quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A história de Querô



Não é a denúncia, mas a qualidade da história que pode nos revelar uma realidade injusta

CONSTATAÇÃO DE bilheteria: os espectadores brasileiros se interessam cada vez menos pelos filmes nacionais que tratam da miséria social.

A leitura, na imprensa, de comentários sobre essa mudança do gosto dá a impressão de que estaríamos lidando com uma espécie de "Cansei" cultural: quem tem R$ 10 para gastar no cinema procuraria, naquelas duas horas, o sossego de pensar em realidades diferentes das que assolam sua vida cotidiana e a do país.

Depois de cercas elétricas e seguranças armados na porta de casa, eis que a última defesa seria a simples negação: não me falem mais disso.

Pois é, não acredito nessa tese. Em compensação, constato o seguinte: com as devidas exceções, o cinema de denúncia é chato. E não é o caso de pensar que o sentimento de chatice seja uma defesa psicológica do espectador. É mais provável que, freqüentemente, a intenção de denunciar produza filmes chatos. Como assim "chatos"?

O cinema, como qualquer ficção, pode nos fazer descobrir realidades que desconhecíamos ou preferíamos ignorar. Ele pode nos deixar indignados, apavorados e, como se diz, mais "conscientes" do drama social ao redor de nós. Mas isso acontece quando, primeiro, o filme nos conquista, ou seja, banalmente, quando ele nos conta uma história em cujos conflitos, dramas e alegrias reconhecemos os percalços de nossa própria vida.

Ora, na sexta passada, estreou "Querô", de Carlos Cortez. O filme está em poucas salas, talvez porque se presuma que os espectadores resistam a mais um filme de denúncia da miséria social brasileira.

É uma pena, porque "Querô" não é um filme sobre a miséria social brasileira: é um filme tocante que conta a história de Querô, um adolescente da Baixada Santista que ganhou esse apelido por ter sido abandonado pela mãe, uma prostituta que se matou ingerindo querosene.

Obviamente, ao longo do filme, visitamos os antros do porto de Santos e os porões da Febem. Nesse passeio, talvez enxerguemos algo que preferiríamos não saber, mas isso acontece graças à complexidade e à intensidade da história que nos é contada. Em suma, acontece porque Querô, tão diferente, parece tão próximo a nós.

Raramente acordamos de uma noite dormida em cima das cordas de um barco abandonado, mas todos sabemos sonhar com a liberdade absoluta que é "prêmio" (envenenado) da marginalidade. Raramente devemos escolher entre o amor e o assassinato, mas não é raro que, um dia, tenhamos desistido de um amor que nos transformaria para seguir um dever iníquo ou pela simples força do que parece ser o destino. Poucos foram abandonados quando bebês, mas muitos sofrem do sentimento radical de um desamor, no mínimo, imaginário. Poucos foram abusados brutalmente, mas o ódio e a vontade de matar nos são mais familiares do que gostamos de admitir.

A qualidade humana da experiência narrada e a maestria de quem narra fazem com que uma história nos prenda, por ela se tornar, por assim dizer, universal (ou quase). Nesse caso, pode acontecer, "de brinde", que seu pano social de fundo nos deixe indignados.

Carlos Cortez se vale da extraordinária atuação do estreante Maxwell Nascimento como Querô. Ele poderia, aliás, ter confiado mais em Nascimento, cujo rosto fala alto e dispensa a esporádica evocação cinematográfica dos pensamentos do protagonista.

A origem do roteiro do filme é o romance de Plínio Marcos, "Querô: Uma Reportagem Maldita", de 1976.
Em 2002, a adaptação cinematográfica de uma peça de Plínio Marcos permitiu um filme memorável, "Dois Perdidos Numa Noite Suja", de José Joffily. No passado, houve várias outras adaptações cinematográficas de obras de Plínio Marcos, inclusive uma do próprio "Querô".

Não as conheço, mas, no caso dessas duas adaptações, aposto que ambas devem uma boa parte de sua qualidade ao carinho de Plínio Marcos pelo mundo e submundo que ele descrevia.

Um censor da época da ditadura disse um dia a Plínio Marcos que sua obra era subversiva porque continha palavrões. Plínio Marcos achou estranho, pois ele usava palavrões não para subverter, mas porque escrevia o diálogo de quem trabalha no mercado e de quem conversa nas cadeias e nos puteiros. E não fazia isso para denunciar nem para chocar, mas porque esses eram os protagonistas das histórias que ele conhecia, que lhe pareciam valer a pena e que ele gostava de contar.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Tristeza e dignidade do suicídio


O ato suicida guarda sua dignidade porque é imprevisível como qualquer ato humano

QUANDO EU tinha 12 anos, um tio meu se suicidou. Era um tio de quem eu gostava e que gostava de mim. Ele enfiou a cabeça no forno e abriu a torneira do gás. Deixou uma nota, sucinta, que dizia: "Suicídio por razões profissionais e amorosas".

Meus pais não esconderam de mim as circunstâncias da morte do tio e me mostraram seu bilhete. Mesmo assim, imaginei perceber, em meus pais, uma certa vergonha. Isso, porque, no fundo, eu os culpava.

Foi a grande crise na minha idealização dos meus pais e, por conseqüência, na tranqüilidade de meu mundo: aparentemente, a amizade e o amor que eles ofereciam não tinham sido suficientes para dar a meu tio a vontade de continuar vivendo.

Nada me garantia, portanto, que eles saberiam fazer o necessário para que eu estivesse a fim de viver.

Foi assim que o luto pelo suicídio do meu tio foi também o fim de minha infância. Mas, em regra, quando se suicida um próximo de quem gostamos e que gostava de nós, não atribuímos vergonha e culpa a terceiros: esses sentimentos surgem em nós, ao descobrir que nossa presença e nosso amor não bastaram para que o outro quisesse viver. Em alguns casos, essa ferida nunca cicatriza.

Quando o suicida é nosso pai ou nossa mãe, o sentimento de não termos sido a razão suficiente para ele ou ela viverem fica conosco para sempre, como um fundo melancólico, como a sensação de uma insuficiência essencial ou de uma impossibilidade de sermos amados.

Quando o suicida é um filho ou uma filha, a perda (irreparável, pois o luto pelos nossos descendentes é contra a ordem das gerações) é acompanhada pelo sentimento de um fracasso, como se não tivéssemos conseguido transmitir o básico: a vontade de viver. Deve ser por isso que os monoteísmos consideram o suicídio como um pecado contra o criador: o suicida demonstraria o malogro de Deus. Assisti ao filme "A Ponte", de Eric Steele, e espero que continue em cartaz. Em São Paulo, já passa em apenas uma sala, duas vezes por dia.

Alguns anos atrás, Ted Friend publicou, na "New Yorker" (13/10/ 2003), um artigo sobre a estranha freqüência com que a famosa ponte Golden Gate de San Francisco é escolhida pelos suicidas. Aparentemente inspirado pelo artigo, Steele, durante um ano inteiro, filmou a ponte, sem parar. Houve 24 suicídios e várias tentativas que foram sustadas também graças à equipe de Steele (eles informavam a polícia quando detectavam, de longe, comportamentos "suspeitos").

Além disso, Steele entrevistou parentes e amigos próximos dos suicidas. O tom é justo, comovedor e tocante. O filme evita o caminho mais fácil, que consistiria em nos acusar sub-repticiamente, como se, quando alguém decide morrer, fôssemos todos, de uma maneira ou de outra, responsáveis. A maior qualidade do filme é, ao contrário, a sobriedade. O ato suicida guarda sua dignidade porque, apesar das explicações dos próximos, ele permanece misterioso e radicalmente imprevisível, como qualquer ato humano.

No dia 29 de agosto, o UOL publicou a notícia seguinte: na Áustria, dois homens viviam junto, em um apartamento-albergue dos serviços sociais. Brigaram. Um deles, Robert, psicótico em remissão, matou o outro; depois disso, ele abriu o corpo e o crânio do companheiro e comeu órgãos internos e cérebro. Quando a faxineira chegou, Robert, com a boca ensangüentada, comentou: "Veja só o que aconteceu". A porta-voz do Fundo Social de Viena declarou: "Se tivéssemos a menor idéia de que este tipo de coisa pudesse acontecer, teríamos transferido Robert para outro local e exercido um acompanhamento mais adequado". Alguém, na Áustria, deve estar criticando severamente o psiquiatra, o psicólogo ou a assistente social que, algum dia, afirmaram que Robert podia ser devolvido à sociedade.

Pensei nas poucas vezes em que, num tribunal, tive de dizer, em nome de minha "ciência", se alguém, a partir de então, seria ou não um bom pai ou uma boa mãe.

A verdade é que, uma vez os fatos acontecidos, somos capazes de interpretar, de encontrar explicações e mesmo de assumir responsabilidades e culpas que temos ou não temos. Mas tudo isso apenas retroativamente.

Em matéria de comportamento humano, somos quase sempre incapazes de prever. Não sei se é um mal: talvez essa ignorância seja a condição de nossa liberdade.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Vida estética


Nossa paixão pelo "look" e pelo design tenta construir um mundo que faça sentido

A CADA sexta-feira, é noite de Green Express: em São Paulo, na avenida Rio Branco nº 90, dança-se samba-rock.
A turma, embora goste da mesma música, não é uniforme. Há os malhados e os que carregam consigo 30 quilos acima da média. Há homens de terno, chapéu e sapatos de duas cores, à la Michael Jackson ou à la Rio de Janeiro anos 30; outros com camiseta de time americano e touca de couro; outros tipo "roots" (camisa frouxa para fora das calças); outros são "preppy" (pólo justa). E por aí vai. Do lado das mulheres, mesma variedade.

É um bom lugar para descobrir que não há grau zero do estilo: se você cultiva a ilusão de não se importar com as aparências, saiba que seu "descaso" é mais uma escolha estética entre outras.
Comecei com uma noite no Green, mas poderia ter começado com um passeio por um supermercado. Observando os objetos à venda, mesmo os mais utilitários (um saca-rolhas, uma toalha de prato), chegaria à mesma conclusão: nossas escolhas respeitam a racionalidade (a roupa tem que nos vestir e a faca tem que cortar), mas são orientadas por considerações estéticas: gostamos de um "look". E não é preciso que seja o mesmo para todos: não procuramos um cânone, apenas queremos que nosso gosto ordene um pouco o mundo.

Nas últimas décadas, passamos do ideal de um consumo de massa (mesma geladeira para todos) a um ideal de consumo personalizado, em que o estilo e o design comandam nossas escolhas.
Esse fenômeno, dificilmente discutível, está no centro do trabalho de Virginia Postrel, recentemente entrevistada pelo caderno Mais! (29 de julho) por seu livro de 2003, "The Substance of Style" (a substância do estilo, HarperCollins).

A relevância das escolhas estéticas no comportamento e no consumo das últimas cinco décadas é tradicionalmente explicada segundo dois eixos: 1) Nosso sistema produtivo, depois de promover o consumo de massa, para continuar crescendo, incentiva a diversificação do consumo; 2) Vivemos numa sociedade em que o lugar de cada um depende do olhar dos outros; portanto, a sedução estética que conseguimos exercer (graças a nossa pessoa e aos objetos que nos cercam) torna-se crucial.

Postrel aceita essas explicações, mas acrescenta o seguinte: se valorizamos as aparências é porque encontramos, nesse exercício estético, "prazer e sentido".

É fácil entender qual é o prazer encontrado num exercício estético generalizado: é o prazer de se expressar singularmente e de compor, para si mesmo e para os outros, uma imagem agradável.
Mais complicado é entender como essa atividade estética incessante nos ajudaria a encontrar um pouco de sentido para nossa vida.

Pois bem, se alguém me perguntasse, hoje, quais são, ao meu ver, os textos filosóficos decisivos para entender o espírito moderno, eu incluiria entre os cinco primeiros, sem hesitar, a "Crítica da Faculdade do Juízo", de Kant (Forense Universitária). O livro, escrito no fim do século 18, não é uma leitura fácil. Quando o li, nos anos 70, foi por dever. Hoje, no retrospecto, considerando a extraordinária relevância da escolha estética na vida moderna das últimas décadas, ele me parece profético e genial.

Resumindo além do máximo, uma das idéias centrais de Kant é a seguinte: apreciamos o belo porque é o exemplo de algo que se justifica em si, ou seja, que tem um fim e uma razão de ser, mas esse fim não é uma idéia ou uma representação externa, ele está na coisa mesma que achamos bela. A beleza, por assim dizer, é o charme das coisas, dos seres e dos momentos que não precisam de uma justificação outra que sua beleza.

