quinta-feira, 31 de julho de 2008

Batman, as trevas e a moda



Com os super-heróis, sonhamos que nosso cotidiano insosso é uma identidade secreta

ASSISTI A "BATMAN - O Cavaleiro das Trevas", de Christopher Nolan. Gostei e me diverti. Pouco tenho a acrescentar à massa do que já foi escrito sobre o filme, salvo uma vaga decepção, como se eu esperasse "mais". Mas mais do quê? Os releases, a imprensa e o título prometiam um super-herói com uma nova profundidade moral.

Desta vez, desceríamos no âmago escuro de Batman, aprenderíamos que mesmo o caminho das melhores intenções é ladrilhado de tentações e motivações sombrias. Uma exposição está acontecendo no museu Metropolitan de Nova York (até 1/9), "Super Heroes - Fashion and Fantasy" (super-heróis -moda e fantasia): o tema é a influência do traje dos super-heróis na moda contemporânea.

No prefácio do catálogo, o curador observa que os super-heróis nasceram como personagens de romances de dez centavos e de quadrinhos, mas não por isso devem ser subestimados: "Sua aparente trivialidade é justamente o que faz com que, enquanto eles nos divertem, possam levantar questões sérias sobre os valores e sobre os méritos [de cada um]". Concordo.

E acrescento que: 1) na verdade, quase todos os filmes recentes de super-herói (Homem-Aranha, Hulk, os X-Men etc.) fogem da oposição primária entre o mal e o bem absolutos; 2) a "complexidade" subjetiva e moral dos super-heróis não é uma novidade cinematográfica; ela já estava nas histórias em quadrinhos.

Voltando ao Batman de hoje, de onde nasceu (inclusive em muitos críticos do filme) o sentimento de uma nova "complexidade" moral do herói? É porque Batman deve se conter para não matar seu repugnante adversário?

Porque está a fim de largar tudo e viver normalmente com sua amada? Porque ele se pergunta se sua figura de justiceiro misterioso é um bem ou um mal para a cidade? Não sei. Mas sei que, mais de uma vez, durante o filme, pensei: "É só isso?". De fato, no filme, a "complexidade" aparece sobretudo do lado do mal.

Deve ser por essa razão, aliás, que (performance de Heath Ledger à parte) o Coringa rouba a cena de Batman. Sebastião (13 anos), ao sair do cinema comigo, não tinha perguntas sobre Batman, mas tinha uma sobre o Coringa: "Como é que ele queima aquele monte de dinheiro?".

Ou seja, ele é do mal para o quê, então? Sebastião, em suma, acabou meditando sobre a profundeza do mal, não sobre as trevas escondidas no desejo de fazer o bem. Além disso, o filme nos apresenta um excelente dilema moral. Imagine dois navios parados no meio do mar. Cada navio é recheado de explosivos e carrega 200 pessoas (que não constituem um grupo, não são nem uma torcida nem uma tribo).

São 23h, e à meia-noite os dois barcos explodirão, a não ser que, antes disso, um deles vá para o espaço. Detalhe: o detonador que comanda a explosão de cada embarcação está nas mãos dos passageiros do outro barco.

Ou seja, em cada barco, os passageiros devem decidir se eles apertam o botão e se salvam matando os outros ou, então, morrem dignamente, sozinhos ou junto com os outros. Melhor viver assassino ou morrer inocente? Pois é, a resposta moralmente mais elevada não consiste em escolher morrer para não matar.

Consiste em decidir que, seja qual for a conseqüência, nossa dignidade subjetiva nos impede de participar dessa brincadeira. Confira o que acontece no filme: de novo, a complexidade aparece do lado do mal. Enfim, o prefácio que citei afirma que o super-herói, com sua identidade secreta, encarna nossa vontade de sermos "outros". É a idéia da exposição: "a moda, como o super-herói, (...) oferece possibilidades ilimitadas de dar nova forma ao nosso corpo e, em geral, a nós mesmos".

Num desfile de Moschino, um homem de terno, com os óculos de Clark Kent, abre sua camisa mostrando uma camiseta que evoca o traje de Superman. Legal. Mas, agora que somos grandes, se quisermos pensar nos nossos anseios de vida dupla ou tríplice, talvez pudéssemos dispensar os super-heróis e contar a história dos executivos que, no fim de semana, vestidos de Hell's Angels, sobem numa Harley.

Ou a das executivas que passam os domingos pulando de pára-quedas. Ou a dos que só toleram o cotidiano à condição de se perder, a cada noite, nos inferninhos da cidade. Ou ainda a dos que sempre sonham em férias que nunca são a "outra" vida desejada. Isso sem contar os que acham que, para ser super-herói, basta encontrar a roupa e os apetrechos certos, fazendo compras em Miami.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Desgosto



A Itália decreta o censo da população cigana: o próximo passo será uma estrela cravada no peito?

ESCREVO COM tristeza, embora a história comece com um cartaz da Lega Nord que achei hilário.

A Lega Nord é um partido político italiano que pregava o separatismo do norte da Itália, apostando no desprezo dos italianos do norte pelos meridionais pobres e roceiros que migravam rumo aos pólos industriais do norte do país (imagine, no Brasil, uma "Liga Sul" que quisesse um país de Espírito Santo para baixo, sem retirantes nordestinos).

A Lega Nord, ao ganhar expressão nacional, teve que converter seu separatismo em exigências de autonomia regional. Como reanimou suas tropas? Simples. Na Europa, o vínculo do cidadão com sua terra é atávico e facilmente exclusivo -não é, como nas Américas, o fruto do sonho de antepassados que imigraram. Foi fácil, para a Lega, tornar-se o partido dos descontentes com as ondas de imigrantes externos dos últimos anos: africanos, asiáticos e europeus do Leste.
Volto ao cartaz: é o perfil de um índio norte-americano, com seu cocar. Legenda: "Eles sofreram a imigração. Agora vivem em reservas.

Pense nisso". Fiquei pasmo: os italianos não participaram da conquista do Oeste, mas muitos deles "fizeram a América"; agora deveriam se identificar com os índios norte-americanos e sua história? Qualquer coisa vale para tirar proveito da insegurança econômica e social das classes médias transformando-a em pavor do estrangeiro, do diferente, do outro afoito e rapace que estaria querendo nosso trabalho e nossas mulheres.

O cartaz (www.leganord.org/ilmovimento/manifesti.asp) tem uma nova versão, com a legenda "A fuga das reservas começou" -ou seja, estamos retomando nossa terra das mãos dos invasores.

É um jeito de festejar o endurecimento da política italiana contra os imigrantes no novo governo Berlusconi, do qual a Lega é um componente essencial.
Posso entender (em termos) que um governo criminalize o acesso e a permanência ilegais no país.

Imagino (em termos) que um grupo étnico, encabeçando as estatísticas do crime, venha a ser discriminado no dia-a-dia do trabalho de polícia (em muitos países, se um branco assalta um negro, a polícia, chegando, primeiro prende o negro e depois se preocupa com a reconstituição dos fatos). Mas começo a me horrorizar quando, encorajados pelas idéias ambientes, uns amalucados, como aconteceu na Itália, organizam pogrons para incendiar acampamentos de comunidades ciganas.

Agora (Folha de 11 de julho) o governo italiano (apesar dos protestos da União Européia e da ONU) decretou um censo da população cigana nômade que vive na periferia das grandes cidades, crianças incluídas, com impressões digitais etc. -ou seja, um registro específico e detalhado que se torna obrigatório para uma etnia só. Note-se que um terço da dita população cigana não é imigrante, é italiana. E acrescente-se que o governo nomeou um responsável para a "questão cigana". Isso lembra alguma coisa?

Nada parecido aconteceu, num país ocidental, desde o começo da exterminação dos judeus, dos homossexuais, dos ciganos (coincidência) etc., durante o nazismo e o fascismo.

O próximo passo será uma estrela cravada no peito? Ou talvez, por os ciganos serem nômades, uma roda de charrete? Que cor?

O governo italiano afirma que tudo isso é para proteger as crianças ciganas que são forçadas a pedir esmola nas esquinas. Em suma, é para o bem dos ciganos. A justificativa dá arrepios: no começo, os nazistas diziam que a deportação protegeria os judeus contra a hostilidade dos arianos.

A oposição italiana e o papa se declararam contra. Poucas centenas de manifestantes apareceram em frente ao Parlamento, e só.

Neste espaço, em maio, estando na Itália, escrevi que, com a chegada de um presidente da Câmara que já foi do MSI (partido herdeiro do fascismo italiano), ficava claro que o passado da luta antifascista não era mais o divisor de águas da política italiana (ou européia).

Numa lápide murada no município de Cuneo (Piemonte), há um poema de Pietro Calamandrei, endereçado ao general nazista Kesserling, que acaba assim: "Por essas estradas se quiseres voltar/ aos nossos postos nos encontrarás/ mortos e vivos com a mesma garra/ povo reunido ao redor do monumento/ que se chama/ agora e sempre/ Resistência". Aparentemente, sobraram só os mortos.

Resta esperar que os italianos daqui, quando votarem para as eleições na Itália, não se esqueçam.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Volta de Paraty


Um romance interior, diferente para cada um, responde às perguntas que surgem na infância

DE QUARTA a domingo passados, participei da Festa Literária Internacional de Paraty -a Flip.
De alguns escritores presentes, eu já tinha lido um livro ou mais. Quanto aos outros autores, nas últimas semanas, encurtei minhas noites para conhecer ao menos o sabor de sua ficção. A bancada de meu escritório se cobriu de volumes inchados pelas orelhas das capas, com as quais eu marcava o progresso da leitura, e, ao redor de minha cama, espalharam-se em permanência dez livros abertos.

A essas leituras fragmentárias, acrescentaram-se, ao longo da Flip, os trechos lidos por cada autor.

Não sei quantas dessas histórias acabarei lendo por inteiro. A vida continua, e novos livros me levarão consigo. Mas, até das obras que não terminarei de ler, algo permanecerá -sem que eu saiba necessariamente o quê.

Os livros folheados, sondados, lidos às pressas e apenas em parte, os trechos ouvidos e mesmo os relatos de quem me contou de suas leituras -tudo isso alimentará (já alimenta), de uma maneira ou de outra, meu "livro interior". O que é meu "livro interior"? Um pouco de paciência.

Essa bonita expressão é de Pierre Bayard, cujo recente "Como Falar dos Livros que Não Lemos?" (Objetiva) foi o objeto de uma mesa da Flip, na qual, aliás, servi de mediador entre o próprio Bayard e Marcelo Coelho, colunista da Folha. O livro de Bayard é, à primeira vista, uma sátira (muito divertida) dos costumes (universitários e mundanos) pelos quais todos falamos de livros que não lemos como se os tivéssemos lido. Digo "à primeira vista", porque, de fato, o livro de Bayard é muito mais do que isso: é uma investigação sobre os caminhos misteriosos pelos quais os livros passam a fazer parte da gente, mesmo que os tenhamos apenas folheado ou nem isso.

Há os livros dos quais só ouvimos falar; há os muitos que compramos e ficam para sempre virgens em cima do criado-mudo; há os que apenas iniciamos e os que lemos aos trancos. Sem contar aqueles dos quais não sabemos mais se os lemos ou apenas acreditamos conhecê-los à força de falar como se os conhecêssemos. Fragmentos, re- latos, resumos de ficções, de uma maneira ou de outra, passam a fazer parte de nós, tanto quanto nossas leituras exaustivas. Como assim?

Num capítulo de seu livro, Bayard faz uma distinção entre o livro interior de quem pertence a uma sociedade tradicional (que seria um livro coletivo, repleto de representações, lendas e histórias que são fundamentalmente as mesmas para todos) e o livro interior dos modernos, único e diferente para cada um. É o romance que vamos aprimorando a partir das primeiras ficções que inventamos para responder às perguntas que se colocam desde nossa infância.

