domingo, 14 de junho de 1998

A autoridade razoável



A justiça é sempre de natureza política e depende do quadro social em que age


CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Frequentemente nossa insatisfação com a administração da justiça se expressa da seguinte forma: a Justiça não consegue ser cega. Gostaríamos que nossos tribunais julgassem sem nenhuma consideração política.


Achamos injusto que a Justiça favoreça cidadãos de classes sociais privilegiadas. Achamos indigno que, por exemplo, no Brasil existam prisões diferenciadas para cidadãos com nível superior de estudos. Podemos achar injusto que a criminalidade de colarinho-branco seja menos severamente reprimida do que a violência desesperada da miséria. Reciprocamente, nos Estados Unidos de hoje, podemos achar injusto que o fato de se pertencer a uma minoria étnica ou social desfavorecida possa constituir uma espécie de desculpa. Assim como achávamos injusto que, no passado, pertencer à mesma minoria fosse, ao contrário, uma espécie de agravante.


Quando pensamos nos fundamentos de uma democracia moderna, imediatamente evocamos a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como uma condição não negociável. E esta exigência parece incluir a idéia de que a Justiça não deve nem pode ser expressão de vontades políticas.


Ora, Susan Estrich -advogada e professora de direito e ciência política na Universidade da Califórnia- acaba de publicar "Getting Away with Murder -How Politics is Destroying the Criminal Justice System" (Matando Impunemente -Como a Política Está Destruindo o Sistema de Justiça Criminal), Harvard University Press. O título é enganador: deixa supor que seja mais um livro preocupado com os efeitos maléficos da política na administração da Justiça. Um livro, em suma, que confirmaria tudo o que já pensamos.


Não é nada disso. Estrich constata que em uma sociedade ocidental moderna -salvo os que alimentam nostalgias para julgamentos divinos e santas inquisições- a fonte da autoridade da lei e de sua administração é a própria comunidade dos cidadãos. Ou seja, se em nossas sociedades é proibido matar, estuprar, roubar etc., isso não acontece porque essa foi a regra transmitida pelos antepassados ou por Deus. Acontece, ao contrário, por decisão política da comunidade. Idéias, valores, princípios morais e leis valem porque concordamos de alguma forma em sermos orientados e regidos por essas normas.


Esta primeira constatação, excessivamente banal, acarreta uma consequência: não faz sentido protestar contra a ingerência da política na administração da justiça, pois, em nossas sociedades, a justiça é de natureza política, já que a própria idéia do que seria justo ou não só vige graças ao acordo da comunidade política.


As imperfeições (ou pior) do sistema jurídico, portanto, não são devidas à iníqua invasão da política na esfera pretensamente purificada da lei. Não são contaminações da justiça por um corpo estranho. Ao contrário, lei e justiça são e só podem ser expressões políticas da vida social.
Um marxista não diria diferente, e acrescentaria que por isso mesmo o exercício da justiça é mais um teatro (falsamente neutro) onde se desdobra a luta entre classes. Mas uma liberal, como Estrich, acreditando nas virtudes da democracia, propõe, ao contrário, o silogismo seguinte: 1. Em uma sociedade moderna, a fonte de toda autoridade é a própria comunidade dos cidadãos; 2. O que é justo (e o que não é) depende da suposta vontade da comunidade; 3. Portanto, se a administração da justiça não funciona, isto não acontece por ela estar sendo "invadida" por considerações políticas, mas por algum fracasso da vida política da comunidade que deveria se expressar na sua capacidade de fazer justiça. Uma comunidade mais ou menos politicamente doente é incapaz de articular uma voz comum que sirva de fundamento à administração da justiça.


O problema da justiça no Brasil, por exemplo, não seria uma questão de separação insuficiente entre judiciário e legislativo ou executivo, mas uma expressão do fato de que a comunidade nacional está dividida, impedida de funcionar como comunidade. Se uma classe é privilegiada na administração da justiça, isto não manifesta sua usurpação do Judiciário, mas sim sua usurpação da comunidade.


As idéias de Estrich parecem particularmente evidentes em um sistema jurídico - como o americano - fundado na "Common Law", ou seja, onde distintamente o que tem valor de lei são em última instância as idéias compartilhadas (os "standards") da comunidade. Mas é fácil constatar que, mesmo os países de direito romano e napoleônico (como o Brasil), evoluem nesta direção por um caminho indireto, mas seguro. Pois acontece que o legislador é inevitavelmente chamado a atuar segundo os costumes comunitários.


Para medir os padrões comunitários em matéria de justiça, Estrich oferece um conceito interessante: "A pessoa razoável". Bem distinta do "ser racional", cujas ações corretas seriam decididas por princípios pretensamente deduzidos de alguma razão universal, a pessoa razoável é quem age de uma forma compatível com a comunidade e compreensível por ela. Uma comunidade (e portanto sua justiça instituída) decide o que é punível ou não, assim como o que pode ser considerado como uma circunstância atenuante ou agravante, a partir da idéia vigente da pessoa razoável.


Contrariamente ao ser racional, a pessoa razoável evolui no tempo. Por exemplo, 30 anos atrás, o homem razoável poderia aparentemente ser desculpado caso matasse sua mulher surpreendendo-a com um amante. A mulher razoável da mesma época não seria desculpada. Já hoje parece que, seja qual for seu sexo, a pessoa razoável é menos ciumenta. Mas o que mais importa é que, na evolução saudável da vida de uma democracia, a pessoa razoável deveria sobretudo se tornar cada vez mais representativa da comunidade em seu conjunto.


A pessoa razoável da Justiça americana, até os anos 60, era masculina e branca. Já hoje ela pode ser negra, hispânica, feminina. Portanto, a comunidade que achava razoável quem linchava um negro ou batia em uma mulher, pode hoje achar razoável a raiva do mesmo negro e desculpar Lorena Bobbitt, que cortou o pênis do marido. A pessoa razoável, em suma, vem a ser a unidade de medida da Justiça, se conseguir se tornar representativa do conjunto da comunidade.


Ora, as dificuldades da Justiça americana, seu vaivém às vezes cômico de decisões extremas e frequentemente compensatórias, derivam do caráter peculiar do projeto comunitário americano: compor e manter uma comunidade que reconheça e exalte todas as diferenças particulares. Os paradoxos deste projeto aparecem na administração da justiça, pois a "pessoa razoável" se torna um arlequim multicolor impossível de ser reconstituído, mesmo pela assembléia de 12 jurados. A Justiça aparece assim como o incerto teatro político de uma luta entre facções da comunidade.
No Brasil é outra história: faltam as condições básicas, materiais, de uma comunidade. As diferenças sociais fazem com que, para um adolescente filho de ministro, seja razoável atropelar, matar e omitir socorro, com a condição de que o morto seja um trabalhador passante -quando certamente não seria razoável que o dito trabalhador atropelasse e matasse um filho de ministro.
Segundo Estrich, o problema não é de má administração da justiça. Ao contrário, por nossa vida política e social, temos a justiça que merecemos.

domingo, 1 de fevereiro de 1998

Crise mostra descompasso entre mídia e público


A sexo-crise da Casa Branca entra em sua segunda semana. Seja qual for sua conclusão, ela poderá passar para a história como um extraordinário descompasso entre a mídia e seu público.
A mídia norte-americana continua pressupondo uma reação de indignação que seus ouvintes e leitores manifestamente lhe negam.


Jornalistas de todas as orientações ostentam um tom fustigador, mas -nas pesquisas quantitativas como nas conversas de esquina- o público responde que, para essa história, não dá a menor bola: o uso do membro presidencial concerne ao presidente, a sua mulher e, eventualmente, a paixões paralelas, se existirem.


Até os adversários políticos tradicionais preferem se abster a pedir uma indignação que não é o sentimento popular.