Por exemplo, uma cena qualquer da vida, contemplada da mesa de um bar, levanta questões: o que quer aquela mulher? Para onde está indo aquele cara? Qual será o futuro do cachorro que passa por aí?

Numa "bela" fotografia da mesma cena, a questão da finalidade da vida da mulher, do cara e do cachorro é resolvida pela finalidade interna da imagem, por sua "beleza".

Ora, em nossa cultura, a tradição perdeu valorm, e o plano divino é, no mínimo, incerto: as representações e idéias que davam sentido à vida são cada vez mais problemáticas. Talvez nossa paixão cotidiana pelo "look" e pelo design tente, laboriosamente, construir um mundo que se justifique por sua qualidade estética, ou seja, por si só.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

A vida de Santiago


Uma vida se justifica como um arranjo de flores, não pela duração, mas pela harmonia

ESTRÉIA AMANHÃ o filme "Santiago", de João Moreira Salles. A história de sua produção é conhecida: em 1992, João Moreira Salles filmou um documentário sobre Santiago Badariotti Merlo, que tinha sido, no passado, durante 30 anos, o mordomo de sua família.

Para o diretor, era uma maneira de se lembrar de sua infância e de meditar sobre vida e morte, memória e esquecimento. Ele abandonou o projeto durante a montagem. Santiago morreu em 1994. Em 2005, João Moreira Salles voltou ao material abandonado para criar um filme que é uma obra-prima, imperdível.

Já foi observado que "Santiago" é um filme que desnuda a relação entre o documentarista e sua personagem. O diretor não esconde sua voz, que pede que Santiago repita, retome, fale mais rápido, olhe para cá ou para lá. Alguns acharam que o longa-metragem também quer desvendar a desigualdade inevitável entre o ex-mordomo e o filho do ex-dono de casa. Pode ser. Mas a imperiosidade do documentarista me evocou outra coisa.

Quando minha avó ainda vivia, eu, ao voltar para casa, pedia que ela fizesse o polpettone de minha infância. Ela fazia, eu agradecia, elogiava e também me queixava: nunca era exatamente como "aquele" polpettone. Num momento do filme, Santiago recita o Pater Noster, o Salve Regina e a Ave-Maria, evocando sua avó, que lhe ensinara a rezar em latim. O diretor se lembra da comoção que a reza de Santiago em latim lhe causava, quando criança. Logo, ele descarta o "take" e pede que Santiago reze novamente, concentrando-se e juntando as mãos.

Crítica do gênero documentário? Eu vejo, sobretudo, o efeito tocante do mergulho na memória: o que João Moreira Salles quer é reviver a emoção que lhe dava "aquela" reza em latim da sua infância -"aquela" reza que não volta mais.

Muitos observaram também que "Santiago" é um filme sobre a luta da memória contra a morte. Eu mesmo, depois de assistir ao filme, perguntei o que aconteceria com as 30 mil páginas que Santiago escreveu sobre as dinastias da nobreza do mundo ao longo de 4.000 anos de história. Era como se quisesse que a sobrevivência da obra de Santiago prolongasse o sentido de sua vida e da vida em geral (os calhamaços ficarão no Instituto Moreira Salles, na casa da Gávea, onde Santiago foi mordomo).

Agora, Santiago tem uma consciência aguda de que a vida é passageira e o céu está vazio (citação de Bergman por Santiago). E não é uma consciência produzida pela idade avançada. Walter Salles me contou uma anedota bem anterior ao filme: uma manhã, Walter Moreira Salles, seu pai (e pai de João, claro) abriu as cortinas de seu apartamento de Copacabana junto com Santiago. Era um primeiro de maio ensolarado. Walter Moreira Salles comentou: "Que dia lindo". E Santiago, imediatamente, em portunhol, olhando para a praia já cheia: "Em cem años, estarão todos muertos".

Mas Santiago não é cínico. E seu remédio contra a morte não é apenas sua prodigiosa memória. No filme, Santiago toca as castanholas, canta, dança com as mãos e, sobretudo, está sempre preocupado com a beleza. Inclusive com a beleza da morte, "la gran partita", o "bel morir" que pode dignificar a vida inteira.

Uma especialidade de Santiago consistia em preparar arranjos de flores para as festas. Ele dava, aos diferentes arranjos, nomes musicais, cantata, scherzos etc. Quando os terminava, ficava a fim de lhes pedir (aos arranjos) que cantassem, assim como Michelangelo perguntou "Por que não falas?" à sua estátua do Moisés (Santiago corrige a lenda, preferindo o Davi).

As flores dos arranjos logo murcharão, mas o importante é que elas desabrochem na hora efêmera da festa, mostrando o esplendor de cada flor e a harmonia do arranjo. Como um arranjo, uma vida não se justifica por sua duração, nem pela lembrança, nem pelo aplauso dos outros, ela se justifica por sua harmonia intrínseca.

Se for assim, o Santiago que conhecemos pelo filme de João Moreira Salles justificou sua vida. Nota: nas últimas semanas, errei duas vezes: ao escrever que "Goldfinger" era o primeiro James Bond com Sean Connery e ao corrigir, dizendo que era o segundo. É o terceiro. O fato é que "Goldfinger" foi, na minha história, o primeiro grande propagandista de uma justificação hollywoodiana da vida. Hoje, preferiria justificar minha vida tocando Beethoven, de fraque, numa casa deserta, com Santiago.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Antidepressivos, aspirinas e urubus


Os antidepressivos são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar qualquer tristeza?

A FEBRE se manifesta numa longa lista de moléstias: gripe, infecções bacterianas, insolação e por aí vai. Em todos esses casos, a aspirina combate a febre, mas não cura a enfermidade em que ela se manifesta. Para isso, cada enfermidade tem remédios próprios (quando tem): antibióticos, sulfamídicos, cortisona etc.

Pergunta: segundo a psiquiatria, os antidepressivos atuais são um remédio específico para uma moléstia chamada "depressão"? Ou são uma espécie de aspirina psíquica, capaz de aliviar a tristeza e a morosidade que se manifestam numa variedade de situações de vida e de quadros clínicos? Ou será que podem ser as duas coisas?

Pois bem, graças a um amigo, Célio G. Marques de Godoy, que me indicou o artigo, li uma pesquisa publicada recentemente no "New England Journal of Medicine" (2007, vol. 356, 17). A pesquisa testa a "eficácia do tratamento auxiliar com antidepressivos na depressão de pacientes bipolares". Uma explicação: na clínica psiquiátrica, os transtornos bipolares são um quadro bem distinto da depressão. Neles, o sujeito alterna fases depressivas com fases de euforia maníaca; as fases depressivas são mais longas do que as maníacas, mas a alternância é crucial para o diagnóstico. Em suma, um bipolar em fase depressiva se parece com um deprimido, mas isso não significa que ele sofra da mesma "moléstia".

Na pesquisa, trata-se de saber se, num quadro diferente da depressão, os antidepressivos podem funcionar ou não como uma aspirina que aliviaria qualquer tristeza. A resposta, no caso dos transtornos bipolares, é negativa: os antidepressivos não funcionam como a aspirina com a febre. No entanto, eis o conselho paradoxal dos pesquisadores: se um paciente bipolar já estiver tomando antidepressivos, melhor que continue, embora a pesquisa mostre que eles não parecem aliviar sua fase depressiva. Por que a recomendação?

Pois é, literalmente, porque NUNCA SE SABE. Essa incerteza faz a felicidade dos urubus, que faturam com o uso dos antidepressivos como se fossem aspirina. Mas ela é também o retrato fiel do estado de nossa clínica e de nossa ciência. Vamos lá:

1) Os antidepressivos atuais foram descobertos quando alguém administrou um derivado da hydrazina a pacientes tuberculosos. O efeito inesperado (e único) foi que eles ficaram mais alegres.
2) Mais tarde, descobriu-se que a mesma substância aumentava (pouco importa como) a quantidade de um neurotransmissor no cérebro (a serotonina).

3) Supondo que essa alteração fosse responsável pelo bom humor dos pacientes tuberculosos, decidiu-se experimentar o uso de substâncias análogas em pacientes deprimidos.
4) Para isso, foi necessário construir um padrão de comportamentos e afetos que identificassem os deprimidos; nasceu assim "a depressão". De fato, entre 30 e 40% dos sujeitos que correspondem a esse padrão se beneficiam com o uso dessas substâncias.

5) Por que não todos? a) A definição padrão da depressão é comportamental, afetiva e discursiva, não química, pois é difícil verificar o nível de serotonina no cérebro das pessoas; b) portanto, é possível que muitas depressões sejam conformes ao padrão comportamental e afetivo estabelecido, mas que se expressem por alterações químicas diferentes da insuficiência de serotonina; c) conclusão: reagiriam positivamente a antidepressivos só aqueles deprimidos que expressam quimicamente sua depressão pela diminuição da serotonina no cérebro. Como identificá-los? Só experimentando.

6) Assim como haveria depressões que não se expressam pela insuficiência da serotonina, é também possível que haja, fora da depressão, tristezas e morosidades que se expressem por uma falta de serotonina. Nesses casos, os antidepressivos ajudariam. Como identificá-los? Só experimentando.

Em suma, o uso dos antidepressivos é empírico. Compara-se à administração de antibióticos específicos diante de um quadro no qual nenhuma cultura bacteriana pudesse nos dizer se o paciente é infectado ou não pela bactéria que o antibiótico está atacando.

É uma razão para condenar os antidepressivos? Não. Mas é bom saber que nossa ciência e nossa clínica os administram balbuciando. Correção da coluna passada: "Goldfinger" não é o primeiro James Bond com Sean Connery; é o segundo. Agradeço os leitores que me assinalaram o erro.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Antonioni


Com ele, aprendi que, no amor, é bom não confundir verborragia com comunicação

DOIS ANOS atrás, assisti a "Eros", filme em três episódios de diretores diferentes: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-wai.

Quase saí bem antes do fim. "Eros" começa com o episódio de Antonioni, que me pareceu de uma mediocridade constrangedora: os atores estão perdidos no set, as legendas são preferíveis aos diálogos e, como se não bastasse, há uma série de estereótipos intoleráveis.

Uma mulher nua em cima de um cavalo é uma metáfora erótica tão defunta que só deveria ser utilizada como farsa (exemplo de uma boa farsa: o nado sincronizado à la Esther Williams na cena primorosa dos Oompa-Loompas no lago da "Fantástica Fábrica de Chocolate" de Tim Burton).

Enfim, por sorte ou obstinação, agüentei firme e fui recompensado pelo episódio de Kar-wai, que é uma obra-prima.

A razão de meu constrangimento era simples: a obra de Antonioni, que morreu na semana passada, aos 94 anos, é das que mais me tocaram e me formaram. Deparar-me com um filme medíocre e assinado por ele (embora, presumivelmente, orquestrado por outros) forçava-me a interrogar o passado: o que eu acharia, hoje, dos filmes de Antonioni de 30 ou 40 anos atrás?
Decidi revê-los. Foi uma aventura de várias noites, que recomendo a todos: únicos e inconfundíveis, os filmes de Antonioni não envelheceram. Sua obra, além de ser cinematograficamente genial, continua valendo como uma extraordinária educação sentimental.
Em matéria de educação sentimental, aliás, ela só compete com a obra de Ingmar Bergman, que também acaba de perder seu jogo de xadrez com a morte. Antonioni e Bergman têm em comum um respeito extremo pela intimidade humana.


Talvez seja porque ambos tiveram que redescobrir a dignidade da vida depois da grande "aventura" coletiva da Segunda Guerra e a redescobriram na trama dos sentimentos.

Meus Antonionis preferidos se dividem em dois blocos. O primeiro inclui "A Aventura" (1960), "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1962) e foi chamado, na época, de "Trilogia da Incomunicabilidade". Nunca entendi por quê. Continuo não entendendo. Os personagens de Antonioni só podem parecer pouco comunicativos aos olhos de uma cultura que confunda a verborragia com a comunicação, o falar com o dizer.

Tome "A Noite": poucos filmes ou livros nos dizem de maneira tão simples e correta o que é um casal e o que é um amor. E poucos amantes, cinematográficos ou literários, conseguem, como Giovanni (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau), em "A Noite", dizer tudo o que é preciso e NADA MAIS.