Para nós modernos, por exemplo, o parentesco sem amor não é garantia de nada, e o berço não dita o destino; só podemos, portanto, tentar imaginar: "Somos amados ou não?", "Será que nossos pais se amam?", "Eles amam mais a gente ou o irmão e a irmã?", "Qual será nosso futuro?", e por aí vai nossa tarefa de romancistas.

Aos poucos, as histórias que lemos, que ouvimos ou às quais assistimos (no cinema ou na televisão) enriquecem nossa ficção originária. E, como escreve Bayard: "Os livros interiores individuais formam um sistema de recepção de outros textos (...) constituem uma grade de leitura do mundo e particularmente dos livros, dos quais organizam a descoberta".

Ou seja, talvez nossa apreciação crítica seja isto: as exigências de nosso livro interior nos fazem gostar (ou não) de uma história porque ela pode (ou não) se enquadrar na ficção de nossa vida.
E as histórias que integramos à nossa ficção podem ser trechos, fragmentos, resumos, relatos de segunda mão.

Anos atrás, na Suíça, ensinando literatura a imigrantes italianos que preparavam o exame final do ensino básico, eu gostava de resumir os clássicos para eles. Eles escutavam, comentavam e liam pequenos trechos que eu tinha, quase sempre, simplificado. Os maiores sucessos eram a "Odisséia" e "Moby Dick" - o que não é surpreendente, tratando-se de homens que eram separados de suas famílias e corriam atrás de um sonho impossível.

Hoje, se alguém perguntasse a meus ex-alunos se eles leram esses dois livros, talvez eles dissessem que sim. Mentira? Pode ser. Mas aposto que Homero e Melville os reconheceriam como bons leitores de suas obras.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Ser homem ou mulher


A anatomia é o destino? Talvez, mas há lugares em que a mulher pode escolher ser homem

NOS ANOS 1960, "descobrimos" que a identidade de cada gênero, masculino, feminino ou outro (há outros, sim), era construída e imposta pela cultura em que vivíamos. Ou seja, nosso sentimento íntimo de ser homem ou mulher dependia dos valores que nos eram transmitidos: "alguém" nos oferecera bonecas ou soldados e nos propusera futebol ou costura.

A descoberta encorajou a militância igualitária, os papéis sociais de homens e mulheres se aproximaram e, enfim, tornou-se possível sentir-se homem e cuidar das crianças ou fazer bordado, e sentir-se mulher e pensar na vida profissional ou entrar no exército. Isso, sem que ninguém se atormentasse com dúvidas excessivas sobre sua identidade viril ou feminina.
Nas últimas décadas, houve um refluxo: hoje, sentir-se homem ou mulher nos parece ser, antes de mais nada, um efeito da diferença biológica entre os sexos.

Talvez seja por causa das próprias mudanças que mencionei acima: as diferenças culturais entre gêneros se tornaram menos relevantes e procuramos outras, mais "sólidas".

Mas muitos dirão que aconteceu o seguinte: os avanços da ciência mostraram que, na constituição das identidades de gênero, hormônios, genes etc. contam mais do que as palavras e os comportamentos. Ou seja, pouco importa que eu vista você de renda ou de farda, você será ou se sentirá homem ou mulher como mandam a química e a física de seu corpo.

Paradoxalmente, essa posição, que pretende ser materialista, parece apostar na separação de corpo e mente, como se um mundo "real" de genes e hormônios existisse separado do da fala e dos atos da gente (que, cá entre nós, não é menos real). Acho mais provável que haja um mundo só, em que interagem fenômenos descritos de jeitos diversos, mas que pertencem a uma única realidade, a nossa, feita de descargas hormonais, obrigações indumentárias e comportamentais, genes, xingões, chapoletadas, neurotransmissores, conselhos, amores e carícias.

Além disso, é bom não esquecer que a primazia atual das explicações "anatômicas" é, por sua vez, um fato cultural. Ela é a evolução esperada da cultura ocidental moderna, que promove, dessa forma, sua melhor idéia: a de uma humanidade comum a todos, além das diferenças culturais. Por exemplo, para justificar a existência de direitos humanos universais, nada melhor do que uma definição da espécie a partir da biologia comum e não das culturas, que divergem.

Seja como for, o clima de hoje sugere que a anatomia seja o destino. Nesse quadro, é bom meditar sobre um extraordinário artigo de Dan Bilefsky, no "New York Times" de 25 de junho (em www.nytimes.com, procurar "Woman as Family Man"). Bilefsky viajou pelas montanhas do norte da Albânia, onde sobrevivem os restos de uma cultura tradicional, regida por um cânon rigoroso que, entre outras coisas, prescreve a vendeta entre famílias, de geração em geração: vocês matam um dos nossos, nós mataremos um dos seus -sendo que só podem matar e ser mortos os homens das respectivas famílias. "Abril Despedaçado", de Ismail Kadaré (Companhia das Letras), dá uma boa idéia do clima local. Quem não leu pode assistir ao filme homônimo, de Walter Salles, que transpôs o romance de Kadaré para o norte do Brasil no começo do século 20.

Pergunta: o que acontecia, numa cultura como essa, quando só sobravam as mulheres de uma família? Pois é, no caso, encorajada pelo fato de que, nessa cultura, ser mulher era especialmente chato, uma virgem, livremente, podia decidir ser homem. Ela cortava o cabelo, vestia-se de homem, carregava faca e arma, sentava-se com os homens e com eles rezava na mesquita, matava e era morta nas vendetas e tornava-se patriarca da família.

Belefsky encontrou e fotografou várias mulheres-homens, na faixa dos 80 anos, mulheres que, 60 anos atrás, virgens, renunciaram à vida sexual e decidiram ser homens. E, de fato, sentiram-se e foram homens. Na verdade, ainda são: no pleno exercício de seu patriarcado.

O que assombra nessa história, aliás, não é só a construção cultural do gênero, mas a incrível liberdade que se revelava possível numa sociedade estritamente tradicional (a gente pensa, em geral, que a liberdade de escolha seja coisa exclusivamente nossa).

Queria prestar homenagem a Ruth Cardoso. O jeito foi escrever sobre algo que, onde quer que ela esteja hoje, talvez a interesse.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O risco de se perder



Renegar seus próprios princípios para se proteger é uma boa maneira de se destruir


NA QUINTA PASSADA , manifestei meu desgosto ao aprender que o governo italiano decretou um censo sistemático da população cigana nômade que vive ao redor dos grandes centros urbanos.

Alguns leitores me lembraram que, na Itália, a percentagem de ciganos envolvidos em crimes é bem mais significativa do que a percentagem dessa etnia na população geral.

Respondo que qualquer sociedade tem o direito e o dever de perseguir os INDIVÍDUOS criminosos, mas nenhuma estatística pode autorizar uma democracia moderna a discriminar a ETNIA dos mesmos.

Outros leitores evocaram a necessidade de proteger a cultura italiana.

Poderia responder que a "pureza" italiana, que se trataria de preservar, é o fruto de uma incrível mistura: as invasões bárbaras, a dos normandos na Sicília, o domínio austríaco no Norte do país e espanhol no Sul etc.

Mas me interessa mais a questão seguinte: mesmo supondo que uma onda imigratória possa corromper e destruir uma civilização, será que essa civilização, para se proteger e se preservar, pode se engajar em práticas que desmentem seus próprios valores fundamentais?

Um leitor afirmou que pode ser necessário "sacrificar princípios para preservar a cultura (européia) que é a base do apogeu da civilização humana, seja nas artes, na filosofia, literatura, psicologia etc.".

Em regra, penso que renegar seus próprios princípios para se preservar é uma boa maneira de se destruir. Mas não é uma questão simples.

Por exemplo, as democracias, depois da Segunda Guerra Mundial, tiveram que decidir se elas admitiriam ou não a existência, em seus parlamentos, de partidos totalitários (herdeiros do fascismo ou porta-estandartes da ditadura soviética). Admiti-la significava correr o risco de desaparecer como democracia caso um desses partidos chegasse ao poder. Não admiti-la significava silenciar a vontade política de alguns cidadãos, privando-os de representantes eleitos -o que seria negar o próprio princípio de uma democracia.

Outro exemplo, mais próximo. Aceitemos como uma hipótese, sem discutir, a idéia de que o terrorismo islamista seja uma ameaça fatal para a civilização ocidental e que o governo Bush queira proteger o que nossa civilização tem de melhor. Agora, o governo Bush autorizou detenções e métodos de interrogatório contrários aos princípios da mesma civilização que ele tenta preservar. Pergunta: se, defendendo-nos, cometemos os mesmos abusos que praticam nossos inimigos, o que nos sobra que valha a pena ser preservado?

Mais próximo ainda. Uma democracia que quer se proteger contra uma corrupção endêmica e onipresente pode ou não recorrer, por exemplo, ao uso indiscriminado de escutas e grampos, negando o direito de seus cidadãos à privacidade (que é uma das razões pelas quais é bom que uma democracia exista)?

Essas questões surgem em contextos específicos, que deveriam ser avaliados caso a caso. Mas há uma questão de fundo, que também vale na nossa vida de cada dia: as "medidas excepcionais" que tomamos para nos preservar podem comprometer e perder nossa diferença, ou seja, aquilo mesmo que se tratava de amparar.

Quantas vezes, para nos protegermos, sacrificamos um princípio que é para nós essencial, algo sem o qual, no fundo, não somos mais aquele "nós" que queríamos proteger?

Quantas vezes os atos com os quais pensamos nos preservar destroem nosso âmago talvez mais do que o perigo contra o qual reagimos?

Os exemplos estão na história de cada um. São as covardias das quais somos capazes em nome de uma necessidade de defesa ou de preservação.

É melhor sermos derrotados, perdermos um emprego, perdermos um amor ou, então, "ganharmos a parada" com um gesto que nos extravia, que nos torna, aos nossos próprios olhos, indignos do amor que queríamos resguardar e conservar ou do poder que queríamos manter ou conquistar?

Aviso urgente. "Nome Próprio", de Murilo Salles, estreou na sexta passada em poucas (mas boas) salas de várias capitais do país. Com a extraordinária interpretação de Leandra Leal, o filme leva para a tela o mundo impetuoso, fragmentado e tocante do blog e dos romances de Clarah Averbuck. É imperdível para quem vive amores inquietos (ou seja, para quase todos) e, óbvio, para quem é atormentado pela paixão de escrever.

Participo assim da campanha para que o filme permaneça em cartaz o (longo) tempo que ele merece.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Amores silenciosos



A gente se declara apaixonado porque está apaixonado ou pelo prazer de se apaixonar?

FAZER E RECEBER declarações de amor é quase sempre prazeroso. O mesmo vale, aliás, para todos os sentimentos: mesmo quando dizemos a alguém, olho no olho, "Eu te odeio", o medo da brutalidade de nossas palavras não exclui uma forma selvagem de prazer.


De fato, há um prazer na própria intensidade dos sentimentos; por isso, desconfio um pouco das palavras com as quais os manifestamos. Tomando o exemplo do amor, nunca sei se a gente se declara apaixonado porque, de fato, ama ou, então, diz que está apaixonado pelo prazer de se apaixonar.


Simplificando, há duas grandes categorias de expressões: constatativas e performativas.
Se digo "Está chovendo", a frase pode ser verdadeira se estamos num dia de chuva ou falsa se faz sol; de qualquer forma, mentindo ou não, é uma frase que descreve, constata um fato que não depende dela.


Se digo "Eu declaro a guerra", minha declaração será legítima se eu for imperador ou será um capricho da imaginação se eu for simples cidadão; de qualquer forma, capricho ou não, é uma frase que não constata, mas produz (ou quer produzir) um fato. Se eu tiver a autoridade necessária, a guerra estará declarada porque eu disse que declarei a guerra. Minha "performance" discursiva é o próprio acontecimento do qual se trata (a declaração de guerra).
Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas ("Digo que amo porque constato que amo") ou performativas ("Aca- bo amando à força de dizer que amo"). E isso se aplica à maioria dos sentimentos.


Recentemente, uma jovem, por quem tenho estima e carinho, confiava-me sua dor pela separação que ela estava vivendo. Ao escutá-la, eu pensava que expressar seus sentimentos devia ser, para ela, um alívio, mas que, de uma certa forma, seria melhor se ela não falasse. Por quê?