Só reagem os raivosos profissionais, que desde sempre alimentam alguns talk-shows de rádio num constante e paranóico descontentamento ou colocam bombas nas clínicas de aborto (e que mal representam 10% dos americanos).


Em breve, tudo indica que, se o presidente for culpado de uma aventura com uma estagiária, ninguém se importa. Agora, se for provado que ele tentou obstaculizar a Justiça, induzindo Monica Lewinsky a mentir, poderemos nos indignar, mas o risco é quase nulo, pois nas próprias gravações das conversas telefônicas de Monica com Linda Tripp, ela afirma que não foi aconselhada a mentir.


A mídia internacional globalmente caiu na armadilha de tomar o evento montado pela mídia americana como expressão de uma voz popular que, de fato, está ausente.
Conclusão (viva as banalidades!): denuncia-se ou ironiza-se o pretenso "puritanismo" americano. Não podia dar mais errado, pois a história indica, ao contrário, que a mídia americana presumiu um puritanismo do público, que desta vez faltou à chamada.


Procura-se então uma explicação simples e alternativa. Mais um lugar comum: o americano, além de puritano, se presume que seja pragmático, ou seja, cínico. Conclusão: as pessoas não se indignam porque com Clinton a economia está dando certo, e o bolso fala mais alto do que a moral. Será? Ou será que algo mudou enfim -e radicalmente- na maneira americana (e não só americana) de pensar e viver a política?


A situação atual é um bom teste para verificar essa hipótese. Na terça, o presidente Clinton proferiu o tradicional discurso sobre o Estado e a União. Logo após o discurso, sua popularidade disparou para perto dos 70% (sondagem da CNN). Por quê?


Foi um discurso de política pós-moderna: nenhuma proposta radical, nenhuma grande oposição ideológica, nem mesmo a procura de zonas de conflito com a oposição republicana. Ao contrário, na enumeração dos sucessos de seu governo, o presidente sublinhou os resultados que foram efeito de acordos e esforços bipartidários.


Nas propostas, ele planejou gastar (democraticamente), mas respeitou a oposição se engajando a não se endividar (republicanamente). Evitou ventos ideológicos e avançou esparadrapos sociais pontuais, possíveis e concretos.


Se houve um apelo ideal, foi à esperança genérica de construir uma comunidade mais apaziguada e justa, de reinventar uma idéia de bem comum no respeito das diferenças da sociedade americana e global.


Este ideário básico pode parecer piegas e talvez seja. Mas o que importa é que ele está em perfeita consonância com o clima do momento. É este o ideário da geração que hoje lidera a opinião pública: os baby-boomers, influenciados pelos anos 70, revoltados ou revolucionários arrependidos, tolerantes, multiculturalistas, vagamente libertários, cuidadosos de seu conforto, mas bem intencionados socialmente, nostálgicos e sedentos de vida comunitária, anti-racistas, desconfiadíssimos de oposições ideológicas abstratas e partidárias (nas quais acreditaram no passado) e geralmente menos hipócritas do que seu predecessores.


O pano de fundo atual é uma mudança da política como disciplina e exercício, pela qual hoje a moda não é o conflito, mas a convivência. O novo urbanismo americano propõe a fuga dos subúrbios e a volta aos centros urbanos, mais diversos. Ou então, negros -homens e mulheres- marcham sobre Washington não para pedir algo do governo, mas para proclamar seu engajamento em produzir uma vida melhor para todos. Ou ainda: assiste-se a um vasto "revival" do serviço comunitário e dos esforços caritativos.


No discurso, Clinton apresentou os sucessos da redução dos subsídios a pobres e desempregados como sendo antes de mais nada o efeito do heroísmo dos próprios desfavorecidos que conseguiram passar do cheque-subvenção ao cheque do salário.


Ele levou o Congresso inteiro a aplaudir de pé uma mulher do povo: heroína da nova comunidade americana. É isso que os baby-boomers esperam de seus políticos: que coordenem nossos esforços para criar uma vida melhor e que não nos azucrinem com princípios ou com estatuários exemplos de virtude.


Os feiosos de repente são os acusadores de Clinton, por parecerem (e provavelmente serem mesmo) perigosamente partidários. Kenneth Starr, o promotor nem tão independente assim, pertence a um escritório que defende os interesses das companhias de tabaco, é republicano militante e, antes de ser escolhido para sua função atual, se ofereceu espontaneamente para ser advogado de Paula Jones. O mesmo ou quase vale para Linda Tripp ou para sua agente literária. Eles aparecem vulgares, fora de moda, intolerantes.


Clinton, ao contrário, se beneficia da própria política que ele representa e promove. Em um clima onde a esperança é respeitar a diversidade sem perder a comunidade, onde portanto se promove a tolerância das diferenças de orientação sexual, como poderíamos contestar seu direito à Presidência por um presumido adultério oral?


O discurso de Clinton constituiu assim um exato a-propósito. Seu governo parece feita para os nossos tempos. Ele é um baby-boomer comum. Suas forças (poucos "a prioris" básicos humanitários, diálogo e conciliação) são nossas forças. Suas fraquezas (da carne) também são. Por isso é fácil atingi-lo, mas por isso mesmo não vai ser fácil afundá-lo, pois ele é o homem político de uma geração.


Retomando a questão levantada por Otavio Frias Filho em sua coluna de quinta passada -para descobrir quem quer a pele de Clinton, vale perguntar: além do interesse da mídia por qualquer história que levante poeira, quem quer hoje voltar a um clima interno e externo de Guerra Fria? Quem tem interesse em uma sociedade de oposições adamantinas?


Não sei, mas talvez a resposta seja só cultural: a geração de Woodstock chegou a sua maturidade e sabemos que, de regra, a passagem do poder de uma geração para outra nunca é pacífica.

domingo, 18 de janeiro de 1998

A geopolítica do prazer


Brasileiro assume a imagem de ardente para ocupar o lugar dos sonhos dos outros


O século 20, o século dos antibióticos, do telefone, do homem na lua etc., será também lembrado como o século do sexo. Alguns dirão que foi o século da liberação sexual. Outros que foi o século, não da repressão, mas da opressão sexual. Ambos terão razão.


Os comportamentos sexuais ficaram certamente mais livres. Na maior parte dos países ocidentais a lei hoje proíbe muito pouco: a violência contra menor de idade, o estupro, às vezes a prostituição e só. A medicina do século 19 travara uma guerra contra as condutas sexuais que não servissem à reprodução. Culminou com a monumental "Psychopathia Sexualis", de Krafft-Ebing, traduzida em todas as línguas, sabiamente guardada nas estantes mais inacessíveis das casas burguesas. Este catálogo tragicômico dos desvios de conduta sexual só serviu, neste século, para inspirar a masturbação de legiões de jovens ocidentais que nela aprenderam o que podia ser sexo.


A tentativa de patologizar as condutas sexuais veio morrer na praia da psicanálise. Mas morreu como? Foi uma troca pela qual a sexualidade se encontrou liberada para uma dupla condição: de se tornar, por um lado, objeto infinito de nossas preocupações e, por outro lado, uma obrigação. Começamos, assim, a trocar a repressão das condutas com a opressão produzida pelo imperativo de falar de sexo e sobretudo de sermos sexualmente felizes e satisfeitos. O verdadeiro doente sexual deste fim de século não é nem o impotente nem a frígida; a eles perdoa-se com comiseração. O verdadeiro doente sexual é o desinteressado.


A revolução sexual foi uma exacerbada necessidade de falar do sexo e de colocá-lo no centro de nossas vidas. Ou ainda uma idealização da sexualidade como via régia para ser feliz e, por consequência, uma inédita valorização de qualquer prática que acarrete a esperança de satisfação maior. Isto facilitou a vida dos praticantes que puderam aos poucos sair do armário e seduzir novos adeptos, mas não mudou a vida sexual da maioria. Só impôs a todos um mandato de satisfação sexual: goze!


