quinta-feira, 31 de maio de 2012
Parábolas italianas
Evasão fiscal e trabalho informal são as reações da sociedade contra um Estado parasita e corrupto
ENTRE 12 e 20 de maio, Veneza hospedou a America's Cup -a competição dos catamarãs que são, hoje, a Fórmula 1 da navegação a vela. Houve regatas em mar aberto e outras na bacia de São Marcos.
Milhares de iates e barcos mais ou menos luxuosos se reuniram para assistir às regatas de perto, no meio do mar.
Mas quem fez mesmo a festa foi a polícia financeira italiana, que, ao longo da semana, parou e controlou mais de 1.400 embarcações, constatando irregularidades fiscais em 135. Um exemplo que repercutiu na imprensa local foi o de um barco de 14 metros (valendo R$ 350 mil), cujo dono, em sua última declaração de renda, dissera ganhar menos de R$ 15 mil por ano.
Como o atual governo considera que um dos grandes vícios italianos é a evasão fiscal, só resta celebrar a ação da polícia financeira.
No entanto, na semana de regatas, alguns venezianos mais humildes, donos de barcos pequenos (que aqui são o equivalente de um carro popular 1.0), arredondaram seu fim do mês alugando assentos a quem quisesse passar o dia no mar, no meio das competições.
A polícia financeira fez que não viu. Mas alguns desses venezianos, na hora do almoço, serviram a seus clientes um refrigerante e um sanduíche. Nesse caso, a polícia os parou e multou, por servirem bebidas e comida sem a necessária licença (como se tivessem aberto restaurantes flutuantes).
Outra parábola. O senhor Mário, meu vizinho, é incomodado pela presença crescente de trabalhadores clandestinos, sobretudo chineses, nos restaurantes e cafés de nossa rua. Ele suspeita que até alguns pequenos empreendedores sejam imigrantes ilegais.
Na hora em que saio para comprar o jornal, Mário está lá, na esquina, para comentar: "Você viu? No bar lá mais adiante, é uma família inteira...". Há, na sua inquietude, uma parte de xenofobia e há também uma preocupação com as consequências fiscais do trabalho clandestino: se ninguém paga as contribuições obrigatórias, de onde virá o dinheiro para as aposentadorias? Sem contar que os clandestinos aceitam salários de fome e estragam o mercado...
Mário gostaria de denunciar os clandestinos do bar perto de nossa casa. Pelas declarações do governo atual, ele seria assim um cidadão consciente, e não um dedo-duro. Note-se, aliás, que a Comissão da União Europeia critica o governo italiano por não estar fazendo tudo o que deveria para sair da crise e, especialmente, para acabar com a evasão fiscal e com a economia informal e clandestina.
Em contrapartida, eis outro fato de crônica local. Na semana passada, um vilarejo do Vêneto foi etapa do "Giro d'Italia". O bar ao lado da chegada da famosa competição do ciclismo mundial conheceria assim um de seus "grandes" dias; para esse dia, o casal que possui e administra o pequeno estabelecimento pediu ajuda a dois parentes próximos.
Pois bem, a polícia financeira multou o casal por ter usado trabalho informal e o obrigou a empregar formalmente os dois parentes por, no mínimo, um mês. O casal declarou falência e colocou o ponto à venda.
A primeira moral dessas histórias se aplica (em parte) ao Brasil: a Itália está perseguindo evasão fiscal e trabalho informal como se fossem os grandes responsáveis pela crise atual. A história é outra: que a gente ache isso edificante ou não, a evasão fiscal e o trabalho informal foram ingredientes cruciais da receita do crescimento italiano depois da Segunda Guerra, porque também foram as reações que a sociedade inventou contra um Estado gigantesco e, muitas vezes, parasita e corrupto.
Tratar a evasão fiscal e a informalidade como uma praga é ingênuo; tratá-los como a ÚNICA praga italiana significa proteger um Estado arcaico contra todas críticas e reformas possíveis.
O outro sentido dessas histórias é mais geral e diz que talvez regras e normas nunca mereçam ser absolutas. Mais um exemplo. No dia da final da America's Cup, domingo retrasado, não muito longe da bacia de São Marcos, enquanto os catamarãs competiam, dois corpos de pescadores profissionais boiavam na água.
Proibidos de pescar a menos de três milhas da costa e tendo perdido seu barco de pesca por causa de uma multa, sobrou aos dois, para tentar ganhar o pão para suas famílias, encarar o largo numa casca de noz.
Proibir a pesca perto da costa é certo e ecologicamente necessário. Mas, como disse antes, talvez as regras nunca mereçam ser absolutas.
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