Justamente, era como se a falta do namorado (de quem ela tinha se separado por várias e boas razões), a sensação de perda etc. fossem intensificadas por suas palavras, e talvez mais que intensificadas: produzidas.


É uma experiência comum: externamos nossos sentimentos para vivê-los mais intensamente -para encontrar as lágrimas que, sem isso, não jorrariam ou a alegria que talvez, sem isso, fosse menor. Nada contra: sou a favor da intensidade das experiências, mesmo das dolorosas. Mas há dois problemas.


O primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode simplificá-los. Ao declarar meu amor, por exemplo, esqueço conflitos e nuances. No entusiasmo do "te amo", deixo de lado complementos incômodos ("Te amo, assim como amo outras e outros" ou "Te amo, aqui, agora, só sob este céu") e adversativas que atrapalhariam a declaração com o peso do passado ou a urgência de sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.


O segundo problema é que nossa verborragia amorosa atropela o outro. A complexidade de seus sentimentos se perde na simplificação dos nossos, e sua resposta ("Também te amo"), de repente, não vale mais nada ("Eu disse primeiro").


Por isso, no fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso, contido, pudico.


Para contrabalançar os romances e filmes em que o amor triunfa ao ser dito e redito, como um performativo que inventa e força o sentimento, sugiro dois extraordinários romances breves, de Alessandro Baricco, o escritor italiano que estará na Festa Literária Internacional de Parati, na próxima semana: "Seda" e "Sem Sangue" (ambos Companhia das Letras).


Nos dois, a intensidade do amor se impõe com uma extrema economia de palavras ("Sem Sangue") ou sem palavra nenhuma ("Seda"). Nos dois, o silêncio permite que o amor vingue -apesar de ele não poder ser dito ou talvez por isso mesmo.


No caso de "Seda": te amo em silêncio porque te encontro ao limite extremo de uma viagem ao fim do mundo, indissociavelmente ligada a um outro, e nem sei falar tua língua.


Você me ama em silêncio porque sou outro: uma aparição efêmera, uma ave migrante.
No caso de "Sem Sangue": te amo, e não há como falar disso porque te dei e te tirei a vida. E você me ama pelas mesmas razões pelas quais poderia e deveria querer me matar (os leitores entenderão).


Nos dois romances, a ausência da fala amorosa acaba sendo um presente que os amantes se fazem reciprocamente, uma forma extrema (e freqüentemente perdida) de respeito pela complexidade de nossos sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Pichações


O pichador impõe sua assinatura na cidade como as grifes tentam fazê-lo no corpo da gente

NA SEMANA passada, em São Paulo, um estudante de artes visuais da Belas Artes recrutou 40 pichadores para pichar sua escola. Ele declarou que esse seria seu trabalho de conclusão de curso, "uma intervenção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de arte". A "prova" foi interrompida por seguranças e pela polícia.

Nos anos 1950, em Milão, vi minha primeira pichação. Era um resto do passado. O fascismo (sobretudo em seus sobressaltos finais, em 1944) escrevia motos triunfalistas pelos muros da parte da Itália que ainda controlava. No caso, a escrita original dizia "venceremos", assinado pelo "M" de Mussolini. Alguém completara a inicial "M" de maneira que o signatário daquela patética declaração fosse Macário, um comediante famoso. O regime tinha coberto a pichação com uma mão de tinta, mas ela continuava legível.

Duplo escárnio: na pichação e na futilidade da tentativa de apagá-la. Nos anos 1960, pichei a minha parte. Já contei esta história: numa noite de 68, com amigos, cobri a universidade de Milão com o nome de um novo semanal: "Servir ao Povo".

Outros pichadores, em horas mais altas do que as da gente, acrescentaram, embaixo de nossas pichações, um comentário (com o qual, aliás, eu concordava): "Eu não sirvo a ninguém, que o povo se sirva sozinho". Nesses dois casos, as pichações eram políticas: tentavam envolver o leitor no diálogo e, eventualmente, na ação.

As coisas mudaram. Nos anos 1980, no metrô de Nova York, os vagões eram cobertos por dois tipos de "intervenções" (que nem sempre eram fáceis de distinguir). Os grafites quebravam a monotonia urbana inventando e impondo uma revolta estética. As pichações propriamente ditas eram "tags", assinaturas: delimitavam, no espaço público, as zonas de influência e de alcance das gangues -como quando um cachorro demarca seu território depositando um pingo de urina em cada poste.

A resposta da prefeitura foi o trabalho incansável de apagar; o cuidado com a coisa pública não desistiria: "A rua é de todos -se você a assina de noite, apagaremos seu nome de dia, a cada dia".
Claro, a distinção entre grafites e pichações não é estanque. Um pichador, como Jean-Michel Basquiat, tornou-se um grande artista, em grafites e telas, e algumas raras pichações têm uma beleza caligráfica. Além disso, nem todos os pichadores de hoje são apenas "assinatários" compulsivos; alguns se consideram vanguarda artística -devem pensar, por exemplo, que eles assinam os muros como Marcel Duchamp podia assinar um urinol e, pela virtude de sua assinatura, transformá-los em arte.

Mas o gesto de Duchamp era, entre outras coisas, a denúncia irônica e premonitória de uma arte em que a assinatura do artista contaria mais do que o objeto produzido. Ao passo que, a partir dos anos 1980, em sua grande maioria, os "tags" (marcas e assinaturas) parecem participar do espírito da época: eles manifestam uma paixão abstrata de marcar o mundo não por mérito ou por graça, mas a ferro e fogo. No fundo, a vontade de pichar, hoje, é o equivalente "hip", "pop" e violento, no hábitat urbano, do que leva as grifes a querer "tatuar" o corpo da gente.

Alguém dirá que o pichador, numa sociedade de "egos" vaidosos, tenta apenas conquistar um lugar ao sol.

Cá entre nós, não é verdade que, no Brasil de hoje, por mais desigual e injusto que o país seja, o jeito que sobra para deixar sua marca consista em contribuir à feiúra e à brutalidade ambientes pichando a assinatura da gente. Há mais o que fazer, inclusive no campo das intervenções urbanas não autorizadas pelo poder público.

Ao jovem estudante da Belas Artes, aconselho que se debruce sobre as "intervenções" produzidas o tempo todo por artistas nacionais. Uma que acho tocante, entre tantas, é a de Tom Lisboa com suas polaroides invisíveis, em Curitiba (www.sinTOMnizado.com.br/tomlisboa).

Se eu fosse a Belas Artes, constituiria um júri isento de artistas, arquitetos e professores e proporia ao candidato um teste: que ele olhe para dez fotografias da paisagem urbana paulistana e diga não o que ele conhece (isso, provavelmente, ele consideraria intolerável e repressor), nem suas especulações sobre arte ou sociedade, mas, simplesmente, o que ele vê. Se ele souber ver, bom, que sua pichação valha como trabalho conclusivo.

Afinal, ele está terminando um curso de artes visuais.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Como contar a nossa história?


Para poder mudar, o que é melhor: procurar a origem dos problemas dentro ou fora de nós?

UM INDIVÍDUO, aflito por não encontrar ninguém com quem tocar a vida, consulta um psicoterapeuta. O que pode fazer o terapeuta?

Nos anos 70, conheci um colega que abandonara sua prática para fundar uma agência matrimonial.

Ele estava tão preocupado em curar as dores da solidão urbana que distribuía seus horários de maneira a produzir encontros "acidentais", em sua sala de espera, entre pacientes que lhe pareciam "compatíveis". No fim, ele decidiu que tinha mais vocação casamenteira que terapêutica.

Provavelmente, meu colega se importava tanto com a felicidade amorosa dos outros porque, quando criança, ele não tinha sido razão suficiente para que seus pais continuassem se amando. Igual, o fato é que, mudando de profissão, ele conseguiu fazer algo interessante com seu sintoma -o que já é bom.

Seja como for, quando comecei minha formação de terapeuta, ensinaram-me que, antes de mais nada, era preciso que os pacientes "subjectivassem" seu problema. Ou seja, dito em palavras menos bárbaras, para que o trabalho terapêutico fosse eficiente, a gente deveria primeiro fazer com que os pacientes se convencessem de que suas dificuldades eram, ao menos em parte, internas. Portanto, um paciente que se queixasse de não encontrar companhia deveria ser encorajado a "internalizar" seu problema, ou seja, a contar sua história questionando o que haveria de "errado" NELE (falta de disponibilidade, avareza ao se entregar, covardia do desejo etc.). Aí, poderíamos ajudá-lo a mudar. "Internalizar" (e não fundar uma agência matrimonial) era, em suma, a atitude certa.

Outro exemplo, oposto. Um paciente consulta um terapeuta porque ele sofre de "depressão" ou de "déficit de atenção" -assim lhe foi dito pelo profissional que diagnosticou a doença e prescreveu a medicação. O dito paciente fala de "sua doença" como se ela fosse um atributo de seu ser, um traço defeituoso de sua identidade. Com isso, ele mal vai conseguir contar seus percalços: se o problema é tão intimamente ligado ao que ele é, que diferença sua história pode fazer?
Dessa vez, a atitude certa não seria ajudá-lo a procurar as origens de "sua doença" FORA de sua identidade, ou seja, a "externalizar" sua doença?

Nos anos 1990, li "Narrative Means to Therapeutic Ends" (meios narrativos para fins terapêuticos -ed. Norton), de David Epston e Michael White, terapeutas australianos. A obra me fez uma forte impressão, reavivada, nestes dias, pela notícia da morte de Michael White, aos 59 anos, e pela leitura do livro que ele publicou em 2007, "Maps of Narrative Practice" (mapas da prática narrativa - ed. Norton). Detalhe: há outro Michael White, escritor de romances e história da ciência - ele não morreu.

Epston e White eram convencidos de que a possibilidade de mudar nossa vida depende de nossa maneira de contá-la. Também, eles eram leitores cuidadosos de Michel Foucault e pensavam que tudo o que contribui à criação de uma identidade fixa é opressivo e repressivo. Uma estratégia narrativa e terapêutica que eles propunham consistia em evitar que o paciente considerasse sua doença ou seu problema como parte de sua identidade. Eles preferiam sempre levar o paciente a "externalizar", ou seja, a narrar suas dificuldades como se fossem externas, percalços ou ataques vindos de fora.

Aviso: antes de discordar deles, é bom ler os exemplos clínicos em que, em seu último livro, White leva uma criança (e os pais da mesma) a narrar sua batalha contra a Senhora Encopresia, que suja as cuecas e os lençóis, o Senhor Déficit, que impede de estudar, etc., como se fossem bruxas ou elfos do mal.

Então: para mudar, é melhor "externalizar" nossos problemas, com o risco de descuidar das dinâmicas íntimas que nos governam, ou é melhor "internalizá-los", com o risco de hipertrofiar nossa identidade? Não sei, depende.

Mas, sei que, por exemplo, nas eleições presidenciais nos EUA, muito além das questões que serão debatidas (a guerra, a economia, o sistema de saúde), a aposta é esta: será que os eleitores conseguirão pensar sua história (nacional e privada) como sugerem Epston e White? Será que saberão narrá-la como a história de uma comunidade de indivíduos, brancos, negros e latinos, que se chocaram e detestaram em mil ocasiões, mas não por isso concebem seu destino como conseqüência de identidades fixas e opostas?

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O luxo, Dorfles e Saint Laurent



As marcas de luxo prometem um mundo encantado: um devaneio de prazer e poder

BASTA TRANSITAR por saguões de hotéis e salas de espera de aeroportos para descobrir que, pelo mundo afora, proliferam publicações suntuosas (papel glacê e quadricromia), cujo tema é o luxo. Nessas revistas, as matérias, em geral, exaltam a vida prazerosa de quem consome os objetos propostos nos anúncios.