O retrato da sexualidade brasileira oferecido pela pesquisa do Datafolha confirma e se insere neste rápido diagnóstico da sexualidade ocidental no fim de século. Por exemplo, a maioria dos brasileiros parece topar a idéia que a principal função do sexo seja o prazer e não a reprodução. Resta que, com isso, o sexo se torna facilmente uma função obrigada do prazer. O que pode ser no mínimo incômodo.


Ginga
Um dado marcante da pesquisa é a discordância entre a opinião que os entrevistados têm de si e sua visão dos "brasileiros". "O brasileiro" é bem mais liberado sexualmente e interessado por sexo do que os brasileiros entrevistados.


A situação evoca singularmente minha adolescência na Itália: o país inteiro aparecia como um maníaco "latin lover", engomando cabelos para seduzir turistas austríacas, alemãs ou suecas que invadiam nossas praias na esperança de saborear o macho italiano.


As duas situações -Itália e Brasil- permitem uma explicação comum: as misérias históricas e sociais produzem uma dificuldade de identificação nacional. Portanto, torna-se bem-vindo, como modelo de identidade, o cartão-postal segundo o qual somos todos gingões, interessadíssimos por bunda, ou mulatas prestes a ser arpoadas na praia do Arpoador.


A defasagem entre exotismo sexual nacional e sexualidade vivida poderia, assim, ser colocada na conta do subdesenvolvimento: uma comunidade nacional pouco valorizada na praça global aceita com complacência qualquer imagem positiva. Frequentemente o que lhe é proposto é uma vinheta de desbunde que se origina em uma forma domesticada de racismo. Os outros nos concebem como seres animalescamente entregues a desejos ardentes ("trepa com eles/ elas que é bom e barato, mas não faz negócio que é outra história"). Assumimos este cartão-postal que passa a ser nossa própria imagem, porque -o sexo sendo um ideal global moderno- somos seduzidos pela ilusão de ocupar assim o lugar dos sonhos dos outros.


Em suma, a idealização sexual parece se distribuir geopoliticamente, obedecendo às facilidades do turismo sexual norte-sul mais do que ao espírito nacional dos prestigiados.


Mas não é só isso. De fato, é provável que, se a mesma bateria de questões fosse repetida em outros contextos nacionais e culturais, o resultado -embora talvez menos contrastado- seria o mesmo. Ou seja, os entrevistados se diriam menos interessados por sexo do que o grupo nacional ou cultural ao qual pertencem tomado coletivamente. Eles reconheceriam, assim, ao mesmo tempo sua realidade sexual, mas também a pregnância coletiva do ideal moderno de felicidade e satisfação sexual. A prova disso, por exemplo, está na inevitável associação da alegria da festa com o gozo sexual. Sem isso, a farra não tem graça e, logicamente, a farra acompanhada por esta obrigação perde graça. Os beijos de fim de noite na Oktoberfest têm o mesmo gosto de vômito de cerveja do que na praça Castro Alves.


Dois países
Na descrição de sua vida sexual efetiva, os brasileiros se revelam simpaticamente banais.
Mágica demonstração da sinceridade dos entrevistados, a duração das relações coloca todos de acordo: meia hora basta. A grandíssima maioria se diz satisfeita e está feliz com seu parceiro para quem dá nota alta. A metade acha bom uma vez por semana. Muitos praticam sexo oral e anal, mas não sempre, ou seja, não como fins em si. Pouquíssimos parecem precisar da ajuda de bebida, drogas, revista ou vídeo eróticos etc.


Surge da pesquisa a imagem de um país surpreendentemente conservador. Com exceção da masturbação e das relações antes de casar, que estão liberadas, a opinião dos brasileiros em matéria de homossexualismo, aborto, prostituição e virgindade é careta.
A isso se acrescenta que só uma minoria parece ter acesso a suas próprias fantasias e uma persistente maioria (silenciosa) responde à questão sobre as 14 práticas sexuais com um abstrato e árido "nunca fantasiou".


No entanto, uma leitura mais cuidadosa dos números revela um divórcio entre os entrevistados, segundo níveis de instrução e de renda. Não estou me referindo ao fato previsível de que as pessoas mais instruídas se mostrem mais esclarecidas e tolerantes. Bem mais interessante, os mais desfavorecidos parecem transar um pouco mais frequentemente, mas sem fantasia (papai-e-mamãe todo dia é a imagem caricatural -o que poderia explicar, aliás, a maior fertilidade). Os ricos e instruídos, ao contrário, talvez transem menos, mas fantasiam bem mais.


Ao que parece, nossos filhos estão na escola para perder a inocência reprodutiva e parte de sua potência sexual natural, tornando-se masturbadores cheios de idéias. É a degenerescência das classes médias e altas. A ela responde o pobre e ignorante, próximo do bom selvagem, fiel à fisiologia, que prefere coito sem rendas e bordados.


Por esta diferença estereotipada, confirma-se que o imperativo que coloca o sexo no centro de nossas vidas e preocupações como fonte obrigatória de nossa satisfação é eminentemente cultural. Quanto mais somos expostos à cultura de massa (o que é o caso das classes médias e altas), tanto mais o sexo importa para nós.


Ora, por um lado, quem procura sua felicidade no sexo estará disposto a testar modalidades originais. Por outro lado -e mais importante-, a cultura é o reservatório das fantasias sexuais. A diferença apontada pela pesquisa justamente mostra que a configuração de uma fantasia sexual não é tanto o efeito de circunstâncias de vida. As fantasias são sugeridas pelo imaginário cultural. Elas são induzidas. A variedade de suas formas e sua relevância na vida sexual crescem com a cultura do sujeito.


Tirem disso as consequências que quiserem segundo seu ponto de vista moral -desde um pedido de censura até a defesa da Internet em cada sala de aula.


Santo Graal
Como era previsível, as mulheres gozam menos do que os homens (só 31% têm orgasmo garantido). Desde os anos 70, com o famoso "relatório Hite" (Shere Hite, "The Hite Report - A Nationwide Study of Female Sexuality", MacMillan, Nova York, 1976), o imperativo social de fazer gozar as mulheres é palavra de ordem.


O gozo feminino tornou-se o Santo Graal moderno. Todo mundo procura, ninguém sabe onde está e, mesmo quando acontece, a gente se pergunta se foi mesmo. As mulheres, em suma, são as mais oprimidas pela obrigação de gozar e, enfim, se sentir satisfeitas. Pois, por elas não disporem de ejaculações que confirmem o fato, o gozo das mulheres foi aparentemente escolhido como símbolo social do gozo ao qual todos aspiramos e que ainda nós não conseguimos. Uma carga pesada.

Nota: Com relação às 14 práticas sexuais, mulheres parecem fantasiar menos do que homens. Salvo no caso de fazer sexo com dois ou mais homens, em que são majoritárias. O psicanalista deve assinalar um detalhe que a pesquisa necessariamente negligencia: as mulheres não fantasiam menos, mas de uma maneira diferente que dificilmente se enquadra nos enunciados de cenários (sejam 14 ou mil).

segunda-feira, 3 de novembro de 1997

Um silêncio barulhento

Cada escritor que se esconde deve ter suas razões para evitar a praça pública.

Mas, atrás de fobias, timidez ou filosofias orientais, também há um drama que é próprio do nosso mundo, do jeito que somos. A escolha de Salinger, Pynchon e outros eremitas aponta para uma dificuldade de nossa cultura.

No mundo ocidental moderno, apesar de restos patrimonialistas e aristocratas, se presume e se espera que cada um faça suas provas. O passado prescreve muito pouco: para decidir nossa miséria ou excelência, importam os atos dos quais nos revelaremos capazes.