Com Antonioni, aprendi que há uma ética da troca amorosa. Por exemplo, num momento do filme, Lidia some pelas ruas de Milão, durante uma tarde inteira. Quando, enfim, ela se manifesta com um telefonema, a discrição de Giovanni não é um drama da "incomunicabilidade", é a reserva de quem, no amor, preserva o respeito pela complexidade do outro.

O cinema é uma boa parte de nosso repertório amoroso. Pois bem, no amor, como num set de filmagem, é necessário, de vez em quando, avisar: "Silêncio! Ação!". Qualquer casal, em crise ou não, que seja tentado pela idéia de sentar e "discutir a relação" poderia (com bastante proveito) sentar e assistir à "Noite".

Meus outros Antonionis preferidos são "Blow Up", de 1966, (misteriosamente traduzido como "Depois Daquele Beijo") e "Profissão: Repórter", de 1975. Esses dois filmes foram a melhor resposta que minha geração recebeu a seus anseios vagos e frustrados por uma "outra" vida, diferente da mesmice acomodada que receávamos para o futuro.

"Goldfinger", o primeiro James Bond com Sean Connery, saiu em 1964, dois anos antes de "Blow Up". "Goldfinger" é o exemplo perfeito da resposta padrão à nossa questão adolescente: podem sonhar todos com a fabulosa vida de agentes secretos, criminosos, detetives e por aí vai. Pistola por pistola, dez anos depois, alguns, inspirados pela mesma proposta hollywoodiana, caíram na clandestinidade armada.

A resposta de Antonioni é mais sutil e diz que, claro, não é possível romancear a vida sem "ser outro constantemente" (a frase é de Fernando Pessoa, mas é também o recado de "Profissão: Repórter"). Agora, para romancear a vida, não é preciso encontrar destinos grandiosos. Basta enxergar o detalhe que sempre está presente num canto escuro da realidade cotidiana, ao alcance de uma ampliação fotográfica.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

As nossas histórias e "A História"


"A História" é abstração: as nossas pequenas histórias concretas são seu verdadeiro tecido

ASSISTI A "Bobby", de Emilio Estevez, que acaba de estrear. O filme conta o dia da morte de Robert F. Kennedy a partir das pequenas histórias de quem, por uma razão ou outra, estava, naquelas horas, no Hotel Ambassador de Los Angeles (que foi o lugar do atentado). É uma ocasião imperdível e tocante para pensar um pouco sobre a relação entre "A História" e nossas pequenas histórias.

Por exemplo, o assassinato de John F. Kennedy, em novembro de 1963, em Dallas, Texas, foi numa sexta-feira, por volta do meio-dia.

Sei disso porque lembro que eu estava em Milão, na casa dos meus pais, e ia sair com meu melhor amigo; a notícia chegou na hora do jantar.

Logo, o grupinho político ao qual eu e meu amigo pertencíamos (o Círculo Piero Gobetti) convocou uma reunião de urgência (no retrospecto, a urgência parece engraçada).

Redigimos uma declaração "oficial", de cujo teor eu me esqueci totalmente, mas que foi impressa em cartaz no dia seguinte. Passei a noite de sábado com meu amigo, colando cartazes pelas ruas, no frio. Como o cartaz não era autorizado, fomos presos, na madrugada. É a melhor lembrança que tenho de meu amigo do peito daqueles dias.

Eu também me lembro do exato momento em que aprendi que Martin Luther King tinha sido assassinado, em Memphis, Tennessee, no começo de abril de 1968: estava sendo apresentado a meus sogros, em Houston, Texas.

Do dia do assassinato de Robert Kennedy, em junho de 1968, não me lembro. Provavelmente não está ligado a nenhum pequeno evento de minha própria história.

Estava em Paris no dia da greve geral de 22 de maio de 1968. Mas saí da cidade, de carro e com dificuldade (era difícil encontrar gasolina), antes da manifestação favorável a De Gaulle, que foi em 30 de maio. Sei disso porque sei onde estava e com quem quando me disseram que a manifestação do dia 30 tinha acontecido, promovida (fato doloroso) por um dos meus ídolos literários, André Malraux.

Depois disso, nada até o fim de agosto de 1968: no dia em que os tanques soviéticos entraram em Praga, estava no barzinho do porto de Panarea, na Sicília, onde, naquele ano, eu passava minhas férias de verão (que eram também uma espécie de lua-de-mel).

Alguns grandes eventos da "História" me permitem datar minhas pequenas histórias. Reciprocamente, há datas de grandes eventos das quais me lembro porque estão ligadas a momentos cruciais de minha pequena história.

Tudo bem, eu uso meu teatro íntimo para me lembrar das datas dos grandes eventos e, reciprocamente, sirvo-me dos grandes eventos para me lembrar de algumas datas de minha vida. Mas qual é a diferença e qual a relação entre minhas histórias e "A História"?

Poderíamos dizer assim: os eventos da "História" são aqueles que interferem na vida de muitos, enquanto nossas histórias só concernem a nós e a um número restrito de próximos.
Agora, por mais que sonhemos, às vezes, com o progresso da razão, o fim da luta de classe ou a marcha providencial para o juízo final, "A História" não tem dinâmica própria.

Ela é só a resultante das infinitas pequenas histórias da gente. Sirhan Sirhan, o assassino de Robert Kennedy, disse, na época, que ele se sentia compelido a agir pela "História": Robert Kennedy tinha apoiado Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e o assassinato aconteceu no aniversário do começo da guerra. Por outro lado, Sirhan era um sujeito desequilibrado e influenciável. Sem os percalços de sua pequena história pessoal, ele nunca teria cometido o ato que o propulsou para o palco da "História".

Além disso, "A História" não tem interesse intrínseco. Ela só vale porque, de uma maneira ou de outra, ela mexe com nossas pequenas histórias. "A História" pode dizer, por exemplo, que, se Robert Kennedy não tivesse sido assassinado, Nixon não teria sido eleito e a guerra do Vietnã teria terminado mais cedo.

É provável. Mas dizer que "a guerra do Vietnã teria terminado mais cedo" é uma abstração. O que importa é que Joe, Jack, Ho, Nguyen etc. teriam ficado em casa, teriam amado, criado seus filhos e por aí vai -é isso o que importa.

Quando contamos "A História", esquecemos que ela não é nada se não uma abstração de histórias concretas. E, quando pensamos nas pequenas histórias, inclusive nas nossas, esquecemos que elas são o verdadeiro e único tecido da "História".

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Para que serve o jornal?


No jornal, a vida e a morte das vítimas eram o fato inescapável, sem canções para consolar

SOUBE QUE algo tinha acontecido em Congonhas por um telefonema: alguém, trancado na Washington Luís, desmarcava seu compromisso comigo. Logo abri a página do UOL, com as primeiras imagens e reportagens.

Uma hora depois, estava em casa, na frente da televisão, onde fiquei até tarde, zapeando de especial em especial. A televisão, nas catástrofes, funciona assim: permite que a angústia se multiplique num paroxismo, mas garante que ela será controlada por um fluxo ininterrupto de palavras. Explico.

Mesmo que não haja nenhuma notícia nova, a televisão não pára de reapresentar as mesmas imagens e as mesmas informações. A maioria dos espectadores fica olhando, horas a fio, uma repetição infinita. A repetição das imagens parece impor uma experiência extrema: "Veja e viva o horror até não poder mais; foi ISSO o que aconteceu...".

Mas a repetição dos comentários produz o efeito oposto. Os repórteres e as entrevistas não nos dei- xam sós, nunca: "Console-se, não há horror que não possa ser encoberto por palavras". Quando era criança, eu tinha medo de caminhar à noite, sozinho, no campo; o remédio era cantar em voz alta. Funcionava; assim como funcionam as palavras das reportagens.

Três apartes:

1) Em caso de catástrofe, as propagandas deveriam ser retiradas do ar. A volta periódica dos comerciais é tão intolerável quanto o horror do acidente: qualquer objeto de propaganda se torna um símbolo odioso de nossa leviandade.

2) A vontade de denunciar e achar culpados é justa depois de um acidente. Mas sua pressa é mais uma maneira de cantar no escuro: suprime o tempo da meditação, transformando a dor em raiva. E uma grande parte dessa raiva é projetiva; ela é, de fato, contra nós mesmos, que amanhã subiremos num avião, simplesmente para sair de férias. Queremos logo execrar um culpado para não pensar nem um pouco no custo da vida que inventamos e queremos para nós. Há uma velha "piada" que pergunta assim: se um marciano nos propusesse uma invenção que facilita o transporte de mercadorias e pessoas, mas pedisse, em compensação, que sacrificássemos 400 mil jovens por ano, o que você responderia? Nunca aceitaríamos essa troca indigna, não é? Esse é o número de jovens que morrem, no mundo, em acidentes de trânsito, a cada ano.

3) Um exemplo do efeito-tampão produzido pela urgência da caça ao culpado foi o gesto obsceno de Marco Aurélio Garcia e de seu assistente ao aprenderem que talvez uma falha da aeronave fosse responsável pelo acidente. Àquela altura, para Marco Aurélio Garcia, a questão da culpa e a necessidade de tirá-la das cos- tas do governo já eram as únicas coisas relevantes nessa história. Ele conseguiu, assim, esquecer-se dos mortos (e do avião no qual ele su- birá amanhã).

O exemplo é excessivo, mas pertinente: os burocratas nazistas podiam "ignorar" a carga dos trens destinados aos campos de exter- mínio, preocupando-se somente com o bom cumprimento do horário ferroviário. Volto ao assunto. Nos dias seguintes ao acidente, eu imaginava que o jornal da manhã não me traria nada que eu já não tivesse escutado na televisão ou lido na internet. Velha história: o jornal perdeu a batalha da notícia quente, e isso prometeria seu declínio.

Aconteceu o contrário. Entre os meios de informação, foi o jornal que ganhou. A escrita não tem as "virtudes" duvidosas da palavra oral: ela não espanta os fantasmas. E há uma outra razão.
Penso no especial da Folha do dia 20: os retratos das vítimas, os artigos que contavam brevemente sua vida, que nos diziam por que viajaram, o que elas esperavam e quem os esperava, de quem tinham se despedido, qual desamparo elas deixavam atrás de si, tudo isso devolvia às vítimas uma dignidade concreta que se perdia nas reportagens da TV e da internet.

Acima da indignação, das explicações, das acusações, dos planos para mais segurança no futuro, era nas páginas do jornal que a vida e a morte reais se mantinham e se impunham como o fato inescapável, sem canções para se consolar.

Enfim, um toque de humor negro. No caos aéreo, a gente viaja, mas não sabe quando nem se chega. É um sucesso pedagógico: uma administração que, nesse campo, atua sem compromisso com os cidadãos conseguiu produzir cidadãos à sua imagem, incapazes de honrar seus compromissos.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Brincadeiras radicais



Brincar com a morte pode parecer a única brincadeira que vale a pena, a única séria


"COUNSELING TODAY" (o aconselhamento hoje) é a publicação mensal da American Counseling Association, uma espécie de sindicato norte-americano, que reúne terapeutas de todas as orientações.

No número de maio deste ano, a revista publicou um artigo, de Angela Kennedy, para alertar sobre a difusão, principalmente entre os jovens, de uma prática perigosa: a "brincadeira" da auto-sufocação, também chamada "jogo do desmaio" ou "macaco no espaço".

A prática consiste em produzir uma asfixia temporária em si mesmo ou, quando há mais de um "jogador", num parceiro de quem se espera a recíproca.

O sujeito exerce uma pressão no ponto adequado do pescoço, sobre a artéria carótida, cortando o fluxo de sangue e oxigênio: o cérebro, aos poucos, apaga. O "jogador", aproximando-se do desmaio, sente um formigamento generalizado, mas o ápice da experiência acontece quando a circulação é liberada e o sangue volta com força para o cérebro.

Existem variantes da "brincadeira". A diminuição de dióxido de carbono no sangue produzida por hiperventilação, ou seja, respirando rápida e profundamente durante um bom tempo. Ou, então, seu oposto: a asfixia produzida fechando um saco plástico ao redor da cabeça.