Dana Thomas, em "Deluxe - Como o Luxo Perdeu o Brilho" (Campus), conta como, em poucas décadas, fabricantes artesanais de produtos quase únicos (e por isso caríssimos) se transformaram em marcas que devem boa parte de seu faturamento a acessórios industrializados, acessíveis à classe média. Eis a proposta: você não pode gastar uma fortuna para o terno ou o vestido de uma marca de luxo, mas, por um preço compatível com seus recursos, pode comprar um perfume, um cinto, uma carteira ou uma bolsa da mesma marca.


Ora, para que você deseje esse fragmento de luxo, é necessário que a marca prometa o acesso a um outro mundo, encantado: um devaneio de prazer e poder. Como?


Por exemplo, as marcas concentram seus comércios em ruas ou shoppings especializados (como o Cidade Jardim, que acaba de abrir em São Paulo), que são universos oníricos, separados das cidades reais nas quais vivemos e iguais entre si, de São Paulo a Milão. Ou ainda as marcas financiam revistas que são a imprensa dessa Disneylândia global: mulheres e homens bonitos, palácios, jatinhos e, ao lado desse catálogo do inalcançável, os acessíveis acessórios, que são chamados bens de entrada ou de ingresso.


Falando em ingresso, a modesta compra de um acessório vale mesmo como a aquisição de uma entrada de cinema, com a diferença de que, neste caso, você terá na mão um pedacinho do cenário, alimentando assim sua ilusão de fazer parte da história. Conseqüência: não é raro que alguém passe as férias hospedando-se em espeluncas ou sendo enlatado pelas companhias aéreas, mas volte triunfante com um novo acessório cujo valor teria sido suficiente para que ele vivesse férias verdadeiramente prazerosas.


Em suma, a indústria do luxo se parece, hoje, com o comércio de lembrancinhas na porta dos santuários: a posse da "relíquia" produziria a santidade do peregrino. Eu cismava nesse estado de espí- rito quando, logo numa revista de luxo, "THI" (fevereiro/maio 2008), entre iates e relógios, esbarrei nu- ma entrevista concedida por Gillo Dorfles.


Dorfles, designer, pintor e professor de estética, é o autor de um grande livro, "O Devir das Artes" (Martins Fontes), que li no começo dos anos 1960 e foi minha porta de entrada na arte contemporânea. Ele tem hoje 98 anos, mas não é nada rabugento. Cito a entrevista: "O design é, sem dúvida, uma das bases de nossa vida relacional.

Com o declínio do artesanato, o objeto produzido industrialmente se tornou objeto de uso cotidiano. Do talher ao carro, dos sapatos aos esquis, do móvel ao computador, trata-se sempre de objetos produzidos em série. O design leva em conta o aspecto funcional, mas sempre com um quociente estético. Houve um aumento da esteticização da vida cotidiana pelo design, (...), enquanto em épocas anteriores, o objeto de uso era uma coisa amorfa, sem caraterísticas estéticas... A população é educada artisticamente pelo design, pela arquitetura, pela moda, muito mais do que pela escultura ou pela pintura de vanguarda".


Para Dorfles, o cuidado com a dimensão estética do mundo melhora nossa relação com as coisas, com os outros e com nós mesmos.


É fácil aplicar essa consideração, por exemplo, à obra de Yves Saint Laurent, que morreu nestes dias: sua industrialização do luxo (da alta costura ao prêt-à-porter) espalhou uma nova estética feminina que certamente contribuiu a transformar o lugar das mulheres no mundo.


Outro exemplo: quando escolho um espremedor de laranjas, meu cuidado com a forma e as cores (e não apenas com a funcionalidade) humaniza minha relação com quem, a cada manhã, espreme minha laranja.


Concluo com Dorfles. Os fragmentos de ilusão vendidos pela indústria do luxo satisfazem a incerteza narcisista de emergentes inseguros, que, não podendo comprar seu lote no "paraíso", ostentam a bugiganga promocional do empreendimento. Mas talvez, na popularização dos apetrechos do luxo, também se expresse o desejo de um mundo em que a elegância seria uma maneira gentil e mais humana de ser. Tomara que Dorfles tenha razão.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Europa (ou Itália)


Os falsos apetrechos de luxo são o brioche (ruim) que Maria Antonieta propunha ao povo

ESTOU PASSANDO alguns dias de férias na Itália. Domingo passado, de manhã, em Veneza, sentei-me à mesa de um bar ao lado da Ponte della Veneta Marina, na Riva dei Biasi. É um dos meus lugares preferidos, pela vista, que vai de San Giorgio até o campanário de San Marco, com, no meio, a igreja della Salute.

Infelizmente, ao lado do bar, há uma sorveteria que coloca na calçada um imenso cone de sorvete de gesso (1,70 m). Visto da minha mesinha, o falso cone erguia suas bolas coloridas bem no meio, entre San Giorgio e San Marco.

Dois barcos, insensatos e idênticos, atracaram, lado a lado, na Riva dei Biasi. Deviam ser, originalmente, embarcações parecidas com os "vaporettos" que Veneza usa para o transporte público. Mas eles tinham sido camuflados de maneira a se parecer com navios piratas assim como eles seriam construídos às pressas para o carro alegórico de uma escola de samba de segunda divisão.

Ambos levavam, em letras góticas, o mesmo nome americano, "Jolly Roger". Os passageiros desceram, aparentemente felizes por ter dado sua volta por Veneza num navio "de época".
Agora minha visão incluía, entre San Giorgio e San Marco, além do cone de sorvete, dois navios piratas. Ao ver uma fotografia desse panorama, qualquer amigo apostaria que eu tinha passado minhas férias na Disneylândia de Orlando.

Numerosos turistas paravam para se imortalizar diante dos navios piratas. Talvez achassem a cena interessante por ela condensar um traço do espírito pós-moderno: o pior fazer de conta é mais divertido do que qualquer meditação sobre a herança do passado. Ou, talvez, sem achar nada, simplesmente eles participassem desse espírito.

Logo chegou um grupo de imigrantes africanos. Sentaram-se no chão para se dedicar à tarefa de preencher de papel jornal as bolsas falsas de Gucci, Prada, Louis Vuitton, Hermes etc. que eles ofereceriam aos turistas. Do alto da última ponte que os separava da maior concentração de turistas, um trio de "carabinieri" os observava à distância. É um jogo que se repete em todas as cidades italianas: a polícia se aproxima e os imigrantes vendedores se afastam, respeitosamente.

Todos sabem que é proibido (tanto imigrar sem documentos quanto vender bolsas falsas), mas todos se rendem ao inelutável: 1) a África subsaariana, que não se sabe mais se é um continente ou uma balsa à deriva, só pode exportar suas massas de deserdados, 2) numa sociedade que cultua os signos aparentes de status, os falsos são o brioche (industrial e ruim) que Maria Antonieta queria oferecer ao povo que se queixava da falta de pão.

Ao lado dos navios piratas, estava atracado outro barco, vazio, o Moby Dick 2. Seus passageiros chegaram: eram pára-quedistas e veteranos da divisão Folgore, que celebrava, naquele dia, sua festa anual. Os mais jovens vestiam o uniforme, os mais idosos, que não caberiam mais na farda, só a boina vermelha.

A Folgore é um corpo de elite que escreveu suas páginas de glória, como se diz, durante a Segunda Guerra e ainda hoje combate no Afeganistão, além de cumprir missão de paz no Líbano.

Um veterano, no seu segundo aperitivo da manhã, pediu licença para a mulher que me acompanhava e cantarolou para nós uma música da divisão, que traduzo respeitando a rima: "E, se descermos num campo de bicicletas, todas as mulheres nos darão suas....".

Perto da Riva dei Biasi, quase em frente à minha casa de Veneza, há um escritório da Anpi, a associação nacional dos "partigiani" antifascistas italianos, quase sempre meio deserto. Os que tinham 20 anos em 1943 começam a minguar. Mas não é só isso: nas últimas eleições, a chegada de um presidente da Câmara que já foi do MSI (partido herdeiro do fascismo italiano) manifestou que o passado da luta antifascista não é mais o divisor de águas da política italiana ou européia.

Nestes dias, é meu aniversário -época de balanços. E o balanço saiu assim: africanos vendedores de falsos apetrechos do jet-set, Disneylândia de piratas e sorvete, soldados procurando glória e "b...etas" em causas incertas, com, no fundo, o esquecimento progressivo da história que já deu algum sentido coletivo à vida (desde os restos da grandeza veneziana até o escritório hoje vazio da Anpi).

Um americano, que estava sentado ao meu lado no bar, observou meu ar estupefato e me disse, ao levantar-se: "Cheer up", alegre-se. Ele tem razão.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Sábado no Sesc


O fotojornalismo nos força a descobrir uma densidade do instante que não queremos ver

NO SÁBADO passado, estive no Sesc Pompéia, em São Paulo, para ver a exposição de fotojornalismo da World Press Photo (até 15 de junho). A cada ano, essa organização atribui prêmios às melhores imagens entre as que são propostas por profissionais do mundo inteiro. Se você está longe de São Paulo, entre no site www.worldpressphoto.nl e clique em "Winners gallery 2008" (óbvio, a tela do computador não vale as imagens impressas).

A foto que ganhou o concurso deste ano é de Tim Hetherington, para "Vanity Fair". Representa um soldado dos Estados Unidos, numa trincheira, no Afeganistão. Ele retirou seu capacete e leva a mão direita para a testa, num gesto mais de exaustão que de desespero. A mão levantada tapa seu olho direito. O soldado não está nem ferido nem morto; não há sangue, apenas desolação. A cena poderia resumir qualquer guerra. Um olho atônito se abre no meio de um fundo monocrômico, em que se misturam a terra, o uniforme e os panos de camuflagem pendurados atrás do soldado: é a cor de uma angústia surda e talvez da morte.

Será que Hetherington, na hora de fotografar, viu o que eu enxergo no resultado? A resposta não é simples. O processo fotográfico (do momento em que alguém enquadra e focaliza até o trabalho de Photoshop) inventa ou aumenta a riqueza narrativa do momento. Mas, antes disso, o olhar do fotógrafo deve ter reconhecido a qualidade especial do instante. Entre os livros que ensinam a fotografar, gosto, por exemplo, do velho "Guia Completo de Fotografia", de J. Hedgecoe (Martins Fontes), e da "Introdução à Fotografia Digital", de Tom Ang (DK Civilização).
Essas obras nos explicam como conferir a máxima densidade ao instante fotografado: resta que, para fotografar, é preciso, primeiro, saber e, sobretudo, querer enxergar a densidade do instante.

Muitos anos atrás, no meio de uma viagem, não consegui fotografar um momento de extrema miséria e dor (em Varanasi, Índia, um mendigo queimava sua própria ferida aberta com um pires de ferro que ele esquentava no fogo). Aquela incapacidade fez com que abandonasse meus planos de ser fotógrafo. Na época, consolei-me pensando que não conseguira fotografar pela vergonha de eu me tornar assim "apenas" um espectador da miséria ou, então, por eu não querer interpor a câmera entre a dor do mendigo e minha compaixão.

Visitando a exposição do Sesc, pensei outra coisa: o fotojornalismo descobre e revela intensidades que nem sempre queremos enxergar. Talvez eu tenha desistido de fotografar não para poder me aproximar e ver melhor, mas, ao contrário, para não ver ou para ver menos.
No mesmo sentido, quando somos chocados pelas imagens nas primeiras páginas dos jornais, é porque nos indignamos contra "o sensacionalismo", mas talvez seja também porque resistimos contra o poder da fotografia, sua capacidade de nos fazer enxergar, no que contemplamos, algo que talvez preferíssemos não ver.

Saído da exposição, sentei ao sol tímido do outono. Logo, visitei outra mostra, "Vida Louca, Vida Intensa, Uma Viagem pela Contracultura" (são cartazes, capas de discos e filmes dos anos 60 ou sobre aquela época), e me diverti com o cardápio de livros (sobre o mesmo tema) que podem ser folheados na mesa do café.