Esta liberdade obrigatória não é um mar de rosas. Pois quem decide qual é o valor dos atos dos quais seremos ou não capazes? Não existem critérios canônicos como aqueles que diferenciavam a gente por nascimento. Só existe o tribunal permanente e misterioso da opinião pública. Se nossos atos ou nossas produções caem na graça do público, valem (e nós subimos). Sem isso, eles não têm valor (e nós descemos). A sociedade moderna, em suma, se diferencia segundo a reputação que cada um consegue conquistar.

Seria natural presumir, no entanto, que haja alguma relação entre nossa reputação e a qualidade de nossos atos. Por exemplo, ser um médico de valor significa ser reputado bom médico, mas isso em princípio acontece quando curamos mais pacientes do que matamos. Se formos romancistas reputados, se presume que nossos escritos tenham a qualidade intrínseca de interessar ou divertir os leitores etc.

Ora, apesar dessa presunção, um sistema social baseado na reputação acaba se transformando em um sistema de "celebrity". A expressão inglesa faz uma distinção interessante entre fama ou reputação, de um lado, e "celebrity", do outro. A fama é merecida, depende da qualidade de nossos atos; a "celebrity" pode ser puro efeito do favor público sem que o sujeito célebre e seus atos eventuais tenham outro valor do que a capacidade de produzir celebridade.

Afinal, se o alvo é a fama, os atos de um indivíduo não precisam de outra qualidade do que a capacidade de torná-lo famoso. Portanto, para a pessoa de sucesso (grande ou pequeno), permanece uma questão: será que meu valor social é efeito de minha habilidade e competência ou então é apenas a consequência de uma notoriedade abstrata e portanto não merecida?
Em uma sociedade diferenciada pela reputação, ninguém está assegurado da legitimidade de seu sucesso. A dúvida de não valer nada nos espreita, desde que seja possível levar fama sem motivo outro do que a própria sede de fama. Esta dificuldade leva a maioria a procurar incessantemente uma prova a mais de seu valor, ou seja, mais reputação (o que, evidentemente, não resolve em nada a dúvida).

Também pode levar alguns a tentar demonstrar (sobretudo para si mesmo) que seu sucesso e sua reputação são efeitos da qualidade de suas produções. Como? Por exemplo, pelo anonimato: se o autor ficar afastado do olhar público, seu sucesso deveria então depender só do interesse despertado por seus produtos. O escritor parece aqui privilegiado, pois ele não precisa aparecer. Ora, infelizmente ou não, nesta sociedade, os caminhos para conseguir valor sem celebridade são precários.
Thomas Pynchon conseguiu se tornar um romancista famoso sem nunca mostrar a cara. Há até quem suspeite que ele seja um pseudônimo. Pessoalmente, o que ele escreve me entusiasma. Mas será que seu anonimato garante (para ele mesmo) a qualidade intrínseca de seus escritos? Não está nada certo, pois poderia se pensar que sua vistosa ausência é justamente o que o torna famoso e portanto desperta interesse em seus romances.

Nos anos sessenta, um jovem autor frustrado, na Itália, quis demonstrar o arbitrário dos comitês editoriais: ele transcreveu e propôs a uma grande editora um romance de Thomas Mann. O texto foi recusado com uma série de críticas. O episódio demonstrava a incompetência dos redatores e queria denunciar o sistema de "celebrity": uma vez anônimo, Mann era recusado. Vice-versa: Thomas Mann então estava no catálogo da editora talvez não porque a gente gostasse de lê-lo, mas porque era Thomas Mann e fazia parte do cânone. Um outro caso de "celebrity"?

Salinger mostrou sua cara na época do sucesso de "O Apanhador no Campo de Centeio". Mas desde então se escondeu e, na verdade, parou até de mostrar serviço. Presume-se que esteja escrevendo ou pensando coisas incríveis. Veja-se a contradição na qual está enroscado. Se escreve, publica e tem sucesso, o favor encontrado por seus textos lhe parecerá decidido por sua fama. Portanto seu valor pessoal dependerá de sua notoriedade e não da qualidade de seus escritos. Se não escreve e publica, também não há produtos que possam ser julgados. Mas, quanto menos ele se mostra e escreve, tanto mais seu silêncio se torna barulhento: acaba produzindo uma notoriedade abstrata.

Essas contradições levam à constatação do que, nesta altura, tanto Pynchon quanto Salinger devam fazer: não têm como evadir das condições da cultura da qual somos filhos. Quanto mais eles se escondem tanto mais ficam famosos. Será que Pynchon seria objeto do mesmo culto se a gente conhecesse sua cara e endereço? Será que Salinger seria objeto da atenção da "Esquire" e da Ilustrada se não vivesse atrás de um muro?

Paradoxalmente, o esforço deliberado de se subtrair aos charmes da celebridade acaba produzindo celebridade. Conscientemente ou não, é esta uma regra social que todos conhecemos. Para ser perseguido por paparazzi é melhor sair pela porta traseira do Hotel Ritz em Paris do que pela frente. É bom também se indignar periodicamente contra o sistema de celebridade e, quem sabe, dar um soco em um fotógrafo ou quebrar um gravador ou dois.

Ou então soltar detalhes íntimos contra a difusão dos quais será bom protestar (confira a recente biografia de Lady Di escrita por Morton graças a revelações feitas por ela mesma). Ou ainda, como Salinger, dirigir carros furiosos na saída de sua casa. Escritores, produtores, artistas, sujeitos contemporâneos, ainda um esforço para aceitar as regras deste nosso (corajoso ou não) mundo novo! Até porque não têm muita saída, a não ser pela eventualidade de se tornar uma "celebrity" por recusar o sistema da celebridade.

domingo, 2 de novembro de 1997

Restos da festa

Caetano narra um momento privilegiado do tropicalismo, antes de ele se tornar discurso dominante e complacente

Naqueles anos, de 85 a 89 _quando ainda não deixara a França e viajava regularmente entre Paris e o Brasil_, comprei pela primeira vez um walkman. Só usava na viagem, de ida e de volta, porque não queria falar com ninguém: partia, fervendo de saudade por um amor que ainda dura, e voltava a cada vez para o Brasil, feliz demais para bater papo. Caetano e alguns outros viajavam comigo e cantavam umas 11 horas, sem parar.

Eles, sem dúvida _mágica do tropicalismo_, representavam para mim o Brasil: a mulher que eu amava e queria, o cheiro de álcool na saída do aeroporto, a umidade poluída do ar de São Paulo e, enfim _em metáforas tão surpreendentes quanto a famosa máquina de costura sobre uma mesa cirúrgica_, as hortênsias de Gramado em uma tarde barulhenta na Praça da Sé, ou ainda a usina de Itaipu em uma manhã fria e ensolarada no cerrado.

Não tinha pena do padre Sardinha _de qualquer forma, com um nome assim, não era para ele se aventurar em terra antropófaga. Ao contrário, vindo ao Brasil, era isso mesmo que eu esperava: ser canibalizado. Ou seja, que se comesse o melhor de mim. Havia uma esperança a mais: que no processo de digestão eu mesmo me transformasse. E deu certo, ao ponto de que, hoje, eu escreveria outro livro de impressões brasileiras. Um livro menos organizado ao redor da exigência européia de um pai ordeiro que nos sustente.

Resta que, quando escrevi "Hello Brasil!", em 1991, dei um esporro no antropofagismo vulgar e (indiretamente, portanto) no próprio tropicalismo. Por quê?