Também há outras maneira de praticar a "brincadeira" básica. A mais perigosa, obviamente, acontece quando, em vez de pressionar a carótida, um "jogador" solitário usa uma corda ou um cinto para apertar seu próprio pescoço. Segundo o artigo, seria necessário revisar as estatísticas dos suicídios por enforcamento, considerando como possíveis casos de "brincadeira" malograda as situações em que o sujeito se enforcou sem pular no vazio, mas amarrando corda ou cinto à altura do pescoço e dobrando as pernas para se estrangular progressivamente.

Salvo acidente (danos cerebrais irreversíveis e, eventualmente, morte), essas práticas são difíceis de ser detectadas. Freqüentemente, os "jogadores" são adolescentes sem problemas, bem integrados na escola e no grupo. Ao não ser que um jovem passe de repente a usar gola alta ou echarpe no pescoço para esconder marcas ocasionais, os sinais de alerta indicados pelo artigo são consistentes com qualquer adolescente (vontade de se trancar no quarto, dor de cabeça, irritabilidade etc.).

Quem quer saber mais pode consultar o site www.stop-the-choking-game.com (com atalhos para outro sites) ou, para verificar que o fenômeno não é apenas norte-americano, ler um artigo francês sobre o tema, no "Journal de Pédiatrie et de Puériculture" (vol. 19, nº 8, dezembro de 2006).

A prática era conhecida há tempo, embora silenciada para que não se difundisse. A American Counseling Association preferiu agora informar a comunidade.

Na minha clínica, só encontrei um caso (que, por sorte, não acabou em desastre). Pensei nele recentemente. Viajando pela Itália, poucas semanas atrás, assisti à cena seguinte. Adolescentes espanhóis em excursão, sentados no chão na Piazza del Campo de Siena, comportavam-se como idiotas. Atiravam nos pombos com armas de brinquedo que acabavam de comprar, falavam besteiras em megafones que também acabavam de comprar e enchiam de lixo o chão ao redor deles, embora estivessem a três passos de uma lixeira. Zombaram repetidamente de cidadãos que tentaram acalmar sua estupidez. Enfim, um lixeiro, indignado, largou sua vassoura e saiu à procura de um policial. Embora eles entendessem a ameaça, não pararam de zoar.

Antes que o policial chegasse, eis que entrou na Piazza, perto do lugar onde eles estavam acampados, um funeral: primeiro vinha um padre, logo o caixão, transportado por seis homens, e a viúva e os filhos, chorando. Nos cafés, as pessoas se levantaram, por respeito. Os jovens espanhóis emudeceram, guardaram em suas caixas arminhas e megafones; um deles juntou os restos de pizza e as garrafas vazias e levou tudo para a lixeira.

Moral da história? A morte é uma coisa séria; talvez, como dizia Freud (e não só Freud), ela seja o único mestre absoluto de nossa vida. Brincar com a morte, de repente, pode parecer a única brincadeira que vale a pena, por ser uma "brincadeira" realmente séria (nada a ver com jogos virtuais ou armas de plástico).

Agora, de vez em quando, pensar na morte pode também nos ajudar a levar a vida mais a sério.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

"Ratatouille" e o desejo


Quando o caminho do nosso desejo parece árduo, devaneamos para não agir

CHEGAM AS férias escolares, e os filmes para crianças invadem as salas.
Em "Harry Potter e a Ordem da Fênix", pré-adolescentes e adolescentes encontrarão mais uma chance para sonhar que eles são órfãos, bruxos e heróicos. Outros preferirão o "Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado" e se imaginarão dotados de poderes descomunais.

Nenhum problema: o devaneio, além de ser prazeroso, é um dos caminhos pelos quais se enveredam e se desenvolvem nossos desejos. Mas devanear e desejar não são a mesma coisa. Ao contrário, devanear pode ser um jeito de contornar o nosso desejo, ou melhor, de celebrá-lo aparentemente (de olhos abertos ou fechados), mas sem pagar o preço de sua realização e sem correr o risco do malogro de nossos esforços. Em suma, sobretudo quando o caminho de nosso desejo parece árduo e improvável, devaneamos para não agir.

Por isso, gostei de um outro filme para crianças, que estreou na semana passada, "Ratatouille", de Brad Bird. Essa animação, da Pixar, conta a história de Remy, um rato que deseja ser chef de cozinha.

Se você fosse um rato e quisesse ser chef, qualquer orientador lhe daria o conselho seguinte: esqueça e sonhe com algo diferente. Afinal, numa cozinha, não tem bicho menos indicado do que um rato. A vigilância sanitária fecha os restaurantes freqüentados por roedores; imagine o que ela faria com um restaurante capitaneado por um rato. Sua família também faria o impossível para que você mudasse de idéia. Rato pode comer restos e lixo ou se insinuar nas despensas e dar umas mordidas nos suprimentos, mas cozinhar alimentos? Inventar sublimes combinações de sabores?

Preparar amorosamente pratos tão bonitos quanto suculentos? Isso, convenhamos, não é coisa para rato. Ora, Remy é cabeça dura. Ele está disposto a desafiar a autoridade paterna, o conforto do clã e as convenções sociais, que lhe são francamente desfavoráveis. Não é porque sente o apelo do sucesso ou imagina futuros lucrativos. É porque cozinhar, para ele, significa dedicar-se ao que ele sabe fazer, realizar quem ele é.

Tempo atrás, escrevi uma crônica sobre a pouca ousadia dos desejos de nossos jovens. Pois bem, como antídoto, prescrevo "Ratatouille" a todos, crianças e pais. Quando pensamos no futuro de nossos rebentos, temos, em geral, uma visão limitada, preocupada com a "possibilidade" de seus desejos. Na maioria dos casos, preferimos que eles tenham desejos "plausíveis".

Parece lógico. Mas o problema é que medimos esse "plausível" a partir da lição de nossos próprios limites ou fracassos. Isso, sem mencionar nossa vontade de guardar os filhos por perto e, eventualmente, nossa inveja, que é inconfessável, mas existe: nem sempre é fácil aceitar que nossos filhos inventem para si uma vida melhor do que a nossa.

O rato que ambiciona ser chef de cozinha é como o menino que pretende se tornar escritor, ator, violinista ou astronauta. Em geral, nos filhos que desejam uma vida que atropelaria a cerca de casa, a resistência dos pais encoraja uma hipertrofia do devaneio, que compensa o abandono dos sonhos "extravagantes". Este é o recado: "Seja razoável em seus desejos e solte-se no devaneio", "Resigne-se ao plausível e, em compensação, alugue DVDs ("Harry Potter" ou o "Quarteto", por exemplo) para o fim de semana". Os devaneios do domingo consolarão e inibirão o anseio "louco" de correr atrás de aspirações incomuns.

É possível entender "Ratatouille" como uma apologia da sociedade aberta, com oportunidades para todos: até um rato, com dedicação e persistência, pode se tornar chef. Mas, antes disso, o filme é uma homenagem à coragem de quem se autoriza a procurar a vida que ele quer. A história de Remy não inspira devaneios de glória culinária. Se o filme nos faz sonhar, é com a galhardia de quem não larga o osso (o queijo, no caso) de seu desejo.

Mais uma coisa: "Ratatouille" é também um excelente filme sobre a arte de cozinhar. É bem provável que, para quase todos, a primeira gratificação tenha sido oral. Afinal, o seio e a chupeta nos foram impostos como respostas universais a qualquer choro. O grande cozinheiro é aquele que, ao mesmo tempo, evoca em nós a lembrança das primeiras gratificações e nos surpreende com uma experiência sensorial inédita, inesperada. A cozinha é isto: a arte de nos dar a satisfação mais primitiva de uma maneira nova.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Quadrilhas de canalhas


Está com medo de tornar-se doméstica ou prostituta? Bata em pobres, índios e putas

EM POUCAS linhas, na Folha de sexta, dia 29 de junho, Eliane Cantanhêde descreveu perfeitamente o mundo no qual é possível que rapazes de classe média queimem um índio pensando que é "só um mendigo" ou espanquem uma mulher pensando que é "só uma prostituta". Provavelmente, não teria sido muito diferente se eles tivessem pensado que era só uma empregada doméstica.

É um mundo em que a permissividade é o melhor remédio contra a inevitável insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa para que seus rebentos acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os adultos encontram para acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles mesmos gozam de privilégios garantidos e incontestáveis. Como escreveu Maria Rita Kehl no Mais! de domingo passado, nesse mundo, aos inseguros não basta ser cliente, é preciso que eles sejam clientes especiais.

Uma classe média insegura é o reservatório em que os fascismos sempre procuraram seus canalhas. Você está com medo de perder seu lugar e, de um dia para o outro, tornar-se índio, mendigo ou empregada doméstica? Pois é, pode bater neles e encontrará assim a confortável certeza de seu status. Aos inseguros em seu desejo sexual, aos mais apavorados com a idéia de sua impotência ou de sua "bichice", é proposto um remédio análogo. Você provará ser "macho" batendo em "veados" e prostitutas.

Há mais um detalhe: a inteligência humana tem limites, a estupidez não tem. Essa diferença aparece sobretudo no comportamento de grupo. Imaginemos que a gente possa dar um valor numérico à inteligência e à estupidez. E suponhamos que o valor médio seja dois. Pois bem, três sujeitos mediamente inteligentes, uma vez agrupados, terão inteligência seis. Com a estupidez, a coisa não funciona assim: a estupidez cresce exponencialmente. A soma de três estúpidos não é estupidez seis, mas estupidez oito (dois vezes dois, vezes dois). Quatro estúpidos: estupidez 16. Cinco: estupidez 32.

Curiosamente, essa regra vale até chegar, mais ou menos, a um grupo de dez. Aí a coisa tranca: a partir de dez, torna-se mais provável que haja alguém para discordar da boçalidade ambiente. Não porque, entre dez, haveria necessariamente um herói ou um sábio, mas porque, num grupo de dez, quem se opõe conta com a séria possibilidade de que, no grupo, haja ao menos um outro para se opor junto com ele.

Esse funcionamento, por sua vez, decai quando o grupo se torna massa. É difícil dizer a partir de quantos membros isso acontece, mas não é preciso que sejam muitos: um grupo de linchamento, por exemplo, pode desenvolver toda sua estupidez coletiva com 20 ou 30 membros.

Em alguns Estados dos EUA, é permitido dirigir a partir dos 16 anos. Mas, em muitos condados desses Estados, vige uma lei pela qual um jovem, até aos 21 anos, só pode dirigir se houver um adulto no carro. Pouco importa que esse adulto seja habilitado a se servir de um carro. O problema não é a perícia do motorista, mas o fato estatístico de que três, quatro ou cinco jovens num mesmo carro constituem um perigo para eles mesmos e para os outros: o grupo de "amigos" potencializa a estupidez de cada um, muito mais do que sua inteligência. Talvez seja por isso, aliás, que, para o legislador, a formação de quadrilha é um crime em si.

Qualquer pai de adolescente reza ou deveria rezar para que seu filho encontre rapidamente uma namorada e passe a sair na noite com ela, não com a turma dos amigos. Pois a turma é parente da gangue.

Como se sabe, o pai de um dos cinco jovens que, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto, comentou, defendendo o filho: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?". É o desespero de quem sente seu privilégio ameaçado: como assim, tratar a gente como qualquer um?

Não éramos "clientes especiais"?

Mas as frases revelam também a distância entre o filho que o pai conhece em casa (o filho que teria "caráter") e o filho que se revela na ação do grupinho (esse filho não tem "caráter" algum).
O que precede poderia ser entendido como uma atenuante, tipo: eles agiram assim não por serem canalhas, mas por estarem em grupo. Ora, cuidado: o grupo não produz, ele REVELA os canalhas.

domingo, 1 de julho de 2007

Acabou "Celebridade"



Na sexta-feira passada, na hora do último capítulo de "Celebridade", estava festejando o casamento de Alexandre e Sílvia, amigos queridos. Depois da cerimônia e das valsas, nas conversas de mesa, já era conhecido o desfecho: Laura matou Lineu, Laura e Marcos morreram, Renato foi para a cadeia. Surgiram tantas perguntas que foi preciso entrevistar por celular alguém que assistira ao episódio: o que aconteceu com Ana Paula? A Darlene, a Jacqueline? E o Cristiano, a Beatriz?

Mais tarde, na frente da casa do Pacaembu onde acontecia a festa, a novela foi o tema de minha conversa com os seguranças e os motoristas do "valet parking".