No galpão central do Sesc, havia pessoas lendo revistas, outras jogando xadrez e dois homens "sonecando" numa poltrona. No galpão lateral, o ateliê de gravura estava em plena atividade, assim como o de arte e costura. Circulavam pelo conjunto famílias, crianças e idosos. Uma boa fotografia diria melhor, sem dúvida, a sensação de paz e de civilidade que estava no ar.

Não sei o que será do projeto de lei que planeja retirar uma boa parte da verba do Sesc para usá-la para cursos técnicos profissionalizantes. Claro, receio que o dinheiro suma no triângulo das Bermudas do Planalto Central. E estaria a fim de levantar o estandarte da cultura contra as necessidades da produtividade e do emprego. Mas seria cair numa armadilha. Seria aceitar a possibilidade de uma alternativa entre as exigências da racionalidade e as razões concretas de nossa vida: qualquer troca, nesse caso, é insensata, como se decidíssemos que, para produzir melhor, seria preciso viver pior. Então, produzir para quê?

Ora, aquela tarde de sábado no Sesc foi um pequeno exemplo do que é viver bem. E, certamente, não só para mim.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Projeto de felicidade leva à insatisfação, afirma Contardo

Sabatina / Contardo Calligaris

Em sabatina, o psicanalista , escritor e colunista da Folha diferencia "perdedores' e "infelizes' e comenta depressão em jovens

Projeto de felicidade leva à insatisfação, afirma Contardo

O PROJETO DE SERMOS felizes é profundamente errado, concebido para nos manter na insatisfação, requisito da sociedade de consumo. A afirmação é do psicanalista Contardo Calligaris, 59, colunista da Folha, sabatinado ontem pela manhã num Teatro Folha lotado, em SP. Entrevistado pelos jornalistas da Folha Marcos Augusto Gonçalves, Cleusa Turra, Marcos Flamínio Peres e Ivan Finotti, Contardo falou de remédios ("Lexotan acho legal"), relação de pais e filhos ("os adultos deveriam parar de pedir para que jovens sejam felizes") e o valor da solidão ("Não sou gregário. Coletividade grande, tenho alergia").

FELICIDADE
O verdadeiro perdedor é aquele que, na última hora, olhando para trás, vai ter a impressão de que desperdiçou a sua corrida. O que ele acumulou, tudo isso me parece bastante acessório. Para mim, o perdedor é aquele que não conseguiu viver sua vida com toda a intensidade que ela merece. O que não tem nada a ver com felicidade. O projeto de sermos felizes é profundamente errado, concebido para nos manter na insatisfação, o que é absolutamente necessário na sociedade de consumo. O ganhador é quem teve uma alta qualidade de experiência, seja qual for, que tenha sido intensamente. A felicidade, eu sou contra. Sexo não é felicidade, é alegria.

REMÉDIO X ANÁLISE
Lexotan eu acho legal. Primeiro, porque eu não estou nada convencido de que haja qualquer oposição de fundo real entre a psiquiatria, ou a neuroquímica, e a psicanálise, ou as terapias pela palavra de modo geral. As pesquisas que existem dizem não somente isso mas que, enquanto intervenções, elas se fortalecem. Usar antidepressivos ajuda as pessoas diagnosticadas com depressão em 36% dos casos. A psicoterapia pela palavra também ajuda as pessoas em 33%, 34% dos casos. As duas coisas juntas, por uma razão misteriosa, se fortalecem e ajudam 64%, 65% das pessoas. Segundo, existe uma questão de fundo: sou materialista. Acredito que o afeto, a emoção ou o pensamento tenha ou deva ter algum dia uma descrição neuroquímica absolutamente apropriada.

ABUSO DE REMÉDIOS
Não tenho nada contra o uso de medicamentos, mas tenho bastante contra o uso indiscriminado de psicotrópicos, sobretudo no caso da depressão. Acho que os antidepressivos têm de ser prescritos num caso de depressão, e não simplesmente porque o cara não está feliz. Há uma certa tendência nessa direção. E pior ainda no caso da adolescência e da infância, em que o uso de psicotrópicos está se tornando um caso muito sério. Porque os pais não agüentam nem um pouco a infelicidade dos filhos, seja qual for a idade deles. Existe uma intervenção neuroquímica cada vez maior em adolescentes. Na infância e na adolescência, a gente vive momentos alegres e tristes. E uma das razões pelas quais a gente faz filhos é para que eles encenem uma felicidade que não temos. Se o cara não sorri, pílula. Sou contra isso.

ADOLESCENTE
A adolescência de fato, como uma idade separada da vida, é recente, pós-Segunda Guerra, quando os adultos começam a criar uma fase da vida específica à qual atribuem algumas características como rebeldia, insubordinação. O que sobrou de desejo de sair daquele cenário de "american beauty" [beleza americana], de desejo de aventura, foi pendurado nas costas dos adolescentes. Eles é que se encarregariam da nossa rebeldia, nossa vontade de sermos outros, de realizar sonhos que não conseguimos nem confessar a nós mesmos. Os adolescentes se encarregaram disso muito bem, até porque são excelentes intérpretes do desejo dos adultos.

DEPRESSÃO EM JOVENS
A vida deles [crianças e adolescentes] não é engraçada. Não acho uma idade legal: essa é uma visão idealizada dos adultos. A infância e a adolescência são épocas muito problemáticas da vida. Na infância, estamos longe de corresponder fisicamente e simbolicamente ao que a gente deseja; a palavra da gente é atropelada. Na adolescência, é pior ainda. São épocas de extremo conflito interno, definição identitária, descoberta de fantasias e orientação sexuais. Eu acho que os adultos deveriam parar de pedir para que os jovens sejam felizes, porque isso só serve à vontade que eles têm de ver nas crianças um espetáculo de felicidade.

SEXO NA VELHICE
Há um imaginário social de que a pessoa a partir de certa idade deveria estar acima disso, dessas "baixarias". Durante décadas, a idéia era de que a menopausa era fim não da fecundidade, e sim da feminilidade. Eu fui treinado muito bem. Tive uma avó que adorava. E que, aos 70, 75 anos, ainda era cantada na rua. Uma vez, ela estava sentada no cinema comigo, e vi que chegou um cara e sentou ao lado dela. Achei estranho porque tinha outros lugares. De repente, ela levanta xingando o cara, me pega pela mão e troca de fileira. Ele havia colocado a mão na minha avó, o que demonstra que aos 75 anos rola. E que ela era muito bonita.

SÓ OU ACOMPANHADO?
Não me coloquei essa pergunta de forma radical, mas, de alguma forma, é uma questão que está ali o tempo inteiro. A gente tem sempre momentos em que precisa de uma certa solidão, de recolhimento interior. Sempre vivi com alguém, mas não sou gregário. Coletividade grande, tenho uma alergia séria. Situação gregária é qualquer situação em que o grupo me manda fazer coisas que não são exatamente as que quero fazer. Quando o grupo ameaça a minha individualidade.

MAIO DE 68
Eu militava na esquerda italiana. Tinha mais contato com a contracultura norte-americana do que com a cultura política européia, porque estava casado com uma norte-americana e ia ao país com freqüência. O que mais importava era a revolução na maneira de pensar e de se relacionar, era a utopia concreta, que estava na maneira de conviver de quem militava em 68. E essa utopia eu acho que vingou. Foi a única verdadeira revolução do século 20, ou a única de sucesso.

20 ANOS DE BRASIL
Vejo mudanças concretas enormes no Brasil de 1986 até hoje. Cheguei a um país onde aconteciam coisas completamente inéditas para mim. As pessoas, por exemplo, compravam linhas telefônicas para investimento. Era um negócio estranhíssimo. Mas nunca achei o país provinciano. Nem naquela época. Especialmente SP, que é uma das cidades menos provincianas do mundo. Muito menos do que Paris e, num certo sentido, menos provinciana do que Nova York. E certamente menos do que uma cidade italiana.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Solidariedade a Ronaldo e Hemingway


É difícil ser homem, sobretudo quando a virilidade é imposta e carregada como bandeira


A ILUSTRAÇÃO da coluna de Ancelmo Gois, no "Globo" da segunda-feira passada, era a fotografia de uma "faixa de solidariedade" a Ronaldo, pendurada perto do túnel Zuzu Angel, no pé da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. A faixa dizia assim: "Ronaldo, a Rocinha acredita na sua inocência, você sempre será nosso Fenômeno".


De que inocência se trata? Afinal, Ronaldo não é acusado de crime nenhum. Segundo a versão inicial dos travestis com quem ele foi para um motel da Barra, ele não teria aceito pagar o combinado e teria encomendado droga para apimentar o encontro. Mas duvido que os autores da faixa pensassem nessas eventuais "culpas" do jogador.


Igual, mesmo se uma parte qualquer da dita versão fosse verídica, por que Ronaldo deixaria de ser o Fenômeno? Isso não deveria depender de sua atuação no campo? O jeito de entender a inscrição do túnel Zuzu Angel parece ser o seguinte: ao levar um travesti para um motel, o jogador teria comprometido sua própria imagem ideal aos olhos dos autores da faixa.


Para eles, o Fenômeno não é só jogador de futebol, ele é também o macho ideal; a fim de continuar acreditando nesse ideal, eles precisam proclamar a "inocência" de Ronaldo, ou seja, por exemplo, acreditar que, se o jogador escolheu um travesti, foi por engano.


Acabo de ler "Strange Tribe" (estranha tribo -uma tradução em português seria bem-vinda), de John Hemingway, neto do escritor Ernest Hemingway. O livro está sendo transformado numa ópera, com libreto do próprio autor e direção de Gerald Thomas (mais informações em www.geraldthomas.blog.uol.com.br).


John Hemingway conta como ele conseguiu se salvar da espécie de maldição que assolou a linhagem dos Hemingway: suicídios (a começar pelo pai de Ernest e pelo próprio Ernest) e psicose maníaco-depressiva. Em Gregory Hemingway, pai de John e filho de Ernest, as oscilações entre depressões profundas e crises maníacas eram complicadas por uma constante incerteza da identidade de gênero.


Gregory se sentia melhor quando se vestia de mulher. Essa fascinação pela identidade feminina não implicava um desejo homossexual. Gregory não parava de se apaixonar por mulheres e de cultuar os traços mais óbvios da masculinidade americana (assim como ela havia sido inventada, aliás, por Ernest, seu pai). Gregory amava caçar búfalos e elefantes na África e viver na natureza selvagem do Estado de Montana (onde, ao mesmo tempo, vestido de mulher, aventurava-se pelos bares).


Já na terceira idade, Gregory quis se tornar mulher. Passou um tempo com o implante de um seio só; aliás, casou-se, pela quarta vez, em 1992, durante essa fase, já transformado parcialmente em mulher (imagem exemplar de uma divisão impossível de ser resolvida).
Em 1995, Gregory completou as cirurgias necessárias para mudar de sexo. Não por isso ele terminou seu casamento.


Ao longo do livro, John Hemingway descobre que a estranha divisão de seu pai já estava em Ernest, o escritor, seu avô. Ernest aparece vestido de menina em fotos de sua infância, e há, na obra do grande escritor, passagens tocantes em que um homem e uma mulher que se amam são tentados por uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços de sua amada.


Ernest Hemingway fez de sua vida uma espécie de protótipo de hipervirilidade (boxeador, voluntário na Primeira Guerra, correspondente na Guerra da Espanha e na Segunda Guerra Mundial, aficionado por touradas, caçador, bebedor, pescador de alto-mar, sempre apaixonado por mais uma mulher).


Talvez seu show de virilidade fosse uma maneira de conter a fascinação pela feminilidade. Ou talvez sua androginia íntima fosse uma maneira de fugir da mascarada masculina que havia erigido em regra de vida e em ideal literário.


