inveja de todos. Em síntese: o guardanapo do Ritz é a bandana perfeita para quem quer surfar nas costas dos bananas (que seríamos nós).
Elio Gaspari prometeu uma viagem a Dubai para quem explicasse as bandanas do grupo de Cavendish etc. Se ajudei, renuncio desde já à viagem oferecida. Receio encontrar, em Dubai, o mesmo pessoal do Ritz ou seus amigos. Prefiro que Gaspari me convide para um jantar qualquer. Aliás, nem precisa me convidar. Mas o jantar é sem bandanas, ok?
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