No sábado, novos comentários no café onde almoçamos, no táxi que me levava até uma livraria e com o vendedor que lá me atendeu. À noite, com um casal de amigos, o programa foi risoto e reprise do último capítulo. Deu um bom papo. Isso sem contar as mensagens sobre o fim da novela que os internautas iam postando nos blogs abertos para a ocasião.

Não assisto às novelas com regularidade. Com a exceção de "Terra Nostra" (que curti integralmente nas fitas que são distribuídas pelas lojas brasileiras dos EUA), vejo, em média, três capítulos por mês de cada novela das oito. É suficiente para ter uma idéia da evolução da trama e para não ficar a ver navios quando alguém evoca uma personagem ou um tema da novela em curso.

O que mais me interessa (e admiro) nas novelas é sua função nas conversas cotidianas. Acho extraordinário que, durante meses, uma mesma história esteja ativamente presente no imaginário da maioria.

Há os que não perdem um capítulo e mal se lembram de que se trata de uma ficção; e há, no outro extremo do leque, os que não conseguem mencionar a novela sem manifestar desprezo ou condescendência. Mas, salvo considerar que a própria existência do Brasil como nação seja um infortúnio, todos (ou quase) reconhecem que as novelas tiveram e têm um papel crucial na unificação do país, fornecendo narrativas comuns do Oiapoque ao Chuí e das favelas às mansões.
Claro, elas propõem os ideais urbanos de consumo às massas rurais ou desfavorecidas, assim como, às vezes, idealizam o campo e as vilas para as massas citadinas. Mas, com isso, elas nos levam a incluir vidas diferentes no nosso repertório de histórias possíveis.

Voltemos às conversas que escutei ou das quais participei nesses dias. Eis uma pequena amostra das questões levantadas.

Marcos: merecia a mesma punição que Laura? Como medir os graus de maldade: pela (relativa) moderação nos atos (nesse caso, Marcos é menos culpado)? Ou pelo cinismo das motivações (nesse caso, Laura, pelo ódio que a anima, é menos culpada)?

Beatriz: era do mal ou do bem? Ou seja, o amor (por um parceiro ou por um filho) pode ser uma "desculpa"?

Daniel: estragou ou não estragou o filho, Paulo César? Será que, quando tentamos compensar um abandono passado, estamos sobretudo comprando a absolvição de nossa culpa?

Maria Clara: tinha direito de se aproveitar do amor de Hugo? Ainda bem que Hugo ganhou uma viagem a Florianópolis com Ana Paula Arósio.

Cristiano: se ficasse sozinho, seria bem feito. Quem não tem a coragem de enxergar o amor dos outros e de declarar o seu, que se dane.

Vladimir: será que é verdade que todo brasileiro quer ser anônimo? E será que ser anônimo é condição de ser feliz? Não é uma história que contam os famosos para nos consolar?

Darlene: qual das duas é verdadeira, a que se alegrava com o incêndio que quase matou suas crianças, dando-lhe um momento de primeira página? Ou a que renuncia ao papel numa novela de Sílvio de Abreu para cuidar dos seus bebês? Será que há mesmo uma alternativa entre sucesso e amor materno? Será, em suma, que o mundo comandado pela revista "Fama" é um clube de celibatários?

Inácio e os filhos de Ana Paula: o que é amor de mãe e de pai? Coisa de sangue ou coisa de coração?

Explosão de papo noveleiro? Certo, mas o fato é que, em matéria de moral, as grandes fórmulas fracassam sempre. Na complexidade do dia-a-dia, a sabedoria moral é feita de parábolas, de exemplos e contra-exemplos. A capacidade de decidir o que é justo depende da variedade de nosso repertório de experiências e de histórias. Ou seja, depende da riqueza de nossa cultura.

Alguns se indignaram com a presença de Gilberto Gil na festa conclusiva do último capítulo. Não entendo. Acaba uma vasta ficção que leva o povo inteiro (ou quase) a discutir sobre os casos da vida e sobre as incertezas morais que os acompanham: se o ministro da Cultura não deve cantar e tocar nessa ocasião (sendo que ele faz isso muito bem), não sei quando deveria.

Enfim, a quem objetasse que as novelas vão e vêm sem constituir nenhum repertório de narrativas que nos sirvam para a vida, respondo com o comentário de um internauta quando, antes de sexta, choviam palpites sobre quem seria o assassino de Lineu. Ele escreveu: "Eu sei, foi Odete Roitman".

quinta-feira, 7 de junho de 2007

"Zodíaco"



O anseio paranóico por um sentido enriquece nossa vida. Mas sempre sobram fios soltos

UM AMIGO querido (que morreu 20 anos atrás e foi meu parente durante um tempo) era engenheiro e mestre de obras. Ele viveu em vários lugares dos EUA e, quando eu o conheci, morava em Houston, Texas. Chamava-se Robert (Bob) Bond (nada a ver com Bob Bond, o artista gráfico).

Aprendi com ele um monte de coisas. Em particular, ele me ensinou a pescar. Mas é por uma outra razão que me lembrei dele assistindo a "Zodíaco", o filme de David Fincher (o diretor de "Seven") que estreou na sexta passada.

Nas horas vagas, Bob Bond era artista; ele produzia (e oferecia) suas obras só para amigos e próximos, um quadro para cada um. Todos seus quadros se chamavam, numa mistura de inglês e espanhol, "Fonction Passado" e se diferenciavam pela numeração. Eu, por exemplo, ganhei "Fonction Passado 11".

Bob Bond procedia assim: observava o destinatário do quadro durante um tempo e acumulava objetos descartados que (ao seu ver) tinham um relação com a história do sujeito. Logo, fixava esses objetos a um painel de madeira, pintava e, toque final, conectava os objetos entre si com um fio. O resultado final se parecia com a teia em que uma aranha teria preso, de maneira múltipla e complexa, os restos de uma vida.

Quando me entregou meu quadro, Bob explicou que o fio indicava que os elementos de nossas vidas são mais interligados do que parece.

Como havia, no quadro, alguns fios que permaneciam pendurados, desconectados, perguntei o porquê, e Bob me disse, com seu bom senso habitual, que, numa vida, sempre sobram "loose strings", fios soltos.

Pois bem, "Zodíaco" conta a história real de um policial, de um repórter e de um cartunista que, em San Francisco, nos anos 70, tentaram identificar (e prender, claro) um assassino em série, que se autodenominava Zodíaco.

O filme é a tocante história de três vidas arrebatadas pela procura da verdade ou, talvez fosse melhor dizer, pela paixão do sentido. Uma investigação policial (ainda mais no caso do Zodíaco, que deixava propositalmente pistas e mensagens cifradas) é um pouco como um trabalho de Bob Bond: uma vez achadas as peças, é preciso interligá-las. Quase sempre, aliás, quem investiga crava na parede documentos e lembretes, peças do quebra-cabeça na espera do momento em que se tornará possível enxergar o fio que as junta, resolvendo o enigma.

Nos primeiros anos de minha psicanálise, era isso que eu fazia. Meu quarto-e-sala parecia uma central de investigações: bilhetes com relatos de sonhos, pesadelos e devaneios, fragmentos de lembranças, intuições ou interpretações enchiam as paredes como indícios policiais dos quais esperava que revelassem, um dia, seus laços arcanos e, enfim, o sentido da minha vida.
Jacques Lacan, o psicanalista francês, dizia que o tempo inicial de uma psicanálise é uma espécie de paranóia, uma "paranóia dirigida".

O pensamento paranóico é animado pela convicção de que tudo é conectado, de que deve haver, em suma, uma solução do enigma, que nos diria por que somos quem somos e por que o mundo é como ele é.

Aparte: desse ponto de vista, os protagonistas de "Zodíaco" são estranhamente contidos; procurando um assassino chamado Zodíaco, nunca se aventuram na tentativa de encontrar a revelação do culpado na disposição dos astros.

De uma certa forma, o entusiasmo do pensamento é sempre um pouco paranóico. Mas Lacan dizia também que uma psicanálise dá certo quando a paranóia se esgota, e conseguimos enfim encarar a constatação, um pouco decepcionante e assustadora, de que nada se explica até o fim: há vasos de flores que caem na nossa cabeça sem ter sido empurrados por ninguém, nem por nós nem pelos outros nem pela providência divina nem por malefício diabólico.

Nisso, "Zodíaco", o filme, é perfeito, pois nos conta uma procura parecida com a nossa, até no detalhe (crucial) da frustração final. Não há conclusão definitiva, só indícios. Resta que a procura do sentido (que não foi encontrado) deu sentido, durante um tempo, à vida dos investigadores. Um pouco de paranóia enriquece nossa vida.

Agora, como diria Bob Bond, por mais que a gente teça nossa teia de aranha, sempre há fios soltos.

Saio de férias até julho. É um jeito de falar: na verdade, viajo para a terra de minha infância para tentar tecer o fio que talvez ligue alguns cacos da minha história.

quinta-feira, 31 de maio de 2007

Vidas bem vividas


Há vidas que despertam o aplauso. Elas merecem ser contadas, pois foram vividas sem medo

N A SEMANA passada, o teatro da Federação do Comércio do Estado de São Paulo mudou de nome. Chama-se agora teatro Raul Cortez.

Na realidade, a mudança já tinha acontecido na estréia da peça que está atualmente em cartaz no teatro, "Às Favas com os Escrúpulos", uma comédia de Juca de Oliveira, com a direção de Jô Soares e uma imperdível Bibi Ferreira. Ninguém melhor que um ator como Jô Soares para dirigir uma grande atriz, para deixá-la livre de dizer tanto (e de ser irresistivelmente engraçada) com uma atuação quase pudica. (Aparte. Atua também na peça Adriane Galisteu, que é sempre julgada como se o fato de ser apresentadora e modelo fosse um handicap; pois é, ela está ótima).
Enfim, na estréia da peça, na sexta retrasada, antes que começasse o espetáculo, foi projetado um breve filme de lembranças de Raul Cortez, que morreu há pouco menos de um ano, aos 73. No fim do filme, a gente aplaudiu longamente. Logo depois, aplaudimos a entrada em cena de Bibi Ferreira.

No meu caso (e imagino que fosse assim para muitos outros na platéia), não se tratava apenas do aplauso elogioso pela maestria da atriz -esse, obviamente, veio no fim da peça. As palmas iniciais me lembraram as que talvez ainda acolham, a cada noite, a aparição de Paulo Autran na cena do "Avarento": um aplauso que parece ser de agradecimento. Pelo quê? Não sei se Diderot (no "Paradoxo sobre o Comediante") tinha razão ou não. Pode ser que, como ele propunha, o ator seja um intelectual frio que silencia e controla suas paixões para estudar as expressões do sentimento humano a fim de reproduzi-lo. Pode ser que, ao contrário, o ator se esgote a cada vez, vivendo intensamente emoções que ele não imita, mas das quais ele se apropria.

Tanto faz. É provável que não haja regra, e a coisa dependa do ator, do papel e do momento. De qualquer forma, o ator se esgota ou se controla para nos oferecer o espetáculo da diversidade e da complexidade de paixões que são as nossas e que, sem o ator, não saberíamos reconhecer. O ator, de uma maneira ou de outra, revela-nos a nós mesmos. E podemos lhe ser gratos por isso.
Mas há mais. Talvez, o aplauso suscitado pelo breve filme sobre Raul Cortez tivesse também outra significação, igualmente presente no aplauso da entrada em cena de Bibi Ferreira ou de Paulo Autran -os quais, claro, estão bem vivos entre nós (e se espera que assim continuem por muito tempo), mas numa idade que encoraja a avaliação do caminho que eles percorreram. Talvez trate-se, nesses casos, do aplauso por uma vida bem vivida.

Por que, às vezes, estou a fim de aplaudir uma vida? Esse tipo de aplauso não expressa apenas a gratidão e o elogio reservados a quem se dedicou generosamente aos outros nem o encômio destinado a quem deixou no mundo uma obra ou uma marca duradouras. Tampouco estou a fim de aplaudir porque uma vida me parece ter alcançado uma forma qualquer de bom êxito material ou espiritual.

Tudo isso, claro, pode alimentar minha admiração, mas o aplauso, justamente por seu caráter teatral, é desencadeado por algo mais, algo que aparecia no pequeno filme sobre Raul Cortez e que poderia ser resumido assim: aquela vida vale a pena ser contada.