Seja como for, o livro de John Hemingway é uma leitura imperdível para quem queira entender um pouco a complexidade da identidade de gênero. Mas, antes disso, é um extraordinário documento sobre a dificuldade de ser homem, sobretudo quando a identidade masculina se torna uma bandeira ou, como no caso de Gregory, é transmitida e imposta como uma bandeira.
A história dos Hemingway não tem nada a ver com o episódio de Ronaldo. Mas "ser Hemingway" ou ser "um Hemingway" deve ser tão difícil quanto ser "o Fenômeno" da faixa solidária do túnel Zuzu Angel.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Guias para aventureiros


Se toda viagem é uma aventura, o melhor guia de viagem deveria ser escrito por nós mesmos


TENHO UMA relação quase erótica com os instrumentos dos quais me sirvo para escrever. Festejo, portanto, a chegada ao Brasil dos cadernos e blocos da legendária marca Moleskine.

A Moleskine começou a publicar também "guias" das principais cidades do mundo. São cadernos quase normais, cujas primeiras páginas apresentam mapas detalhados da cidade e uma lista das ruas. Depois disso, só há espaço em branco para anotações: "Eis o mapa, percorra-o, viva sua aventura e escreva seu próprio guia". Quer um bom restaurante? Nada de Michelin, converse com os nativos.

É minha viagem ideal: a gente lê, bem antes de viajar, guias e livros de história, de arte e de ficção (romances ambientados na cidade que será visitada). Se a viagem for de última hora, resta estudar o guia turístico no hotel, à noite, e marcar no mapa os percursos do dia seguinte. Seja como for, é bom sair pelas ruas levando consigo apenas um caderno, para escrever o que se tornará, depois da viagem, o "nosso" guia.

Minha descoberta de Veneza, por exemplo, aconteceu quase dessa forma. Li, antes de viajar, "The Stones of Venice", de John Ruskin ("As Pedras de Veneza", ed. Martins Fontes, esgotado, infelizmente).

Eu implicava com o amor exclusivo de Ruskin pelo gótico e com sua antipatia pelo estilo clássico, mas a inteligência e a sensibilidade do texto eram contagiantes. Ruskin sugere que se chegue a Veneza pelo mar, vindo de Chioggia, e no fim do dia, para ver a República surgir das águas na luz do pôr-do-sol. Fui de trem (melhor do que de avião, de qualquer forma); quando, mais tarde, consegui repetir a chegada de Ruskin, lamentei não ter escutado sua sugestão.
Naquela primeira estada, apenas errei pela cidade com a lembrança da leitura de Ruskin e um caderno que, de café em café, de encontro em encontro, enchi de notas.

As "pedras" não são a única razão de viajar. Ultimamente, chegaram em massa os guias da revista "Wallpaper" (ed. Phaidon). São livros de bolso, com, no fim, uma dezena de páginas brancas para anotações. O que precede são fotografias com um parágrafo de descrição. A ausência de qualquer mapa supõe um viajante que nem queira se orientar, apenas preocupado em visitar (ou melhor, em ter visitado) os lugares memoráveis ("eu estive lá"). Os ditos "lugares memoráveis" são os hotéis, os restaurantes e as lojas mais luxuosas, spas, bares na moda e alguns marcos que, às vezes, parecem ter sido escolhidos por um arquiteto enlouquecido ou por alguém que nunca colocou os pés na cidade em questão. A sensação é que são guias para não se esquecer dos lugares que vai ser obrigatório mencionar numa conversa entre emergentes na volta das férias.

Fora a antipatia pelas fraquezas narcisistas das classes emergentes, nenhuma censura: uma viagem não tem que ser obrigatoriamente um banho na "alta cultura". Mas o que não entendo é que a gente viaje para bater ponto nos lugares, artísticos ou mundanos, cuja menção futura atestará que estivemos lá. Ou seja, não entendo viagem sem aventura.

Sem chegar à ousada proposta das páginas brancas dos Moleskine, os melhores guias turísticos, hoje, tentam interessar tanto o viajante mundano quanto o viajante "artístico" (que podem ser a mesma pessoa) e, sobretudo, tentam indicar ao leitor lugares fora dos caminhos mais trilhados. Ou seja, os guias se preocupam em nos dar ao menos o sentimento de uma aventura possível. Claro, não basta: a aventura não depende apenas do encontro com o inusitado, ela é, antes de mais nada, uma disposição do espírito.

Uma surpresa: a Louis Vuitton pode ter-se tornado uma marca para quem busca sinais que confirmem seu status, mas, aparentemente, não se esqueceu de sua origem, não se esqueceu do que significa viajar. A marca acaba de publicar uma série de guias de cidades, em inglês e francês (Nova York, mais uma caixa com outras cidades do mundo). O guia de Nova York é o melhor que eu conheça -pela sóbria mistura de "dicas" tradicionais (galerias, museus etc.) e "dicas" mundanas (hotéis, restaurantes, bares, lojas, de luxo e de pechincha), pela menção de lugares nada óbvios (do Old Town Bar aos brechós) e, enfim, pela página dedicada às leituras literárias e de ficção que são a melhor "introdução" à cidade. Só falta uma lista de filmes (ou será que há uma, e eu não vi?).

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Narcisismo de homens e mulheres


O homem vive um narcisismo valentão; a mulher questiona: "Será que gostam de mim?"

NA COLUNA da quinta retrasada, "O Trauma do Amor", escrevi o seguinte: "Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem".

Acrescentei que deixaria para outra vez a explicação dessa especificidade feminina. Respondendo aos pedidos de vários leitores e leitoras, aqui vai UMA explicação.

Muitas culturas (não só a nossa) preferem que, no início do jogo amoroso, os homens façam o primeiro passo. Ultimamente, o recato deixou de ser uma qualidade feminina essencial: uma mulher que se arrisque a ser a primeira a mostrar seu interesse não é mais uma atrevida (ou pior). Mas o hábito permanece: "Que os homens se manifestem, e as mulheres aceitem ou rejeitem".

Há, nesse costume antigo, uma certa sabedoria, pois, para os homens, em geral, é mais fácil lidar com uma negativa. Raramente a recusa os leva a uma dúvida radical sobre eles mesmos. Muito antes de perguntar-se "Será que não sou aquela maravilha toda que minha mãe e minhas tias diziam que eu era (e, se não disseram, deveriam ter dito)?", os homens conseguem inculpar detalhes contingentes ("Hoje, excepcionalmente, o desodorante me largou") e, sobretudo, acusam a própria mulher que os recusou: se ela não quis, é porque é "uma puta". Paradoxal, não é?

Pois é, mas o paradoxo é revelador. Para o homem, como era de esperar, a única que não seja "puta" é a mãe, que, supostamente, gostava e gosta só dele.

As outras, que não se extasiam diante de seus vagidos, são "putas" porque podem lhe preferir terceiros quaisquer. Por sorte (de todos nós), essa "segurança" narcisista do homem tem uma pequena falha: a própria mãe, por mais que se extasiasse com ele, fechava-se no quarto com o pai, de vez em quando (para o menino, aliás, não é um bom negócio que a mãe se esqueça de ser mulher).

Seja como for, o narcisismo masculino não se deixa abalar por uma recusa. A convicção de ter sido objeto exclusivo e insubstituível do amor materno é um recurso (quase) seguro: "Pouco importa que as outras não gostem de mim, pois a única que importa gostava e gosta".

Para a maioria das mulheres, acontece o contrário. Uma recusa e uma negativa valem como uma espécie de confirmação do que era suspeitado por elas desde sempre: "Não agrado e nunca fui verdadeiramente amada".

Hoje, depois de décadas de um lento processo de mudança cultural em que o feminino foi valorizado, afirma-se que o amor de mãe é o mesmo para menino ou menina. Mas a "Escolha de Sofia" (o romance, note-se, foi escrito por um homem) seria, provavelmente, a mesma: acuada, tendo que escolher entre o filho e a filha, Sofia ainda salvaria o menino.

O sentimento de que um filho satisfaz a mãe mais do que uma filha continua na cultura, solidamente.

Quer seja pela ilusão de que o filho homem não sumirá pelo mundo afora, mas, por eternizar o sobrenome, ele ficará na tribo (perto da mãe).

Quer seja pela sensação de completude que talvez acompanhe a constatação materna de ter conseguido dar à luz um ser tão diferente dela, um ser do outro sexo.

A conseqüência dessa disparidade do amor materno é a tragicomédia cotidiana, em que uma mulher, mesmo em seu melhor dia, precisa perguntar a seu companheiro se ele a acha bonita. E um homem, deformado por churrascos e cerveja, julga-se irresistível.

Em suma, homens e mulheres, em geral, padecem de narcisismos diferentes: o homem é blindado por uma segurança eficiente e um pouco obtusa, e a mulher é constantemente exposta ao risco de um dúvida radical sobre o amor que ela recebe.

O discurso comum pensa que a mulher, mais cuidadosa com sua aparência, seja "mais narcisista" do que o homem.

Não é nada disso: o homem vive um narcisismo valentão, enquanto a mulher não pára de questionar: "Será que gostam de mim?". Corolário: a mulher, por isso mesmo, é melhor psicóloga do que o homem -mais perspicaz na leitura das palavras e dos gestos dos outros.

Conclusão: a rejeição, para uma mulher, é uma experiência que coloca em perigo sua precária certeza de ser aceita no mundo, é uma experiência que abala seu ser, que a fere além da conta. Inclusive além da conta possível de perdas e danos numa separação.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

A turba do "pega e lincha"


Querem linchar para esquecer que ontem voltaram bêbados e não sabem em quem bateram

NA ÚLTIMA sexta-feira, passei duas horas em frente à televisão. Não adiantava zapear: quase todos os canais estavam, ao vivo, diante da delegacia do Carandiru, enquanto o pai da pequena Isabella estava sendo interrogado.

O pano de fundo era uma turba de 200 ou 300 pessoas. Permaneceriam lá, noite adentro, na esperança de jogar uma pedra nos indiciados ou de gritar "assassinos" quando eles aparecessem, pedindo "justiça" e linchamento.

Mais cedo, outros sitiaram a moradia do avô de Isabella, onde estavam o pai e a madrasta da menina. Manifestavam sua raiva a gritos e chutes, a ponto de ser necessário garantir a segurança da casa. Vindos do bairro ou de longe (horas de estrada, para alguns), interrompendo o trabalho ou o descanso, deixando a família, os amigos ou, talvez, a solidão -quem eram? Por que estavam ali? A qual necessidade interna obedeciam sua presença e a truculência de suas vozes?

Os repórteres de televisão sabem que os membros dessas estranhas turbas respondem à câmera de televisão como se fossem atores. Quando nenhum canal está transmitindo, ficam tranqüilos, descansam a voz, o corpo e a alma. Na hora em que, numa câmera, acende-se a luz da gravação, eles pegam fogo.

Há os que querem ser vistos por parentes e amigos do bar, e fazem sinais ou erguem cartazes. Mas, em sua maioria, os membros da turba se animam na hora do "ao vivo" como se fossem "extras", pagos por uma produção de cinema. Qual é o script?

Eles realizam uma cena da qual eles supõem que seja o que nós, em casa, estamos querendo ver. Parecem se sentir investidos na função de carpideiras oficiais: quando a gente olha, eles devem dar evasão às emoções (raiva, desespero, ódio) que nós, mais comedidos, nas salas e nos botecos do país, reprimiríamos comportadamente.

Pelo que sinto e pelo que ouço ao redor de mim, eles estão errados. O espetáculo que eles nos oferecem inspira um horror que rivaliza com o que é produzido pela morte de Isabella.

Resta que eles supõem nossa cumplicidade, contam com ela. Gritam seu ódio na nossa frente para que, todos juntos, constituamos um grande sujeito coletivo que eles representariam: "nós", que não matamos Isabella; "nós", que amamos e respeitamos as crianças -em suma: "nós", que somos diferentes dos assassinos; "nós", que, portanto, vamos linchar os "culpados".

Em parte, a irritação que sinto ao contemplar a turma do "pega e lincha" tem a ver com isto: eles se agitam para me levar na dança com eles, e eu não quero ir.

As turbas servem sempre para a mesma coisa. Os americanos de pequena classe média que, no Sul dos Estados Unidos, no século 19 e no começo do século 20, saíam para linchar negros procuravam só uma certeza: a de eles mesmos não serem negros, ou seja, a certeza de sua diferença social.