Percebia, sobretudo nos meios psicanalíticos, que a parte do corpo que os canibais queriam comer eram sobretudo os chapéus. Segundo a carta de Pero Vaz de Caminha, o primeiro contato entre os indígenas e Nicolau Coelho foi a troca de um chapéu por um cocar. O cocar _destituído de todo valor simbólico_ se tornou brincadeira exótica para o português. E o chapéu? O índio assim premiado (e ilusoriamente convencido de ser oficial da marinha portuguesa), quem sabe servisse de lugar-tenente entre seus pares, mas certamente era objeto de irrisão da parte de seus novos donos. Pelado e de chapéu, desvirtuado, ele podia seguir dançando, cedendo suas penas (e outros bens) como suvenires: ele leria o sorriso de Coelho como marca de simpatia e aprovação. Mas de fato seria feito de palhaço. É isso que acontece cada vez que nos apropriamos de uma imagem de nós mesmos proposta pelos gostos exóticos dos outros. Em um livro recente, aliás ("Fantasia de Brasil", Ed. Escuta), Otavio Souza mostra como o olhar exótico talvez seja uma forma cordial de racismo.

Italiano, nascido logo após a guerra, tenho uma certa experiência dos efeitos e do significado de um exotismo nacional. Nos anos 50 e 60, ser italiano não era fácil. Por um lado, a unidade do país não era coisa feita (pelo jeito ainda não é, aliás). Por outro lado, havia a vergonha do fascismo e da guerra.

A Itália da minha infância era também pobre _Plano Marshall à parte. Fora os monumentos perenes de Roma, da Renascença, do glorioso barroco etc., que todos vinham visitar, o que era ser italiano? Vivi, com muitos outros, o sonho internacional e socialista como via de saída, de abertura ao mundo. Que, aliás, o internacionalismo proletário acabasse se realizando como globalização capitalista, eis o que já estava previsto: pois, se nossa cabeça estava com Gramsci e Togliatti, o coração batia do outro lado do Atlântico. O mundo para o qual se tratava de se abrir eram Faulkner, Hemingway, Steinbeck, o jazz etc. _todos proibidos durante o fascismo.

Nesta época, qualquer forma de nacionalismo era evidentemente suspeita, pelo passado recente. No entanto, algo surgiu, uma espécie de consciência ou de espelho nacional que é a comédia italiana dos anos 60. Spaghetti, mandolino, pizza, malandragem, dentes cariados, ''latin lover'' engomado, miséria com sol, e vai cantando.

Nunca achei engraçado. Dava-me um ódio que quase me impediu de apreciar o próprio Fellini. Eu não era, não queria ser uma personagem de Lina Wertmüller. O "italianismo" _chamemos ele assim_ daquela época me parecia uma maneira de tapar o sol com uma caricatura. Não podendo ou sabendo resolver o atraso, a solução era achar graça.

Por isso, vindo ao Brasil, queria amá-lo por suas histórias e sua história, não pelo cartão-postal. Este me parecia perigosamente próximo do folder de uma agência de viagem para aposentados alemães. Eles gostam do Brasil. Gostam tanto que preferem que continue igual, com as meninas baratas na praia do Recife.

Qualquer país de origem colonial é inevitavelmente herdeiro do sonho de seus colonizadores. No caso da América Latina _e especificamente do Brasil_ era o sonho de reencontrar o Paraíso terrestre. Não estranha que a idéia de uma utopia tropical faça desde então parte da sensibilidade brasileira. Também isso não exclui que _justamente por um gesto antropofágico_ a miragem do colonizador seja apropriada e se transforme em uma visão, um projeto e um estilo "nacionais".

Caetano narra um momento privilegiado e festivo, quando isso aconteceu.
Mas, para um viajante dos anos 80 como eu, sobravam os restos do tropicalismo: identificações triviais aos estereótipos da brasileiridade, como ele mesmo diz: "turbantes de bananas". Talvez tenha acontecido no Brasil algo análogo ao que aconteceu na Itália entre o neo-realismo de De Sica e as palhaçadas de Wertmüller: a imagem se tornou caricatura e a caricatura se tornou discurso dominante e complacente.

Nos anos 80, então, cada resto tropical me parecia corresponder a uma negação ufanista das contradições mais dolorosas. Por exemplo: somos "cordiais", portanto não é preciso ter carteira assinada e direitos trabalhistas, está tudo no coração, na "palavra" e no carinho. Somos uma "democracia racial" por milagre miscigenatório, portanto não precisamos de leis que possam proteger contra a discriminação. Somos malandros, portanto f...-se a coisa pública. Eles são felizes com uma nega, um fusca e um violão, portanto para que lhes aumentaria o salário? Afinal (Da Matta ''dixit'') gostamos de praia, samba e futebol, portanto somos brasileiros: com esta garantia, no que precisaríamos de qualquer outro espírito comunitário ou solidário? Etc.

Hoje moro nos Estados Unidos. A comunidade brasileira daqui é das mais severas com o que chamei de os restos do tropicalismo. Parece até, às vezes, que tenham emigrado para fugir deles. No entanto, a saudade se mata e se alimenta escutando a música que o tropicalismo inventou. Sem contradição.

domingo, 28 de setembro de 1997

'O sexual não é patológico'

"O sexo é sempre virtual porque, apesar da presença do parceiro, cada um está fundamentalmente na sua própria fantasia e procura fazê-la funcionar com o outro que está um pouco na dele. O sexo é uma espécie de lugar em que existem duas ou mais pessoas numa cama e, evidentemente, a fantasia sobrevoando.

Quando falo de fantasia sexual, falo de fantasia que se realiza sexualmente. O que fica no campo do sexual não deve ser jamais considerado como patológico. Estupro é sem dúvida um crime penal, mas não uma patologia sexual.

No começo do século 19 havia um hospício famoso na França, em que ficou internado o Marquês de Sade. Ele efetivamente tinha algumas idéias estranhas sobre a sexualidade, mas ele não era louco, não tinha razão alguma de estar lá. Apesar de tudo que a medicina do século 19 tentou articular para tornar patológicas algumas condutas sexuais, a única posição correta é considerar que as variantes do desejo sexual não fazem parte da loucura e, de certa forma, nunca são patológicas, a não ser quando isso envolve sofrimento das partes que se relacionam.
Existe uma patologia, por exemplo, na medida em que as pessoas podem sofrer por não conseguir ter a sexualidade que querem. Isso é terrível, mas não existe uma patologia da sexualidade.

Começamos a colocar os loucos nos hospícios uma vez que nosso sistema de referência passou a ser a razão. A partir do momento em que, no Ocidente, a razão passou a ser a especificidade do homem, era possível tornar patológica qualquer coisa que se apresentasse como desrazão.
Passados 200 ou 300 anos, a idéia que se manteve é que é possível socializar os loucos, e os hospícios foram se abrindo, o que, às vezes, eu acho absolutamente preferível. Em alguma medida, a loucura nos dá medo, ninguém tem a garantia de não ficar louco."

domingo, 7 de setembro de 1997

Morte preservou imagem virgem de Diana

Segundo uma antiga distinção, os soberanos têm dois corpos. Um corpo que expressa seu poder, majestoso, capaz de se reproduzir, mas regrado pelas exigências do protocolo. E um outro corpo, como todo mundo, atrapalhado pelas necessidades fisiológicas e pelas paixões.

Com esta dualidade, entretemos uma relação complicada e ambivalente. Por exemplo, preferimos sem dúvida que, no exercício do poder, o corpo Real prevaleça: ninguém gosta que o rei acabe destinando o dinheiro pretensamente público a satisfazer seus desejos carnais.
Por outro lado, o corpo das paixões é mais humano, conhecemos melhor e também presumimos que seja o ponto fraco do soberano, quem sabe o lado por onde seria mais fácil abrandá-lo e conseguir que nos escute.

Aqui as mulheres do soberano encontram uma função. Não as amantes, as quais certamente lidam com seu corpo carnal e que querem gozar dele com exclusividade. Mas as madres e as esposas. Elas conhecem seus pontos fracos: o sinal escondido, o eritema, o furúnculo, a angústia, etc. Elas são, desde sempre, as que podem interceder para nós.