Não é fácil definir o que faz que uma vida tenha essa qualidade estética ou poética que lhe dá, por assim dizer, a grandeza e a dignidade de um romance. Não é a felicidade nem o sucesso, nem o caráter extraordinário dos eventos; uma vida pode ser uma série de fracassos, mancadas e tristezas, pode também ser trivial e, no entanto, valer a pena ser contada.

Talvez a qualidade poética de uma vida que desperta o aplauso esteja na sensação de que seu protagonista foi animado por uma obstinada fidelidade ao desejo: seja qual for a distribuição das cartas pelo acaso ou pelo destino, ele jogou bem porque jogou sem medo de jogar. Na hora de nos despedir de alguém que nos é querido, choramos nossa perda, e é normal que seja assim. Mas deveríamos festejar, quando der, a "beleza" de sua vida. E chorar, quando for o caso, as vidas que se perdem não pela morte, mas pela morte-em-vida -as vidas, em suma, dos que não conseguiram ser atores de suas próprias vidas.

Esta coluna é escrita em homenagem a Octavio Frias de Oliveira, com quem, infelizmente, ao longo destes anos, apenas cruzei. Mas fiquei um tempo lendo a história de sua vida.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Devaneios papais



Faz tempo que, em vez de um discurso moral, católicos ouvem litanias em defesa da "doutrina"

NA VISITA do papa, aconteceu o que era previsto: o trânsito de São Paulo piorou, frei Galvão virou santo, o pontífice estigmatizou o aborto, o divórcio, o "hedonismo" contemporâneo, o marxismo, o capitalismo, as "seitas", as "religiões pré-colombianas" etc.

A surpresa foi o comportamento do presidente Lula e do ministro da Saúde, José Temporão: ambos foram perfeitos, defendendo a laicidade do Estado a que eles servem. Lula, o cidadão, poderia beijar o anel do papa; Lula, o presidente, não podia e não o fez. Temporão evitou o debate moral sobre o aborto e lembrou que se trata, para ele e para o governo, de um problema de saúde pública.

Sem diminuir o mérito de ambos, a tarefa do presidente e do ministro foi facilitada pela trivialidade do desempenho papal.

Escutei e li as falas do pontífice ao longo destes dias com um tédio crescente: nunca fui surpreendido por uma daquelas marcas de tormento, de conflito e de contradição que são, para mim (e não só para mim), os indicadores mínimos de uma disposição moral diante da complexidade do mundo. As exortações papais eram circulares administrativas, tão previsíveis e preestabelecidas quanto as preces do rosário. Ora, o rosário pode agradar a Deus e ajudar aos que, na devoção, não encontram suas próprias palavras, mas, certamente, a repetição das contas não estabelece a autoridade moral de ninguém.

Em sua primeira visita papal ao Brasil e à América, o papa passou a noite no mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo. Não há lugar melhor para refletir sobre a estranha história que, em poucos séculos, transformou uma aldeia indígena num acampamento bandeirante e, enfim, numa das maiores metrópoles do mundo. Em vez de preocupar-se com o hábito adolescente de "ficar" (êta questão insossa para suplemento de domingo em falta de pauta), o papa poderia ter confiado nos jovens e adotado as mil perguntas "ingênuas", profundas e perplexas que justamente passariam pela cabeça de qualquer adolescente ao transcorrer uma noite no mosteiro (por mais que, nas festas, ele "fique"): perguntas sobre o que foi ganho e o que foi perdido, sobre o que é a América, sobre o rumo de nossa história, sobre a dificuldade de dizer onde estiveram (e estão) o bem e o mal. Mas, pelo que o papa manifestou da experiência das noites passadas no mosteiro, ele deve ter dormido mesmo.

Além de repetir as palavras de sempre sobre a santidade da vida desde o embrião, o papa, por uma vez, poderia ter pensado numa jovem estuprada ou numa mulher (devidamente casada) incapaz de alimentar seus três, quatro ou cinco filhos, ambas batendo os dentes pela dor e pela infecção que já começa, na clínica improvisada de um abortista apressado.

Quem sabe, sem desistir de seus princípios, ele pudesse se perguntar onde estaria, naquela hora, o Cristo dos evangelhos: só na porta, desdenhoso, jogando anátemas, ou também (sem contradição) ao lado das mulheres, secando seu suor e falando palavras de conforto?

Da mesma forma, não sei se o Cristo dos evangelhos, passeando por nossas bandas nos anos 80 (numa ficção à la Dostoievski), teria distribuído camisinhas na entrada de uma sauna gay ou seringas descartáveis nos becos preferidos pelos heroinômanos. Talvez não, mas imagino que ele teria estado ao lado dos moribundos nas mil enfermarias, pelo mundo afora, em que os médicos não sabiam o que fazer. Também imagino que, nesta ocasião, o Cristo teria meditado sobre o coquetel de liberdade (sem a qual os atos não valeriam nada), desamparo, razão e impulsos que é a condição humana.

Como notaram Fernando de Barros e Silva, Fernando Rodrigues e Sérgio Costa na Folha de segunda, faz tempo que os católicos não ouvem um discurso moral que não seja apenas a litania abstrata do que parece recomendável para a defesa da doutrina e a perpetuação da Igreja como instituição.

Eu esperava o quê? Um blablablá de tolerância modernosa? Não; apenas um discurso cuja origem fosse, reconhecidamente, aquele lugar íntimo, dividido e complicado ao qual cada um de nós recorre na hora de tomar as decisões que importam.

Alguém dirá que, justamente, o papa não fala desse lugar. Ele não é um homem, é o papa - prova disso, ele é infalível.

Pode ser, mas, talvez seja por isso mesmo que o papa tenha passado, falado, e nada tenha acontecido.

Um desperdício.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Ajudar é difícil

O que fazer para ajudar um vira-lata desconfiado que queira atravessar, à noite, a av. Sapopemba?

NUMA MADRUGADA recente, entre sexta e sábado, levei um amigo para sua casa na zona leste de São Paulo. No fim, às duas da manhã, encontrei-me estacionado na avenida Sapopemba, na frente do terminal rodoviário, só que do outro lado, no sentido centro-bairro. Chovia uma chuva de inverno, fina e contínua.

Naquela altura da avenida, há dois barzinhos com samba ao vivo e, ao lado, uma carrocinha de churrasco.

Na calçada, por causa da chuva, só havia dois bêbados idosos que festejavam balançando precariamente.

No meu retrovisor esquerdo, apareceu, entre os carros estacionados atrás de mim, um vira-lata preto e magro, com a pata anterior direita quebrada. Ele tentava atravessar a avenida. Aventurava-se, mancando, na pista, mas, assustado pelos faróis dos carros que chegavam rápidos e sem interrupção, ele recuava precipitadamente. Duas vezes seguidas, fechei os olhos, imaginando que o cachorro seria esmagado. Mas ele conseguiu voltar atrás a tempo.

O que havia do outro lado da avenida que o levava a tentar aquela travessia suicida? Talvez um restaurante amigo que deixa os restos para os vira-latas, talvez uns amigos ou uma cadelinha com a qual ele sonhava. O fato é que ele queria atravessar.

Eu não tinha guarda-chuva. Melhor assim: os vira-latas desconfiam de qualquer objeto que se pareça com um bastão. Desci do carro e chamei sua atenção: "Pssss, cachorro". Olhou para mim, perplexo: "O que este idiota quer de mim?".

Se tentasse parar o trânsito para ele atravessar, acabaríamos ambos esmagados. Ou talvez só eu, o que tampouco seria um desfecho ideal.

Usar meu cinto como uma coleira e ajudá-lo a atravessar parecia uma boa idéia, só que, antes que conseguisse prendê-lo, ele me morderia, com razão. Ganhar sua confiança para que aceitasse atravessar caminhando do meu lado, como faziam meus cachorros, levaria um mês de treino.

Decidi criar uma diversão que o convencesse a ficar deste lado da avenida. "Cachorro, vem cá", chamei. E fui me aproximando da carrocinha do churrasco, fazendo o necessário para que ele não me perdesse de vista. Os dois bêbados deviam achar que estava mais bêbado do que eles. Nesta altura, o cachorro mantinha uma distância prudente, mas estava interessado e tinha desistido de atravessar.

Comprei dois espetinhos, agachei-me e dispus um primeiro pedaço de carne sobre um guardanapo de papel, no chão. Recuei, agachado, para que ele se sentisse seguro e avançasse para abocanhar a carne. Avancei para servir o segundo pedaço, e ele recuou. Ficamos nessa coreografia, ele para trás, eu para frente e inversamente, até o fim dos pedaços que tirei dos espetos. Estiquei minha mão esquerda.

Desta vez, ele avançou e cheirou minha mão. A articulação da pata quebrada era literalmente virada no sentido errado. Não tentei acariciá-lo, algo me dizia que ele acharia meu gesto abusivo, agressivo.

Poderia ligar para uma colega psicóloga que se ocupa da zoonose nos animais de rua. Mas, se ligasse, às duas da manhã, por esta "urgência" na avenida Sapopemba, ela se preocuparia mais comigo do que com o cachorro; além disso, o que ela poderia fazer que não destinasse o cachorro a uma morte que ele certamente não estava pedindo?

E se eu levasse o cachorro para casa? Talvez um veterinário conseguisse endireitar sua pata. Talvez nos tornássemos bons amigos. Mas quem diz que o cachorro quisesse se tornar um enfeite doméstico? E eu ia fazer o quê com todos os próximos cachorros que encontraria no meu caminho? Fundar um abrigo?

Disse: "Cachorro, não atravessa agora, entendeu? Fica deste lado, que é melhor". Subi no carro e saí lentamente, de olho no retrovisor para ver se meu amigo voltava ou não às suas tentativas perigosas de atravessar a avenida. Avancei até o retorno e tomei o caminho do centro. Ao passar de novo na frente da rodoviária, cruzei os dedos, esperando que ele não estivesse morto no meio da pista. Não estava. Não o vi mais.

No longo caminho de volta, liguei a calefação ao máximo para secar minha roupa e meus ossos encharcados. Estava com a sensação de ter protagonizado uma espécie de frustrante parábola sobre a dificuldade de ajudar o próximo.

Tudo bem, daqui alguns dias, não vai sobrar nada daquela noite. Só esta coluna e, no meu carro, o cheiro deixado pelo longo trajeto com minha roupa úmida, um cheiro de cachorro molhado.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

"O Sol se Põe em São Paulo"

O barulho de fundo da metrópole americana é o burburinho de mil histórias engasgadas

O ÚLTIMO romance de Bernardo Carvalho, "O Sol se Põe em São Paulo" (Companhia das Letras), começa com a fotografia de Antônio Gaudério que se estende por capa e contracapa: é uma visão de São Paulo coberta por uma nuvem que, ao mesmo tempo, oprime e engrandece a cidade (como se sua existência fosse um desafio).

Logo, acontece o seguinte: num restaurante do bairro da Liberdade, a senhora japonesa que está no caixa pede a um cliente (o narrador) que ele escute e escreva a história de sua vida no Japão. A maior parte dos fatos narrados acontece, portanto, no Império do Sol Levante, uma parcela do qual veio se pôr em São Paulo.

Os romances de Bernardo Carvalho ("Nove Noites", "Mongólia") são janelas sobre universos distantes.

Ler é um pouco como alistar-se na marinha: a gente viaja e vê o mundo.

Desta vez, não é diferente: o leitor descobre um Japão sutil, contraditório e inesperado. No entanto, para mim, o tema do livro não é o Japão, é São Paulo ou qualquer metrópole das Américas, do Norte ou do Sul.

Raramente, aliás, um romance me pareceu captar de maneira tão comovedora a essência da metrópole americana.

Nos primeiros dias depois da leitura, jantando com amigos nos restaurantes de sushi da Liberdade, tornei-me um péssimo comensal. Os amigos conversavam, e eu não prestava atenção, ficava olhando (discretamente) para a mulher atrás do caixa do restaurante. Era japonesa? Nissei, sansei? Onde (nela, nos pais ou nos avós?) e como teria acontecido ou estaria acontecendo o choque da imigração? De qual história de seu passado ou dos ascendentes ela seria a depositária silenciosa?

Amo as metrópoles americanas (do Norte ou do Sul, dá na mesma) por elas serem os bancos de areia onde jazem, respirando a duras penas, os sonhos de milhões de homens e mulheres, como baleias encalhadas.