O mesmo vale para os alemães que saíram para saquear os comércios dos judeus na Noite de Cristal, ou para os russos ou poloneses que faziam isso pela Europa Oriental afora, cada vez que desse: queriam sobretudo afirmar sua diferença.

Regra sem exceções conhecidas: a vontade exasperada de afirmar sua diferença é própria de quem se sente ameaçado pela similaridade do outro. No caso, os membros da turba gritam sua indignação porque precisam muito proclamar que aquilo não é com eles. Querem linchar porque é o melhor jeito de esquecer que ontem sacudiram seu bebê para que parasse de chorar, até que ele ficou branco. Ou que, na outra noite, voltaram bêbados para casa e não se lembram em quem bateram e quanto.

Nos primeiros cinco dias depois do assassinato de Isabella, um adolescente morreu pela quebra de um toboágua, uma criança de quatro anos foi esmagada por um poste derrubado por um ônibus, uma menina pulou do quarto andar apavorada pelo pai bêbado, um menino de nove anos foi queimado com um ferro de marcar boi. Sem contar as crianças que morreram de dengue. Se não bastar, leia a coluna de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo passado.

A turba do "pega e lincha" representa, sim, alguma coisa que está em todos nós, mas que não é um anseio de justiça. A própria necessidade enlouquecida de se diferenciar dos assassinos presumidos aponta essa turma como representante legítima da brutalidade com a qual, apesar de estatutos e leis, as crianças podem ser e continuam sendo vítimas dos adultos.

domingo, 20 de abril de 2008

Campanhas para eleitores reprimidos e narcisistas

As campanhas eleitorais são sempre um pouco humilhantes.

O mais freqüente é que elas apostem na idéia de que nós, eleitores, seríamos burros e mal-informados. Mas podem também apostar na idéia de que seríamos reprimidos ou fundamentalmente narcisistas. Antes de ilustrar esses casos com exemplos, uma observação.
No dia em que um candidato passar a nos tratar como gente grande, acredito que ganhará votos, seja qual for seu plano.

Sonho que alguém apareça na tela e diga: "Salvo exceções que explicarei, meus concorrentes são pessoas tão qualificadas e bem-intencionadas quanto eu. Temos em comum a vontade de fazer o que nos parece melhor; é claro, dentro do possível, que sempre é menor que o necessário. Somos todos, é óbvio, animados por uma ambição descomunal; sem isso, não estaríamos aqui. Mas nosso gosto pelo poder é corrigido pela vontade de servir o interesse público.

Agora, temos diferenças, sobre as quais, você, eleitor, deve se pronunciar.

É raro que as diferenças sejam de fundo (ninguém, hoje, promove projetos revolucionários). Quase sempre, são questões de prioridade (maneiras divergentes de decidir o que é mais urgente) ou de meios (concepções conflitantes de como chegar a resultados parecidos).
Pode ser que a propaganda eleitoral de meus sonhos nos mate de tédio, à força de argumentações sensatas. Mas ela teria suas vantagens.

Primeiro caso. Recentemente, a campanha de José Serra (candidato que tenho em grande estima) achou bom publicar em seu site na internet uma charge contra Marta Suplicy, intitulada: "Dona Marta e seus dois maridos". A idéia era levantar nossa indignação porque Marta visitou umas obras em companhia de seu ex-marido, o senador Eduardo Suplicy, o qual apóia a campanha de sua ex-mulher.

O texto queria que exclamássemos: "Hã! Marta quer a presença de Eduardo porque ele é muito amado em São Paulo!" (pois é, deveria fazer o quê? Convidar Fernandinho Beira-Mar? Não é normal que um candidato peça o apoio de quem tem a confiança dos eleitores?). Subentendido: "Se ela queria o apoio de Eduardo Suplicy, por que não continuou casada com ele, eh?" (quer dizer o quê? Será que cada candidato deve casar ou, quem sabe, passar noites de paixão com todas as figuras públicas que compartilham suas idéias e apóiam sua campanha? É esta a idéia: nada de palanque sem casamento ou coisa parecida?).

O fundo da mensagem proposta é, obviamente, que a Marta se saiu excessivamente bem; como diz o ditado, ela conseguiu ficar com o leite e com o queijo (com seu novo casamento e, mesmo assim, com o apoio de Eduardo). Imagine: não só ela se separa e volta a casar, mas mantém com seu ex-marido uma relação suficientemente amistosa para que o ressentimento não impeça um engajamento comum.

Essa "constatação" deveria inspirar nosso desgosto e levar-nos a votar alhures. Por quê? Fácil: porque é muita coisa, ou melhor, são coisas que muitos querem e não conseguem fazer. Mas pouco importam os detalhes; o que vale nesse apelo um pouco escroto é que somos chamados a votar contra quem "goza" demais.

Em geral, a birra inspirada pelos supostos "prazeres" dos outros tem esta motivação: detestamos os que alcançam o que nós não nos permitimos porque temos raiva de nossas próprias limitações. Em suma, a charge contra Marta pedia que nosso voto fosse inspirado pela repressão que impomos (ou que é imposta) a nossos desejos. Era um apelo aos eleitores reprimidos.

Outro caso, agora americano. No dia posterior à convenção democrata, um provedor de internet dos EUA pediu a seus assinantes que se pronunciassem sobre algumas citações dos discursos da convenção do Partido Democrata. As frases partidárias receberam, sistematicamente, 50% de votos a favor e 50% contra. É claro, a sociedade americana é politicamente dividida ao meio; se os democratas gostavam, os republicanos não gostavam. Mas havia uma citação (do discurso de Barack Obama) que dizia: "Não existem uma América progressista e uma América conservadora, existem os Estados Unidos da América". Essa frase levou 87% de aprovação.

Patriotismo genérico dos eleitores? Parece-me mais provável que os eleitores estejam cansados de serem contrapostos coletivamente. Talvez se lembrem do seguinte: o que eles compartilham de mais relevante não são as camisetas e os chapéus dos partidos, mas o barco no qual estão todos e para o qual se trata de inventar a melhor rota possível.

Ser democrata, republicano, serrista, malufista ou "martista" é uma maneira de abdicar de boa parte de nossa subjetividade em favor de uma identidade de grupo. É uma maneira de votar com a paixão narcisista de ser sempre igual a si mesmo e a alguns outros que são iguais à gente.

Pois é, eu (e não devo ser o único) preferiria que as campanhas me encorajassem a votar com meus sonhos e meus desejos, não com a raiva de minhas repressões nem com o conforto duvidoso de minhas identificações de grupo.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

O trauma do amor


Todo amor busca compensar um desastre amoroso passado; somos feridos antes da batalha

NESTES DIAS, reencontrei Gérard Pommier, um colega e amigo que não via há quase 15 anos. Ele está de passagem pelo Brasil, palestrando.

Num fim de tarde, sentados na minha cozinha, colocamos a conversa em dia: filhos, trabalho e, claro, divórcios, separações e novos amores.

No capítulo "divórcios e separações", prevaleceu o tema (tragicômico) das indenizações financeiras. Como era de se esperar numa conversa entre homens, constatamos a curiosa contradição entre a reivindicação feminina de autonomia e, por outro lado, o fato de que muitas mulheres, ao se separarem, exigem uma reparação monetária.

Por estarmos ambos sóbrios, não discutimos o fundamento das pensões alimentícias para as crianças nem o da retribuição pelos anos em que uma mulher pode ter renunciado à sua vida profissional para se dedicar ao lar. Apenas estranhávamos o tipo de demanda raivosa que dá a impressão de pedir indenização pelo amor perdido.

Nos homens como nas mulheres, os amores que acabam deixam a sensação de um dano quase físico, material ("retiraram uma parte de mim") -um dano, portanto, que poderia ser compensado. Deve ser por isso que tanto os homens quanto as mulheres, às vezes, "curam" as dores de uma separação com aquisições extravagantes. "Ela me deixou?

Compro uma moto."

Mas as mulheres, freqüentemente, preferem que a reparação do dano seja o ônus do ex-parceiro. Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem.

Há como explicar essa diferença, mas isso, hoje, não vem ao caso. O fato é que a conversa com Pommier foi interrompida porque eu fui assistir ao filme de Wong Kar-wai, "Um Beijo Roubado", que acaba de estrear. Pommier, que já tinha visto o filme na França, prometeu que ele tinha a maior relação com nossa conversa daquela noite.

De fato, o filme de Kar-wai é uma esplêndida elegia sobre o trauma amoroso. Os quatro personagens principais são todos inválidos da guerra das paixões. Ficam num canto lambendo suas feridas ou saem pelo mundo afora para esquecê-las ou cicatrizá-las, mas, de qualquer forma, para eles, um novo amor é a tentativa de compensar um desastre passado, que os deixou sem chaves para as portas da vida.

Para um psicanalista, é um prato cheio: confirma-se, indiretamente, a idéia de que nos apaixonamos pelos outros porque não nos foi permitido ficar com a mãe e ou com o pai. Todo amor corrigiria uma grande decepção amorosa, forçada e originária, todo amor seria um paliativo contra as dores da renúncia a nossas paixões edipianas. Ou seja, atrás de nossa vida amorosa, sempre há um dano inicial. "Será que alguém paga um dia?", diriam as mulheres evocadas na conversa com Pommier.

Tudo bem, mas o complexo de Édipo, que se tornou sabedoria psicológica comum, não deixa de ser um mistério. Por que seríamos saudosos de uma única relação que nos foi proibida para que todas as outras fossem permitidas? Por que seríamos para sempre queixosos de uma única perda que nos libertou e nos soltou pelo mundo?

Mais misterioso: é raro que a lembrança de nossos primeiros afetos amorosos (com a mãe, especialmente) seja a de um idílio; em geral, ela vem junto com a queixa de termos sido, de uma maneira ou de outra, preteridos ou mesmo traídos. Talvez essa lembrança queixosa seja influenciada pelo que vem depois: a gente veria nossa primeira infância pelo prisma das dores da autonomia, do crescimento e da separação.

Mas talvez haja algo mais, algo que nos torna feridos antes da batalha, queixosos de ter sofrido um dano antes de qualquer amor, inclusive antes daquela primeira relação, miticamente feliz, com a mãe. Talvez a sensação de que fomos traídos, e não nos foi dado o que queríamos e esperávamos anteceda o amor e suas frustrações. Talvez todos os amores, inclusive o edipiano, sejam apenas compensações frustrantes por um dano que, aliás, inevitavelmente, eles renovam. Mas de que dano estou falando?

De qual sensação originária de que o mundo sempre nos priva porque nunca responde à altura de nossos pedidos?

A resposta seria complicada e incerta, mas há um atalho. Pergunte para qualquer jovem mãe esbaforida: "Afinal, o que quer um bebê?".

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Comoção pela morte de Isabella


A tragédia nos lembra afetos dolorosos que regram nossa maneira "moderna" de casar

HOJE, QUARTA-FEIRA, quando acabo esta coluna, não conhecemos os eventos que levaram à morte de Isabella Nardoni; só sabemos que a menina, de cinco anos, foi assassinada, intencionalmente ou não, enquanto estava na custódia do pai e da madrasta. E conhecemos um pouco a história da família: a mãe e o pai de Isabella não chegaram a se juntar -foi um romance adolescente que acabou antes de Isabella nascer. O pai tem dois filhos pequenos com sua mulher atual.

É uma situação trivial: a pensão mensal, as visitas, o padrasto ou a madrasta, os meio-irmãos etc. Mas a banalidade dessa situação não deveria disfarçar o emaranhado de afetos dolorosos que ela produz -afetos que muitos vivem e que todos preferimos esquecer.

Não sei se esses afetos são responsáveis pela morte de Isabella. Mas talvez eles sejam responsáveis pela extraordinária comoção produzida pela sua morte. Como assim?

A morte violenta de uma criança nos fere a todos: é como se, ao mesmo tempo, alguém nos arrancasse um pedaço de nosso próprio futuro e destruísse a fantasia nostálgica da infância, que sempre cultivamos, mesmo que o primeiro período de nossa vida tenha sido infeliz.