Reza-se sem dúvida mais para a Madonna do que para o Pai Eterno. Isso porque o Pai Eterno não casou. De fato, no caso de soberanos terrenos, temos uma certa desconfiança das mães, provavelmente porque gostaríamos que o soberano fosse um adulto autônomo. Resta, por consequência, recorrer à esposa.

Não é por acaso que a função das boas primeiras damas é de ser caritativas: beijar crianças, distribuir cestas básicas. Elas demonstram, por via indireta, que o soberano ainda é humano. E prometem continuar murmurando para a real orelha, as histórias de nossas necessidades.
As melhores são as que vêm de nossos renques, pois, se não perderem a cabeça, lembrarão seu passado e nossas misérias.

Foi Evita que seduziu Perón ou foi Perón que, para governar, precisava de uma santa para quem os descamisados rezassem? Diana Spencer quis se tornar princesa, ou foi Charles Windsor que precisou reaproximar a casa real do povo? (Diana, aliás, foi apresentada como mais popular do que suas origens verdadeiras permitiriam).

O percurso de Diana foi perfeito. Alimentou nossos sonhos com sua ''realeza'', mas nunca esqueceu da gente. Quando se afastou de Charles, como mãe dos herdeiros, guardou toda a influência de uma boa intercessora. Por outro lado, deixou Camilla na incômoda posição da amante que cobiça o real Tampax e subiu ao firmamento de quem teve acesso carnal ao rei, mas não por isso gozou.

Enfim, morreu no momento certo, antes que um eventual casamento feliz com Dodi Fayad lhe devolvesse um sorriso satisfeito. É verdade que a santidade de Jackie Kennedy sobreviveu a seu casamento com um marinheiro grego. Talvez a de Diana sobrevivesse ao casamento com o empreendedor árabe. De qualquer forma, morrendo, ela se preservou como mãe e como virgem (por não ter gozado). Avançou substancialmente seu processo de beatificação.

A fada globalização se encarregou do resto: os soberanos ainda são nacionais, as intercessoras são internacionais. Meu filho Max, chegando de Paris a Nova York neste último domingo, foi interpelado no elevador. À vista do adesivo da Air France sobre sua mala, lhe perguntaram, em tom de luto: ''Como está a coisa em Paris?'' Mais tarde, foi sentar numa praça. Tentou bater papo com um mendigo. ''Oi, tudo bem?''. Não, disse o mendigo. ''Morreu minha princesa.''

segunda-feira, 25 de agosto de 1997

Nostalgia de quê?

No Festival de 1959, Joan Baez tinha apenas 18 anos. Seu nome nem constava no programa. Foi convidada a cantar duas músicas por Bob Gibson: o público e os críticos presentes se apaixonaram.

Não faltavam, no folk americano, musas com voz de soprano e longos cabelos, mas Baez tinha o espírito da época que espreitava. Identificou-se com o movimento dos direitos civis, marchou com Martin Luther King, lutou contra a Guerra do Vietnã. Tornou-se o ícone de uma geração.
A voz de Joan Baez _hoje com 56 anos_ continua a mesma. Mas o clima mudou.

Em uma entrevista ao jornal "Boston Globe" no começo do mês, comentando sobre sua recente turnê na Romênia, ela dizia: "Não canto mais 'We Shall Overcome' nos EUA. Aqui é uma coisa puramente nostálgica. "

A primeira vez que vi Joan Baez foi 28 anos atrás, acredito, no Madison Square Garden. Na época não havia telões e eu só conseguira comprar o ingresso mais barato. Baez, miúda, magrinha, era uma mancha de cabelos pretos de onde emanava uma voz extraordinária, forte, redonda e cheia.

Dava vontade de cantar junto e de pegar os vizinhos pelas mãos. Acabou assim mesmo, com "We Shall Overcome" cantado por todos, de mãos dadas e levantadas.

Baez jogava duro. Naquela noite, falou de seu marido, David, que estava em apuros por ter recusado ir para o Vietnã, instigou os presentes a queimar seus documentos militares, cantou uma música dos manifestantes dos direitos civis em Birmingham (Alabama) e dedicou a Ronald Reagan _então governadora da Califórnia_ uma música que começava: "É ele, o homem que entrega o leite cada manhã, é o chefe da Ku Klux Klan...".

Mas ela cantava "bonito". Era a face de nosso descontentamento que até nossos pais deviam gostar: melódica. Por mais que a mensagem fosse rebelde, ela era radiosa, nunca sinistra. Tudo era, ou parecia, tão claro. A gente era contra todas as guerras.

Contra o racismo, a racionalidade tecnológica, a divisão do trabalho, a alienação. Contra a repressão sexual e o machismo. Pela mágica de sua voz, mesmo nossa raiva era um bom sentimento.

Por isso, aliás, ela encarnou o espírito do folk: melodioso e, por mais sofrimento que expresse, acaricia a alma com um pano de fundo amoroso. Não foi estranho revê-la agora, como matriarca tranquila e segura de uma geração.

Cantou, com Dar Williams, "You're Aging Well" (você está envelhecendo bem) e produziu no público um riso estranho: os baby-boomers deram certo.

Com a música de Joan Baez, tive um outro encontro, diferente. Bem na época em que cantei "We Shall Overcome" no Med em Nova York, eu morava em Roma.

Tinha um amigo amigo californiano, Joshua Harding, aspirante a ator, rebelde e perdido rebento de uma família de artistas. Josh morreu aos 20 anos, durante uma indiada em Big Sur, Califórnia.

No meio da noite, carregado de pílulas de Nembutal corrigidas por simpamina e LSD, foi surfar. Encontraram seu corpo no dia seguinte, afogado na praia. Ele deslizara para a outra face dos anos 60, a face Janis Joplin, a face que perdeu o contato e saiu pela tangente.

O ano passado viajei pela Califórnia de carro. Dirigindo-me a San Francisco pela Rota 101, parei em Big Sur, onde Josh tinha surfado suas últimas ondas.

Subi de carro até em cima do promontório, abri vidros e teto e, a pleno volume, deixei tocar, para ele e para mim, "Amazing Grace", na versão _naturalmente_ de Joan Baez. Parecia-me a música certa para uma despedida que devolvesse sentido à sua morte e apaziguasse a memória.
Os mortos e feridos dos anos 60 não se contaram nos campos de batalha. Afinal, as vítimas de enfrentamentos (para ficar na América: os estudantes da Kent University, os manifestantes de Birmingham, o próprio Martin Luther King) não foram os únicos nem os principais heróis.
Os heróis dessa revolução foram aqueles que se perderam no caminho, aqueles chorados por Allen Ginsberg em seu "Howl": "Vi os melhores cérebros de minha geração destruídos pela loucura,... Arrastando-se pelas ruas negras na procura de uma agulha raivosa..."

Em Newport-97, escutando Baez, olho ao redor de mim e me espelho: há jovens, sim, mas a idade média é acima dos 30. O ambiente, apesar da multidão _10 mil no último dia e 7.000 no segundo_ é familiar, tranquilo.

Somos sobreviventes bem adaptados. As conversas não mentem: "Estava em Boston para uma reunião de negócios, li no jornal e não resisti, não vejo Baez desde 1971..". "Deixei meu barco no Maine e trouxe as crianças...".

Ben & Jerry, patrocinadores do evento e empresários de sorvete (ótimo, aliás), explicam que o novo orçamento dos EUA favorece os militares e abusa das crianças. Muito bem, só não sei se nos anos 60, patrocinador e empresário teriam conseguido falar.
Ao redor do palco, flutuam no vento, como bandeiras suspensas, uma série de inscrições: "O business tem a responsabilidade de devolver para a comunidade", assinado Ben (de Ben & Jerry).

