quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Antonioni


Com ele, aprendi que, no amor, é bom não confundir verborragia com comunicação

DOIS ANOS atrás, assisti a "Eros", filme em três episódios de diretores diferentes: Michelangelo Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-wai.

Quase saí bem antes do fim. "Eros" começa com o episódio de Antonioni, que me pareceu de uma mediocridade constrangedora: os atores estão perdidos no set, as legendas são preferíveis aos diálogos e, como se não bastasse, há uma série de estereótipos intoleráveis.

Uma mulher nua em cima de um cavalo é uma metáfora erótica tão defunta que só deveria ser utilizada como farsa (exemplo de uma boa farsa: o nado sincronizado à la Esther Williams na cena primorosa dos Oompa-Loompas no lago da "Fantástica Fábrica de Chocolate" de Tim Burton).

Enfim, por sorte ou obstinação, agüentei firme e fui recompensado pelo episódio de Kar-wai, que é uma obra-prima.

A razão de meu constrangimento era simples: a obra de Antonioni, que morreu na semana passada, aos 94 anos, é das que mais me tocaram e me formaram. Deparar-me com um filme medíocre e assinado por ele (embora, presumivelmente, orquestrado por outros) forçava-me a interrogar o passado: o que eu acharia, hoje, dos filmes de Antonioni de 30 ou 40 anos atrás?
Decidi revê-los. Foi uma aventura de várias noites, que recomendo a todos: únicos e inconfundíveis, os filmes de Antonioni não envelheceram. Sua obra, além de ser cinematograficamente genial, continua valendo como uma extraordinária educação sentimental.
Em matéria de educação sentimental, aliás, ela só compete com a obra de Ingmar Bergman, que também acaba de perder seu jogo de xadrez com a morte. Antonioni e Bergman têm em comum um respeito extremo pela intimidade humana.


Talvez seja porque ambos tiveram que redescobrir a dignidade da vida depois da grande "aventura" coletiva da Segunda Guerra e a redescobriram na trama dos sentimentos.

Meus Antonionis preferidos se dividem em dois blocos. O primeiro inclui "A Aventura" (1960), "A Noite" (1961) e "O Eclipse" (1962) e foi chamado, na época, de "Trilogia da Incomunicabilidade". Nunca entendi por quê. Continuo não entendendo. Os personagens de Antonioni só podem parecer pouco comunicativos aos olhos de uma cultura que confunda a verborragia com a comunicação, o falar com o dizer.

Tome "A Noite": poucos filmes ou livros nos dizem de maneira tão simples e correta o que é um casal e o que é um amor. E poucos amantes, cinematográficos ou literários, conseguem, como Giovanni (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau), em "A Noite", dizer tudo o que é preciso e NADA MAIS.

Com Antonioni, aprendi que há uma ética da troca amorosa. Por exemplo, num momento do filme, Lidia some pelas ruas de Milão, durante uma tarde inteira. Quando, enfim, ela se manifesta com um telefonema, a discrição de Giovanni não é um drama da "incomunicabilidade", é a reserva de quem, no amor, preserva o respeito pela complexidade do outro.

O cinema é uma boa parte de nosso repertório amoroso. Pois bem, no amor, como num set de filmagem, é necessário, de vez em quando, avisar: "Silêncio! Ação!". Qualquer casal, em crise ou não, que seja tentado pela idéia de sentar e "discutir a relação" poderia (com bastante proveito) sentar e assistir à "Noite".

Meus outros Antonionis preferidos são "Blow Up", de 1966, (misteriosamente traduzido como "Depois Daquele Beijo") e "Profissão: Repórter", de 1975. Esses dois filmes foram a melhor resposta que minha geração recebeu a seus anseios vagos e frustrados por uma "outra" vida, diferente da mesmice acomodada que receávamos para o futuro.

"Goldfinger", o primeiro James Bond com Sean Connery, saiu em 1964, dois anos antes de "Blow Up". "Goldfinger" é o exemplo perfeito da resposta padrão à nossa questão adolescente: podem sonhar todos com a fabulosa vida de agentes secretos, criminosos, detetives e por aí vai. Pistola por pistola, dez anos depois, alguns, inspirados pela mesma proposta hollywoodiana, caíram na clandestinidade armada.

A resposta de Antonioni é mais sutil e diz que, claro, não é possível romancear a vida sem "ser outro constantemente" (a frase é de Fernando Pessoa, mas é também o recado de "Profissão: Repórter"). Agora, para romancear a vida, não é preciso encontrar destinos grandiosos. Basta enxergar o detalhe que sempre está presente num canto escuro da realidade cotidiana, ao alcance de uma ampliação fotográfica.

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