Mas a história de Isabella nos comove também por outra razão: as tentativas de "explicar" o acontecido evocam, inevitavelmente, as dificuldades de nossa maneira "moderna" de casar.

São dificuldades nas quais, em geral, preferimos evitar de pensar.

É comum que o marido ou a mulher (às vezes, ambos) levem para o casamento filhos que são frutos de uma relação anterior. Espera-se que isso aconteça sem complicação: afinal, se descasamos e casamos por amor, por que o mesmo amor não reinaria pelo lar todo? Pois é, o amor é uma coisa complicada. Exemplos.

A rivalidade, que sempre existe entre irmãos, vinga entre enteados e meio-irmãos. E vinga redobrada, justamente por ser mais inconfessável do que a rivalidade entre irmãos -por ser silenciosa, reprimida pelo esforço geral de compor uma nova família ideal, em que todos os integrantes se amariam.

Na nova família, à primeira vista, o homem convive com seus enteados melhor do que a mulher. Não é nenhum milagre do "instinto" paterno: o homem encontra uma satisfação narcisista no exercício da paternidade. Ele, aliás, curte ser e se sentir amado por suas qualidades "paternas". Pare ele, saber ser pai de filhos e enteados faz parte de uma virilidade que ele quer que seja reconhecida e festejada pela mulher.

Mas cuidado: a encenação da paternidade, embora às vezes espalhafatosa, não resiste à pressão da culpa de dar para seus filhos de sangue menos do que para seus enteados.

Essa culpa, envergonhada e reprimida, é inevitável, porque há uma coisa que o homem, na grande maioria dos casos, dá mais aos enteados do que aos filhos: sua própria presença no lar.

A mulher, ao contrário, vive quase sempre uma rivalidade dramática com seus enteados: compete com eles como se ela fosse mais uma filha. Para a mulher, o enteado ou a enteada não usurpam o lugar dos filhos que ela trouxe de um casamento anterior, nem o lugar dos filhos que nasceram no novo casamento: eles ameaçam usurpar o próprio lugar dela. Essa rivalidade, escondida, expressa-se de maneiras travessas: por exemplo, numa crítica assídua das manifestações do afeto paterno do homem para com o filho ou a filha dele. Ou seja, para não admitir um ciúme envergonhado do enteado, a mulher censura o "excesso" dos sentimentos paternos do marido. Esse, criticado como pai, sente-se diminuído como homem. O desastre está às portas.

São apenas exemplos. O casamento "moderno" é um nó de afetos reprimidos, uma convivência explosiva que aposta no amor do casal como se fosse remédio para todos os males.

Não se trata de condenar a idéia de que seja possível refazer sua vida com outro ou outra e, nessa ocasião, levar consigo os filhos dos casamentos anteriores. Mas seria melhor que a gente se engajasse nesses projetos sem a ilusão de que os bons sentimentos prevalecerão por conta própria. Seria melhor, para começar, que nossas disposições menos nobres, em vez de silenciadas e reprimidas, fossem faladas, explicitadas. Isso, para evitar que, de vez em quando, a trágica morte de uma menina nos lembre, por um dia ou uma semana, que a vida das famílias "modernas" é muito mais difícil do que parece.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O sonho de Martin Luther King


O amor é o agente da modernidade: os sentimentos vencem os preconceitos das tribos

AMANHÃ FARÁ 40 anos, dia por dia, desde o assassinato de Martin Luther King, em Memphis, Tennessee.

Em 1963, cinco anos antes de sua morte, King contara seu sonho aos manifestantes da marcha sobre Washington: ele imaginava um futuro em que "brancos e negros, judeus e gentios, protestantes e católicos", descendentes de escravos e de donos de escravos, todos viveriam em harmonia, sentados "à mesa da irmandade". Nesse futuro, cada um seria julgado por seus atos e por seu caráter, não pela cor de sua pele, pela herança de sua etnia ou por sua fé.

King pedia que os EUA e o mundo moderno se mostrassem à altura de suas próprias declarações fundadoras: por exemplo, a Constituição dos EUA.

Ao longo das últimas quatro décadas, muitas coisas mudaram. Um balanço rápido constataria, sem otimismo excessivo, que o preconceito e a discriminação das diferenças retrocederam. Foi o efeito de mil lutas, grandes e pequenas, nos Parlamentos, nas ruas e nas padarias da esquina.

Mas as diferenças, durante a própria luta para não serem discriminadas, acabaram se consolidando e nos afastando da irmandade com a qual sonhava King. Em outras palavras, parecemos nos encaminhar para um mundo em que cada indivíduo e cada grupo seriam iguais perante a lei e respeitados em sua diferença, mas em que seria perdido o sentimento de constituirmos juntos algum tipo de comunidade. A sociedade futura seria, então, apenas uma convivência ordeira de diferenças e distâncias irredutíveis: muito longe do sonho de King.

Esse sonho reviveu, nestes dias, no discurso de Barack Obama "A More Perfect Union" (a "união mais perfeita", que era o propósito explícito dos signatários da Constituição dos EUA). Obama é suficientemente atento às diferenças para se lembrar, por exemplo, de que ser filho de imigrante africano não é a mesma coisa do que ser descendente de escravo. Mas, apesar de sua atenção às diferenças, talvez por ser o fruto de um amor inter-racial, ele consegue (novidade absoluta) ser um candidato negro, sem ser um candidato dos negros.

Por isso, muitos americanos talvez vislumbrem nele o símbolo daquela comunidade (não só uma convivência) de diferentes que era o sonho de Martin Luther King.

Não sei se Obama será o candidato escolhido pelos democratas e ainda menos se será eleito presidente.

Quase a metade dos americanos se diz disposta a votar nele; fora dos Estados Unidos, ele é imensamente popular. Será que estamos prontos para o sonho de Martin Luther King logo agora, num momento em que, pelo mundo afora, diferenças religiosas e culturais travam uma luta sangrenta?

Alguns dados encorajadores. No livro "Microtrends" (microtendências, editora Twelve, 2007), de Mark Penn, há um capítulo sobre famílias inter-raciais, que resume uma série de pesquisas recentes.

Em 1970, nos EUA, havia aproximadamente 300 mil casais inter-raciais, ou seja, 0,3% dos casamentos. Em 2000, já eram dez vezes mais, acima de 3 milhões, 5,4% de todos os casamentos. A maioria dos casamentos inter-raciais incluem um indivíduo hispânico (casado com negro ou branco). Mas o tipo de casal inter-racial mais freqüente (14%) é o de um homem branco com uma mulher asiática, seguido pelo casal de um homem negro com uma mulher branca (8%).

As adoções inter-raciais triplicaram. Em particular, nos EUA, o número de crianças confiadas pelos serviços sociais à custódia temporária de pais de uma outra etnia passou de 14% a 26%. É um dado significativo considerando que, dos anos 70 aos 90, as adoções inter-raciais eram acusadas de perpetrar um "genocídio cultural" assimilando "à força" os rebentos de outra etnia.

Qual é a relevância dessa "brasileirização" dos EUA? Pois é, Romeu e Julieta são os protótipos do herói moderno. O amor é o grande agente da modernidade: a vitória do indivíduo contra o peso das tradições é antes de mais nada vitória dos sentimentos, ou seja, de paixões singulares que atropelam os mandatos e os preconceitos das tribos.

Para quem ama, o furor das lutas entre religiões, culturas e tribos que se opõem a seus sentimentos é apenas um resto do passado. PS: Para ler o discurso de King: http://usinfo.state.gov/infousa/
government/overview/38.html
.

Para escutar o discurso de Barack Obama: br.youtube.com/watch?v=pWe7wTVbLUU.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Corpos idosos e eróticos



Não é mais ridículo, aos 60 ou mais, querer uma companhia de vida, um amor ou só uma transa


SE ME lembro direito, 20 anos atrás era freqüente participar de conversas animadas em que se discutia a questão seguinte: devemos ou não deixar nossos filhos e nossas filhas adolescentes dormir em casa com suas namoradas ou seus namorados?

Aparentemente, o partido do sim ganhou. Em geral, a razão que ele invocava (e ainda invoca) era a segurança: é melhor que minha filha esteja no seu quarto com o namorado do que em baladas perigosas ou, pior ainda, "brincando" no carro numa rua deserta. Também contava o fato, comprovado, de que um namoro é quase sempre uma experiência mais rica e mais "madura" do que a agitação das turminhas.

Naquelas conversas dos anos 80, eu ficava em cima do muro e torcia, de leve, pelo partido do não. Achava problemático que os adolescentes tivessem uma espécie de vida conjugal sem ter conquistado sua autonomia: para juntar-se com um parceiro ou uma parceira (a ponto de dormir na mesma cama com ele ou com ela a cada noite ou quase) seria melhor, primeiro, não precisar mais se definir como filho ou filha.

Continuo pensando que eu tinha um pouco de razão: prova disso, os inúmeros casamentos em que um dos membros do casal se queixa de que o outro continua sendo mais filho ou filha do que marido ou mulher.

Mais um detalhe. Freqüentemente, a conjugalidade precoce e protegida de dois adolescentes na casa dos pais é uma caricatura da conjugalidade adulta menos interessante: consiste mais em assistir, na cama, a filmes alugados do que em sair juntos pelo mundo ou mesmo em praticar a arte difícil de se descobrir mutuamente.

Seja como for, o partido do sim ganhou sobretudo por uma razão que não se confunde com as justificações habitualmente propostas.

Acontece que, nas últimas décadas, pela freqüência dos divórcios, a metade dos jovens viveram sua adolescência em companhia de apenas um de seus pais. E muitos desse jovens foram espectadores assíduos (e, às vezes, até confidentes) do folhetim das aventuras e dos namoros de sua mãe ou de seu pai.

E, claro, com que moral o pai ou a mãe divorciados proibiriam o filho ou a filha de levar seus amores para casa se eles mesmos não fazem diferente? Essa grande mudança na vida familiar teve dois efeitos significativos e, a bem dizer, positivos.

O primeiro é que os adultos começaram a levar mais a sério a vida amorosa de seus filhos adolescentes: as brincadeiras condescendentes (o detestável "e aí, tem namorado?") acabaram ou quase.

O segundo efeito aparece agora, 20 anos depois: à força de conviver com os namoros, os namoricos e as decepções, em suma, com as alegrias e as tristezas das paixões de seus pais divorciados, os adolescentes abandonaram a idéia (freqüente em minha geração) de que a vida amorosa e sexual dos adultos seria uma mesmice comportada -que, aliás, no caso dos pais, teria acabado de vez depois da troca mínima que foi necessária para que eles, os filhos, fossem concebidos.

Os adolescentes que tiveram essa experiência são agora jovens adultos, e seus pais são idosos. Apesar da valorização cultural do corpo jovem e sarado como se fosse o único desejável e capaz de desejar, é lógico que esses jovens adultos estejam dispostos a reconhecer que a terceira idade não corresponde a nenhuma aposentadoria do amor e do sexo, ou melhor ainda, que ela não corresponde a nenhuma "maturidade" das paixões: os "idosos" amam e desejam com o mesmo transporte e a mesma ingenuidade dos adolescentes (e, claro, dos ditos adultos).

De repente, hoje, não é ridículo ter 60 anos ou mais e propor um perfil num site de encontros amorosos na internet; não é ridículo, aos 60 ou mais, querer uma companhia para o resto da vida, um amor ou mesmo apenas uma transa.

O bonito filme de Laís Bodanzky, "Chega de Saudade", que estreou na semana passada, nos leva para um baile. Há muitos assim, pelo país afora, em que homens e mulheres da terceira idade se procuram e dançam a cada semana.

Estamos aprendendo, aos poucos: a grandeza (e a mesquinhez) do amor e do desejo não têm estação.

Mas não é apenas por isso que o filme é tocante: é porque no baile, na pista de dança, o enlace do parceiro ou da parceira revela que estes corpos, que talvez tenham chegado mancando, endurecidos pela idade e de pés inchados, são corpos bonitos, eróticos, vivos.