Quem discorda aqui? De fato, as palavras de ordem de uma geração rebelde se tornaram leis trabalhistas e penais ou _no mínimo_ virtudes cívicas básicas. Isso não é uma revolução bem-sucedida? Talvez _poderia-se dizer_ a mais bem sucedida da história e ainda avançando.
A massa de Woodstock acreditava mesmo no poder do pensamento. E, antes da famosa chuva que transformou o festival em um mar de lama, todo o mundo ficou gritando: "No rain!". Choveu igual.

Em Newport-97, a chuva parou justo com a chegada de Joan Baez. Mas, no fim, ninguém foi embora cantando. Não que eu estivesse a fim. Não teria cantado mesmo. Fiquei sábio (irônico) logo: nem todas as guerras me parecem erradas, nem toda utopia me parece bem-vinda. Só fica uma estranha sensação, que diz assim: não era bem isso que a gente queria. Mas, então, o que era?
(CC)

domingo, 10 de agosto de 1997

Luxo à brasileira

Diferença crucial com os EUA não é religiosa, mas de modos de individualismo
Livro de Harrison contraria a ideologia multiculturalista dominante, para a qual diferenças culturais devem ser respeitadas


A ''questão hispânica'' nos Estados Unidos está na ordem do dia. É uma questão dupla. Externa: quais alianças privilegiadas, políticas e econômicas, estabelecer com a América Latina? Interna: qual o destino da imigração hispânica, que cresce desde os anos 70, e no próximo século ultrapassará os negros, podendo chegar, em 2050, a 26% da população americana?

A questão dá lugar a um sonho, ou a um pesadelo. O sonho é um caminho asfaltado com nobres sentimentos. A idéia de fundo é que paz e prosperidade trazidas por democracia e livre mercado transformarão os hispânicos em respeitáveis cidadãos americanos e seus países em honrosos parceiros de uma nova comunidade.

O pesadelo é mais perto da realidade. Ele diz que, externamente, as nações sul-americanas são parceiros pouco confiáveis, democracias e economias instáveis, corruptas e às vezes infiltradas pelo narcotráfico. O pesadelo diz também que, internamente, a imigração hispânica das últimas décadas é aquela que pior se integra na sociedade americana, a que mais recorre à assistência pública e transgride as leis etc.

No entanto, a idéia da Pan-América continua viva. Em 1961, Kennedy assinou com os chefes de Estado latino-americanos a Aliança para o Progresso. Três anos atrás, o projeto pan-americano se consolidou quando FHC e Clinton assinaram com os outros, de novo, uma aliança para o desenvolvimento e a prosperidade comuns.

Neste contexto, Lawrence Harrison argumenta que democracia e livre mercado são ótimos para todos, mas não suficientes para ultrapassar as diferenças culturais que nos separam. Tem toda razão.

A globalização é um projeto comportamentalista. Aposta-se que, modificando o comportamento político e econômico das pessoas, elas acabem se transformando também culturalmente. Harrison afirma que a especificidade da cultura latino-americana produziu nosso precário desenvolvimento. Portanto, ele conclui, para que seja possível um futuro de prosperidade pan-americana, é necessário que haja, na América Latina, uma mudança cultural (e não só política e econômica). Sem isto a América Latina está impedida por sua cultura. E os imigrantes latino-americanos seguem trazendo consigo um capital cultural negativo que dificulta e atrasa sua inserção na sociedade americana.

Pessoalmente, concordo com ambas estas afirmações, as quais indignam os norte-americanos, porque implicam uma declaração de inferioridade da cultura latina em relação à norte-americana. Como? Simples: o ideal de progresso e prosperidade é inquestionável na cultura norte-americana, portanto uma cultura menos performática deste ponto de vista é uma cultura inferior. Ora, a ideologia multiculturalista dominante pensa que as culturas devem ser respeitadas em suas diferenças, mas não autoriza nenhuma hierarquia entre elas.

Harrison não tem simpatia pelo multiculturalismo. Prefere a representação da sociedade norte-americana como ''melting pot'', onde as diferenças étnicas e culturais devem vir se integrar em um projeto comunitário. De novo, concordo: é difícil imaginar uma nação sem um sentimento de destino comum.

Duas observações merecem ser feitas. Primeiro, atrás do nome América está uma série de traços compartilhados por Norte e Sul, os quais poderiam constituir denominadores comuns.
Segundo, Harrison apenas menciona um fato decisivo no fracasso da integração hispânica nos EUA. A grande onda migratória latina começou nos anos 60, na época em que a consciência norte-americana atravessava uma crise inédita. Torturada pela culpa em relação aos índios e negros (para não falar do Vietnã), a cultura americana não parou desde então de se menosprezar, encorajando seus imigrantes a desconfiar dos valores americanos. Há mais: o movimento dos direitos civis teve o efeito de produzir, sobretudo na população afro-americana, uma atitude de reivindicação frente ao Estado e à nação. Ora, o tradicional estadismo latino pegou esta carona, auxiliado pela confusão produzida pela culpa norte-americana.

Conclusão: os hispânicos foram a única onda migratória a quem foi proposta (e que escolheu) uma identificação com os negros. Convidados, por exemplo, a considerar o Estado como uma teta, foram afastados de um dos valores americanos essenciais: ''self-reliance'', contar consigo mesmo. Valor do qual sua cultura já os afastava.

O perfume de ousadia que exala do livro é sem grande efeito para o leitor brasileiro. Cansamos de saber que nossas raízes históricas e culturais (colonização lusitana, escravatura) nos reservam um ingresso hesitante na modernidade. Mas não consideramos que progresso e prosperidade sejam valores absolutos. Podemos lidar com nosso ''arcaísmo'' com carinho, no estilo Roberto DaMatta, sem considerarmo-nos inferiores.

Ora, ignorando os clássicos da sociologia nacional, Harrison parece pensar que o Brasil tivesse como única explicação de seu atraso a Teoria da Dependência, assim resumida: é tudo culpa dos norte-americanos. Harrison acha que a Teoria da Dependência _uma espécie de doença infantil da América Latina_ escondeu aos latino-americanos o peso de sua herança cultural.
Ora, FHC e Enzo Faletto podiam acreditar que os males da América Latina fossem devidos ao então proverbial imperialismo ianque. Mas eram ambos cultos demais para não ter uma idéia dos fatores propriamente culturais também em jogo.

Resumindo: o Brasil teve um crescimento econômico assustador durante 20 anos e tem enfim instituições democráticas, mas não por isso realiza as condições mínimas de igualdade e comunidade de uma sociedade moderna. É culpa dos norte-americanos? Não. Então é uma questão cultural, ele conclui. Obrigado, já sabíamos. Vamos ver então qual é a dita diferença cultural. É aqui que o livro se revela tragicamente fraco.

Por um lado, Harrison _embora consagrando um capítulo a cada uma das grandes nações da América do Sul_ propõe substancialmente uma distinção monolítica. Há a América anglo-saxônica (EUA e Canadá), de um lado, e a América ibérica, de outro, ponto. Nenhuma consideração sobre as diferenças entre colonização hispânica e lusitana nem sobre os diferentes processos de descolonização e independência que criaram as nações sul-americanas. Sérgio Buarque, libera-nos!

Por outro lado, Harrison descreve a oposição cultural entre as duas Américas com um serrote elétrico. Um serrote weberiano. Ele pega Max Weber e simplifica ao osso uma idéia só: o protestantismo produziu prosperidade e progresso, o catolicismo é um atraso. Ele chega a afirmar que nossa esperança de progresso é a difusão do protestantismo na América Latina. Entraremos na modernidade graças ao bispo Macedo. Nestas condições, talvez fosse melhor ficar no atraso.

Max Weber, lendo Harrison, teria uma séria dor de cabeça. Não é possível tomar uma religião como uma invariante histórica e considerar que o calvinismo genebrino do século 16 e 17 possa reproduzir os mesmos efeitos sociais no Brasil do século 20. Sem contar que nem do mesmo calvinismo se trata.