Não esqueço meus passeios, em tardes de verão dos anos 60, pelas ruas do Queens, do Brooklyn ou do Bronx: sentados em cadeiras de plástico ou nos degraus que levam à porta dos edifícios, com uma cerveja gelada ou um sorvete na mão, lá estavam os representantes ou os restos de fantasias de uma vida melhor, mais livre, mais rica e mais feliz. Da Ásia, da África, da América Central ou do Sul, da Europa, seus pais, avós, bisavós ou seus ascendentes longínquos tinham fugido a miséria, a opressão, a perseguição ou simplesmente o tédio e seguido um sonho de glória, paz, liberdade, bem-estar e riqueza. Para outros, descendentes de escravos, no lugar do sonho, devia estar o pesadelo do rapto, do cativério e do transporte forçado (com a obrigação de inventar novos sonhos, de zero).

Essas fantasias (frustradas ou realizadas) assim como os pesadelos de quem foi trazido à força são, antes de mais nada, histórias que raramente são contadas. Talvez esta seja uma condição necessária da América, um preço implicitamente cobrado na entrada: um esquecimento da vida antes da viagem, do trajeto, da ruptura e também dos sonhos (bons ou ruins, conscientes e inconscientes) que decidiram ou acompanharam a viagem.

O barulho de fundo da metrópole americana, aquele murmúrio indefinível que você escuta sempre, quando abre a janela, mesmo de madrugada, não é o dos carros que ainda circulam, da atividade da cidade "que nunca dorme"; talvez seja o burburinho de milhões de histórias engasgadas, que tentam se dizer e não conseguem.

Em suma, o sol levante de Setsuko, a protagonista de Bernardo Carvalho, não é o único que se põe em São Paulo e nas outras metrópoles americanas.

Há uma estranha proximidade entre o trabalho do terapeuta e o do escritor (talvez fosse melhor dizer escriba), que tem a incumbência de escutar, talvez decriptar (ou, por que não, inventar) as histórias que os outros são impedidos de contar.

Um dia, ainda escreverei um ensaio intitulado "O Terapeuta Americano" - imitando o empreendimento de Ralph Waldo Emerson quando escreveu "The American Scholar" para mostrar a especificidade da condição do intelectual americano (nos "Ensaios", Martin Claret).
A idéia central será, sem dúvida, que, nas Américas, não há acesso verdadeiro à subjetividade sem abrir as malas de quem veio, ou seja, sem reconstruir a vida pregressa e a história dos sonhos, da tragédia ou da agonia da emigração (a do sujeito ou a de seus ascendentes que emigraram).

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Sobre o atirador de Virginia Tech

A procura de explicação revela mais sobre nós do que sobre o objeto de nossas investigações

1) SOU uma pessoa razoavelmente sociável. Dispenso e retribuo sorrisos e banalidades ("Oi", "Tudo bem?") nos elevadores, nos vestíbulos e mesmo na rua.

Mas há pessoas para quem o exercício dessa socialidade "básica" é forçado ou intoleravelmente hipócrita. Para um amigo monge beneditino, o uso da linguagem é permitido só quando a gente tem algo a dizer que seja crucial para o destino da alma: o silêncio lhe parece quase sempre mais próximo da verdade do que a falação (sobre a virtude do silêncio, aliás, acaba de sair "Silêncio e Contemplação - Uma Introdução a Plotino", de Gabriela Bal).

Pois bem, desde o massacre de Virginia Tech, leio e escuto que o atirador era taciturno e silencioso, não devolvia saudações nem olhares. Conclui-se que ele era uma pessoa "anti-social".
É normal: quando acontece um horror, dormimos melhor com uma explicação. Mas, freqüentemente, a procura das explicações revela mais sobre nós mesmos do que sobre o objeto de nossa investigação. No caso, a explicação pelo caráter taciturno do atirador revela sobretudo que somos tão preocupados com nossa agressividade que preferimos afogá-la num rio de palavras vazias. Quem se cala nos perturba porque seu silêncio evoca tudo o que nós mesmos tentamos esconder atrás de nossa barulhenta "cordialidade" (inquietudes, medos, raivas, lubricidade etc.).

Ora, quando a "sociabilidade" é um jogo obrigatório, quem não joga está fora, é um excluído. E, numa sociedade que valoriza a inclusão, econômica ou convivial, a exclusão é sempre explosiva.

2) Alguns comentadores entenderam que o atirador produziu e tornou público um vídeo para tornar-se uma "celebrity" após a morte. Por isso, segundo eles, as imagens não deveriam ser mostradas pela televisão. De novo, a "explicação" é uma projeção de nossa própria paixão pelos "cinco minutos de fama": atribuímos ao atirador uma vontade da qual nos envergonhamos.
De fato, ele me pareceu sobretudo preocupado em declarar que se orgulhava de seu ato. Mais um desaforo? Não sei: nas culturas orientais (veja-se o clássico de Ruth Benedict, "O Crisântemo e a Espada", Perspectiva), a vergonha é o grande regulador social; e o melhor remédio contra a vergonha é o orgulho.

3) O atirador evocou o "exemplo" de Cristo. Loucura? Em termos. Max Weber (em "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", Companhia das Letras ou Martin Claret) mostrou que o sucesso econômico do protestantismo (nos EUA, por exemplo) se deveu à idéia de que os predestinados à salvação eterna seriam também os eleitos na vida terrena: o sucesso é bom e demonstra que Deus nos ama.

Essa idéia estimula o crescimento, mas gera inevitavelmente, no "perdedor", o anseio de uma revanche já neste mundo, uma revanche para provar que a graça divina não o esqueceu.

4) Em 1996, eu ensinava a patologia das migrações na Universidade da Califórnia em Berkeley. A chegada de um estudante coreano ou chinês no departamento de antropologia era uma raridade. Em geral, os imigrantes orientais não falam nem aprendem inglês, o que torna problemática, para seus filhos, a escolha de uma disciplina humanística; as carreiras científicas são o caminho mais rápido de integração.

O atirador de Virginia Tech (cujos pais não falam inglês) estava estudando literatura inglesa. O conflito entre sua origem e sua vontade de se integrar devia ser dramaticamente agudo.

5) A primeira reação, nos EUA, foi o protesto contra a facilidade de adquirir armas. Mas, para o lobby das armas, o evento prova o contrário: se cada aluno pudesse carregar sua arma (com a naturalidade com a qual a gente carrega um celular), um atirador mataria só um ou dois, antes de cair numa chuva de balas.

6) Mais importante: naquela manhã fria, um professor, Liviu Librescu, 76 anos, judeu de origem romena, sobrevivente do genocídio, não hesitou em dar a vida para impedir que o assassino entrasse na sala de aula. Com isso, ele permitiu que vários estudantes se salvassem. Somos fascinados pelas "razões" que levam alguém a cometer um horror. Por exemplo, há estantes de livros tentando entender por que alemães comuns se tornaram, durante o nazismo, assassinos. Seríamos justos com nossa espécie se, às vezes, colocássemos a pergunta inversa: como é possível que, no horror, quase sempre haja alguém que faz a coisa certa?

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Somos culpados, mas de quê?


Pesquisa mostra que a culpa mais dolorosa é o lamento por não termos agido como queríamos

A MELHOR polícia do mundo não conseguiria manter a ordem se respeitássemos as leis só por medo da punição. A sociedade funciona (mais ou menos) porque infrações e crimes despertam não só a PM e a PF mas também nossa consciência: a perspectiva do arrependimento nos inibe.
O problema, como Freud constatou, é que a gente se culpa mais do que é necessário: enxergamos crimes onde não há, consideramos que nossas vagas intenções e nossos sonhos noturnos já são delitos e nos castigamos para aliviar os tormentos de nossa culpa. Seja como for, até os anos 60, o sentimento de culpa -necessário ou patológico e excessivo- parecia ser só isto: o arrependimento por ter desrespeitado uma norma ou uma autoridade.

Em seu seminário (um pouco críptico) de 1959-60 ("A Ética da Psicanálise", Zahar), o psicanalista francês Jacques Lacan propôs algo diferente: a culpa mais relevante e mais sofrida surgiria não por termos desobedecido a uma norma, mas por termos neglicenciado nosso próprio desejo, por termos desistido de agir como queríamos. Podemos nos arrepender de nossas transgressões, mas lamentamos, mais amargamente, as ocasiões perdidas.

Era uma pequena revolução no mundo da clínica. De fato, o sentimento de culpa é onipresente (ou quase), e as transgressões, em geral, são poucas. É lógico, portanto, que a culpa que nos atormenta seja sobretudo um efeito de nossa covardia (que é crônica), e não de nosso atrevimento (que é raro).

Pois bem, no ano passado, Ran Kivetz e Anat Keinan publicaram uma pesquisa que confirma experimentalmente a intuição de Lacan (que, claro, eles não leram): "Repenting Hyperopia: an Analysis of Self-Control Regrets" (Hipermetropia Pesarosa: uma Análise dos Arrependimentos do Autocontrole, "Journal of Consumer Research", vol. 33, setembro 2006).

Em três protocolos de pesquisa, Kivetz e Keinan confirmaram o seguinte: 1) todos condenamos as decisões que só enxergam o prazer imediato sem levar em conta as conseqüências futuras (desde comer a segunda fatia de bolo ou gastar dinheiro que não temos até cometer um pecado pelo qual responderemos na porta do purgatório); 2) mas essa condenação é fugitiva, efêmera: a longo prazo (depois de um ano, por exemplo), considerando a decisão que nos pareceu sábia (não comer a segunda fatia de bolo, não gastar, não pecar), o que prevalece é o arrependimento por ter perdido uma ocasião, por não ter agido segundo nosso impulso ou desejo.

Na metáfora ótica usada por Kivetz e Keinan, sabemos que nossos impulsos são míopes (só enxergam a satisfação do momento) e achamos certo agir como hipermetropes (o que, em geral, significa deixar de agir, focalizando e receando as conseqüências afastadas de nossos atos); a curto prazo, nós nos felicitamos por ter pensado no futuro, enquanto, a longo prazo, lamentamos ter sido hipermetropes e desperdiçado satisfações que estavam ao nosso alcance imediato.
Kivetz e Keinan sugerem uma explicação: a longo prazo, os atos passados são integrados numa espécie de balanço de nossa vida, em que devemos decidir se a corrida foi boa, se valeu a pena. Nesse balanço, o lamento pelas coisas que queríamos e não ousamos fazer pesaria mais que o mérito das "sábias" decisões que comandaram nossas desistências.

De qualquer forma, o fato é que o arrependimento por não ter escutado o desejo parece falar mais alto e por mais tempo do que o arrependimento por ter ousado transgredir. Seria aventuroso concluir que, para não se arrepender no futuro, a gente deveria atuar qualquer desejo.

Mas resta uma suspeita, ou melhor, uma lição: freqüentemente, as razões que mantêm nosso comportamento nos padrões esperados (obediência à ordem social, a nossos pais, à tradição etc.) são apenas racionalizações de uma covardia da qual nos arrependeremos um dia.

Para entender plenamente o alcance da pesquisa, esqueça a segunda fatia de bolo, os gastos e os pecadilhos (exemplos triviais usados na experiência) e pense em decisões cruciais de sua vida: uma mudança de carreira à qual você renunciou porque teria desapontado ou preocupado seus próximos, uma paixão amorosa que você calou porque teria encontrado a desaprovação dos mesmos. Pois bem, a longo prazo, essas desistências doem mais do que doeria a culpa por ter transgredido normas e expectativas, seguindo nosso desejo.


quinta-feira, 12 de abril de 2007

O hedonismo em "Roma" e entre nós

Somos demasiado preocupados com nossa sobrevivência para sermos hedonistas

NO DIA 9 de maio, chega o papa. Provavelmente, em um de seus discursos, ele criticará a busca imoral pelo prazer imediato. Tudo bem, criticar o hedonismo da gente é uma coisa que os papas fazem.

Fato curioso: se, nessa ocasião, Bento 16 precisasse de citações, ele disporia de uma ampla escolha de autores laicos. De Zygmunt Bauman a Colin Campbell, passando por uma coorte de excelentes pensadores contemporâneos, quase todo mundo parece convencido de que nossas vidas sejam regradas pela busca do prazer (aí residiria, aliás, a origem de muitos de nossos males).

É uma trivialidade comum a religiosos e ateus, racionalistas e místicos: o hedonismo nos corrompe, torna-nos pequenos, covardes e, claro, consumistas. Será que é verdade? Uma coisa é óbvia: somos demasiado preocupados com nossa sobrevivência para sermos hedonistas.

Um pé na balança e um olhar inquieto para os números do colesterol na hora de abocanhar chocolate ou queijo, um ou dois preservativos (sobrepostos) no momento de transar (de preferência no sábado, que amanhã dá para descansar), preocupados com nossa reputação na hora de escolher o lugar de um encontro furtivo, apreensivos na hora de gastar, envergonhados, temerosos e arrependidos já antes do ato: esses somos nós, os pretensos "hedonistas" modernos.
Os únicos hedonistas, entre nós, são poucos e marginalizados: heroinômanos queimando o organismo para viver um orgasmo permanente ou promíscuos procurando raivosamente o gozo, noite adentro, nos escassos e precários lugares da orgia.

O papa, em geral, opõe o suposto "hedonismo" contemporâneo à "cultura da vida". É a maneira que ele encontrou para defender casamento e procriação contra divórcio e aborto.
O estranho é que os outros (que não são papas) não percebam que a "cultura da vida" já ganhou faz tempo: a preservação de nossa existência é, para nós, infinitamente mais importante do que a procura do prazer. Somos higienistas, isso, sim. Mas não hedonistas.

Nestes dias, em uma conversa sobre o tema, um amigo me lembrou, com razão, que o argumento laico contra a procura dos prazeres coincide com a convicção (constante na cultura ocidental) de que estaríamos sempre vivendo uma decadência a partir de uma "idade de ouro" perdida (o livro de A. Herman "A Idéia de Decadência na História Ocidental", ed. Record, é, nesse sentido, muito instrutivo).

O mesmo amigo "citou" o clássico de Edward Gibbon ("Declínio e Queda do Império Romano", Companhia das Letras): Roma era forte e maravilhosa quando seus homens eram dominados pelos grandes ideais republicanos. A sede de poder e prazeres levou a cidade ao declínio.

Na hora, eu não disse nada, mas, cá entre nós, esse lugar comum tem pouco a ver com Gibbon. A tese segundo a qual o luxo e a luxúria enfraquecem os cérebros e os músculos é uma idéia "pop": ela orienta, por exemplo, o filme "300", versão cinematográfica dos quadrinhos de Frank Miller.

Mas, para Gibbon, o maior responsável pelo declínio romano é o cristianismo: a promessa da vida eterna tornaria vãos os sacrifícios extremos e mesmo os esforços na procura dos prazeres e do poder, e a moral cristã sugeriria um pacifismo que inibe o uso da força. Para Gibbon, de uma certa forma, foi o anti-hedonismo cristão, não o hedonismo, que acabou com Roma.

Seja como for, o relato de Gibbon começa no segundo século de nossa era, depois do império de Marco Aurélio. Será que até então Roma era grande porque os romanos fugiam dos prazeres? Nada disso.

Fique em casa nas próximas noites de domingo. Estréia no dia 15, na HBO, a segunda temporada do seriado "Roma". A primeira (12 episódios imperdíveis, que cobrem o breve período entre a volta de César da Gália e seu assassinato no Senado) está disponível para locação.

"Roma", o seriado, é uma reconstrução histórica extraordinária, não pela verossimilhança de monumentos, costumes e batalhas (isso é fácil), mas porque nos mostra perfeitamente um mundo distante do nosso, um mundo em que sobreviver importa menos do que viver: um mundo em que é permitido gozar e é fácil morrer, matar e se matar.

Se você quer saber o que seria (o que foi) uma sociedade verdadeiramente hedonista em todo seu esplendor (tanto faz que seja para lamentar seu fim ou para odiá-la), não deixe de ver "Roma", sob nenhum pretexto.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Pequenos furtos, manchas e alívio


Pessoas respeitadas, como Sobel, cometem, irresistivelmente, atos contra a sua imagem
EM PSIQUIATRIA , a cleptomania (impulso de roubar) é um dos "transtornos do controle dos impulsos", junto com o jogo de azar descontrolado, a piromania (impulso incendiário), a tricotilomania (impulso de se arrancar cabelos) e as explosões repentinas de violência contra os outros ou os objetos.

Caraterísticas comuns desses transtornos: 1) o impulso surge de maneira irresistível e sem premeditação (se coloco fogo na minha granja para receber o prêmio do seguro, não sou pirômano, apenas malandro); 2) o ato, precedido por uma forte tensão, produz no sujeito uma sensação de alívio.

Nota: é importante não confundir os transtornos do controle dos impulsos com condutas similares que aparecem nas crises de mania -as quais, por sua vez, são caracterizadas assim: três ou quatro dias sem sono, idéias (delirantes ou quase) de grandiosidade e onipotência, fuga do pensamento, agitação psicomotora.

Desde que chegou a notícia da prisão do rabino Henry Sobel pelo furto de quatro gravatas em lojas luxuosas de Palm Beach (EUA), recebo e-mails que propõem apoio moral ao rabino e outros que parecem antever e contestar antecipadamente esta coluna, lembrando (não sem humor): "Cuidado: pobre que rouba é ladrão, rico é cleptômano".

Que os autores desse segundo grupo de e-mails se tranqüilizem: nos tribunais americanos, a cleptomania não ameniza a responsabilidade do acusado.

Agora, é verdade que, em regra, o cleptômano, rico ou não, rouba objetos que não lhe são indispensáveis e que ele poderia comprar sem grande esforço financeiro.

Mas vamos ao que importa. A categoria psiquiátrica de "transtornos do controle dos impulsos" é descritiva e não diz nada sobre os caminhos que tornam um sujeito cleptômano, pirômano, jogador compulsivo etc. Esses caminhos são singulares.

Exemplo extremo dessa singularidade: conheci um transexual operado (homem para mulher) que, a cada dia, roubava nas lojas de Paris e sempre voltava para recolocar (também às escondidas) o objeto roubado na prateleira.

Provavelmente, era guiado pela vontade de fazer desaparecer e reaparecer objetos que representavam a parte de seu corpo à qual tinha renunciado.

Não tenho idéia das razões singulares que levaram o rabino Sobel a roubar naquelas lojas de Palm Beach. Assim como não sei o que levou Winona Ryder a roubar roupas na Saks de Berverly Hills; ou Ronaldo Esper, o estilista das noivas, a roubar vasos de concretos num cemitério paulistano.
Mas essas três histórias (e várias outras) têm algo em comum: os protagonistas são pessoas públicas; de maneira e por razões diferentes, eles são (ou foram) objeto de algum tipo de idealização. Não só eles não precisavam roubar (pois os objetos furtados estavam ao alcance de seu bolso), mas, sobretudo, se fossem descobertos, o dano sofrido por sua figura pública seria incomparavelmente superior ao valor dos objetos roubados.

Acontece com uma certa freqüência: pessoas respeitadas e admiradas cometem, irresistivelmente, atos que mancham sua imagem. Elas ganham assim, no noticiário, um espaço que é o inverso àquele que elas ocupavam: caem, diretamente, da idealização ao escárnio.
Poderíamos inventar uma nova categoria, a dos "transtornos do controle dos impulsos em notáveis de uma comunidade". Seu traço saliente seria a desproporção entre o tamanho da infração (geralmente pequena) e o risco de comprometer uma reputação que é, no fundo, o maior patrimônio do sujeito.

Uma explicação possível para essas condutas está justamente na desproporção.
Imagine conviver com a sensação de um divórcio permanente (que é, de qualquer forma, inevitável) entre a visão idealizada que os outros têm de você e a visão, bem menos lisonjeira, que você tem de sua pessoa. Imagine a tensão incessante para estar à altura de uma imagem pública da qual você só pode, honestamente, sentir-se indigno: a visibilidade, o respeito e a admiração dos outros se tornam um fardo insustentável.

Quando um homem respeitado e respeitável comete um ato incompreensível que prejudica o capital de estima que ele acumulou, talvez seja justamente para desmentir sua figura pública idealizada, ou seja, para abrandar, enfim, o sentimento de viver uma extenuante impostura.
O ato, nesses casos, é um alívio, um grito que diz: "Sou um homem qualquer".

quinta-feira, 29 de março de 2007

O "mea-culpa" pela escravatura

As desculpas retroativas pela escravatura parecem ser sinais da volta do racismo

O REINO Unido celebra os 200 anos da abolição do comércio de escravos. Tony Blair expressou seu pesar pelo antigo papel dos britânicos no tráfico.

Como assinala Marco Aurélio Canônico na Folha do dia 24, os aniversários anteriores passaram sem destaque especial. O historiador John Oldfield, citado por Canônico, atribui o interesse atual pelo aniversário às mudanças na sociedade britânica: o "mea-culpa" seria um jeito de agradar às massas de imigrantes das ex-colônias, facilitando sua integração. Quem dera...

O processo da abolição da escravatura é uma longa jornada da consciência ocidental; começou nos primeiros séculos da cristandade, com o sucesso da idéia de que o limite da humanidade não é a tribo, a raça ou a fé, mas é a própria espécie: somos irmãos, simplesmente por sermos humanos. Hoje, por um sentimento espontâneo e imediato, qualquer ser humano é "dos nossos". No passado e em outras culturas, já foi e ainda é banal considerar que nosso semelhante é só quem dorme na toca da gente.

A idéia de uma comunidade da espécie humana é uma invenção, se não exclusiva, no mínimo peculiar da cultura ocidental. E, sem essa idéia, vinga a tentação de usar e possuir o outro (diferente e, portanto, subumano) como um objeto.

Em suma, o aniversário do dia 25 deveria ser uma festa para todos - no caso, todos os cidadãos e residentes do Reino Unido, celebrando juntos sua igualdade de princípio.

Ora, as desculpas pela escravatura sugerem uma divisão: de um lado, há os "descendentes de escravos", do outro, os "descendentes de escravocratas". É curioso, pois, na modernidade ocidental, presume-se que ninguém se defina como "descendente de": se somos todos humanos, indiferentemente, é também porque somos definidos não pelo passado, mas por nossas potencialidades futuras.

Entende-se que os ditos "descendentes de escravos" (cuja cultura de origem pode ser escravocrata) sejam, eventualmente, enredados numa divisão subjetiva dolorosa: aderir à cultura que os acolhe como cidadãos (porque, para ela, só há homens livres) significa renegar sua tradição.

Mais complicado é entender as desculpas dos ditos "descendentes de escravocratas", pois qual é o sentido da desculpa retroativa de quem não se define pelo seu passado?

Versão otimista: hoje, por termos "evoluído", enxergaríamos o horror de um passado que não nos define, que não é o da gente, mas que, afinal, carregava nosso nome.

Tony Blair não tem nada a ver com os ministros dos séculos 17 e 18, salvo a referência comum a um "Reino Unido" que, aliás, não é mais o mesmo país.

Versão realista (a de Oldfield): as desculpas constituem uma homenagem (forçada) aos imigrantes, que são os novos cidadãos do Ocidente.

Minha versão é pessimista. A necessidade de se desculpar pela escravatura não vem do sentimento (improvável) de uma responsabilidade retroativa nem da vontade (duvidosa) de desejar as boas-vindas aos africanos. As desculpas se parecem mais com os desagravos preventivos e hipócritas que são pronunciados quando a gente está à beira de fazer uma besteira: "Desculpe, mas vou ter de lhe dar um soco na cara". Explico.

As diferenças que a Europa deveria integrar hoje não são maiores do que as que povoaram as Américas, por exemplo, no começo do século passado. As Américas tentaram diluir as diferenças transformando todos em puros agentes econômicos: "Esqueça-se de suas origens e pense em fazer fortuna".

A Europa, zelosa de sua história e de suas identidades nacionais, pode dificilmente pedir a seus imigrantes que se esqueçam do passado deles. Com isso, na Europa, as diferenças não se perdem, se agudizam.

As desculpas de hoje, justamente, parecem assinalar uma intolerância crescente. "Desculpe-me por tê-lo escravizado no passado" é um jeito de lembrar que o passado continua valendo, e, nesse passado, você foi escravo, eu não. Ou seja, não somos bem humanos da mesma forma.

Em 1973, um psicanalista francês, Jacques Lacan, previa a subida do racismo. Na época, antes das recentes ondas de imigração do Terceiro Mundo para a Europa, suas palavras pareciam estranhas: afinal, não estávamos no meio do luminoso caminho da tolerância? Hoje, obviamente, elas parecem proféticas. E as pretensas desculpas pelo passado escravagista parecem ser mais uma inquietante confirmação do pressentimento de Lacan.