Além desta ingenuidade grave, a oposição entre protestantismo e catolicismo é hoje ideologicamente pouco consistente. O individualismo, que é a ideologia básica da modernidade, foi alimentado pelo cristianismo católico. Certo, a um dado momento, a camisa católica revelou-se um pouco apertada para a ideologia moderna que ela promoveu. Precisou de uma reforma que outorgasse ao indivíduo a autonomia de interpretação do texto divino, uma ética do trabalho e das obras terrenas etc.

Apesar do papa, o catolicismo de hoje é de fato reformado: a maioria dos católicos, sem deixar sua igreja, adotam, por exemplo, uma autonomia ética.

Mais frustrante ainda: Max Weber _parcialmente e mal digerido_ é convocado sozinho. Talcott Parsons poderia ter sugerido a Harrison que, para entender uma diferença cultural, há outros fatores além da religião. Por exemplo, qual é a importância relativa de coletividade e indivíduo ou quais são os elementos que decidem o status em uma sociedade dada.

Werner Sombart (sobretudo ''Luxo e Capitalismo'', mas já a última parte do primeiro volume de ''Capitalismo Moderno'') lhe teria permitido entender a misteriosa permanência de desigualdades no Brasil. A modernidade começa, segundo Sombart, quando a posse e o uso de bens de luxo (e não as castas) determinam o status social. Ou seja, quando as diferenças sociais são quantitativas (quem tem mais e quem tem menos). Ora, a resistência do capitalismo brasileiro à distribuição das rendas e à abertura de um mercado interno se entende como uma maneira de manter diferenças qualitativas, reservando o acesso ao luxo para castas privilegiadas. Por este caminho, Harrison poderia descobrir que a diferença crucial não é de religião, mas entre o individualismo avançado norte-americano e uma sociedade em transição, ainda hierárquica e tradicional.

Enfim, Harrison esperneia contra a Teoria da Dependência que teria privado a América Latina do entendimento cultural de seu destino. Com isso, ele mesmo não percebe que talvez a Teoria da Dependência fosse a expressão de um traço essencial da cultura latino-americana. No estadismo ibérico, como ele afirma, o cidadão acredita que o Estado _e não ele mesmo_ deve resolver os problemas de sua vida. O simples complemento desta representação consiste em pensar que também o Estado (nacional ou outro) _e não o próprio cidadão_ é responsável pelos malogros.

Conclusão: o livro diz que os latino-americanos são culturalmente diferentes. Isso pode ser um problema para a Pan-América e para os EUA. E talvez seja um problema para a gente. Agora, sobre a diferença em questão, Harrison diz pouco que preste.

domingo, 20 de julho de 1997

A invenção do clitóris

'O Anatomista' narra como Mateo Colombo descobriu o pequeno órgão feminino


Se você tiver o projeto de ler só um livro neste inverno, leia, então, "O Anatomista", de Federico Andahazi (Ed. Relume-Dumará, excelente tradução de P. Wacht e A. Roitman). Gostou de "O Nome da Rosa", de Umberto Eco? Adorará "O Anatomista". Acha "O Nome da Rosa" um pouco devagar, comprido demais e prefere o filme? Melhor ainda: "O Anatomista" é leve, rápido, ágil.
O livro chega ao Brasil já famoso, ajudado por um escândalo. Ganhou na Argentina o prêmio Fortabat. A senhora Fortabat não gostou da decisão do júri, pagou o prêmio, mas recusou-se a associar seu nome ao romance. Certo, o texto tem momentos eróticos, e supõe um papa, no século 16, satisfeito em recuperar a saúde graças ao sangue de meninas degoladas. De qualquer forma, a reação fortabatiana produziu um eco da própria história contada no romance, no qual o anatomista lida com censura e inquisição. Andahazi virou, assim, matéria do "New York Times", pulou para a lista dos mais vendidos na Argentina e seu livro foi comprado pela editora Doubleday por US$ 200 mil _recorde para uma obra sul-americana de autor estreante. O cinema já se interessa.

Mas, enfim, qual é a história? Trata-se de Mateo Realdo Colombo, anatomista italiano da Renascença que publicou em Veneza, em 1559 _ano presumido de sua morte_, um tratado de anatomia: "De Re Anatomica" (como informação: em todas as bibliografias, ele aparece como Realdo e não Mateo). O livro teve numerosas edições e foi influente. Colombo (que não era parente do navegador) entrou para história por uma intuição sobre a circulação do sangue e pela descoberta do clitóris: "O órgão que governa o amor nas mulheres". Armado dos poucos dados biográficos, Andahazi inventa e conta esta extraordinária aventura do anatomista italiano.
Antes de mais nada, a própria idéia de que haja uma descoberta do clitóris pode parecer estranha: como é possível que ela seja tão recente? Ou mesmo que venha a ser uma descoberta? Será que as próprias mulheres não conheceriam desde sempre seu corpo?

Todos nossos conhecimentos são sempre dirigidos por representações ideológicas. No caso, a obra anatômica de Realdo Colombo é um momento crucial na evolução de nossa representação do corpo: desde os gregos até o fim do século 18, a principal representação ocidental da diferença sexual é uma idéia de complementaridade. Mais exatamente, o sexo feminino é descrito, pensado e vivido como um sexo masculino virado para dentro (com a consequência de que a mulher é mais complementar do que o homem). A implicação desta representação é, por um lado, a tranquila familiaridade da diferença sexual: o outro sexo é só a luva revirada do nosso. Por outro lado, a representação situa o sexo feminino, evidentemente, como subalterno: a costela de Adão produziu o forro necessário para a espada.

Esta representação não é concebível como um "erro científico". O erro, aliás, seria pensar nossas representações, científicas ou comuns que sejam, como extravios em um suposto inexorável caminho da verdade. Esta é uma ilusão moderna: a idéia de que nossa ciência estaria acima dos tormentos da ideologia e, do alto de seu saber, olharia para trás, rindo de nossas passadas e primitivas convicções.

Um dos prazeres que o livro proporciona, aliás, consiste em descobrir representações que, colocadas na boca de Colombo, parecem ridículas. Por exemplo, a idéia de que _pela ausência de alma na mulher_ o sêmen feminino não poderia ser convertido em energia espiritual e, portanto, produziria doença se fosse retido dentro do corpo. Mas, voltando ao assunto, é verdade que, desde a representação da complementaridade dos sexos, houve uma mudança radical, embora progressiva: a descoberta da mulher como outro sexo, não complementar, mas diferente do masculino.

A bem dizer, não se trata tanto de uma descoberta, quanto de uma invenção. As representações que organizam nossa concepção do mundo _e, por consequência, nosso agir e nossas vidas_ sempre parecem ser "descobertas" conforme a realidade, pois, na verdade, a constituem. Por exemplo, na mesma época em que vagina era pênis revirado, a Terra era chata e não-redonda (astúcia da razão, foram dois Colombos que mudaram as duas idéias). O que importa não é saber se a Terra verdadeiramente é chata ou redonda: importa, ao contrário, entender como nossa relação com o mundo mudou com a ajuda da idéia de que a Terra é redonda. Ou seja, Colombo (o primeiro) talvez tenha descoberto que a Terra é redonda, mas, sobretudo, inventou uma nova relação do homem com o mundo.

Do mesmo jeito, Realdo Colombo inventou o clitóris para que o Ocidente pudesse começar a pensar a mulher como outra coisa além de um simples apêndice do homem. A obra-chave para reconstruir uma história das representações do corpo e do sexo é o livro de Thomas Laqueur, "Making Sex - Body and Gender from the Greeks to Freud" (Fazendo Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud, Harvard University Press, 1990, que Andahazi, aliás, cita). Segundo Laqueur, a invenção de Realdo Colombo não teve efeitos imediatos. Foi necessário que se chegasse ao século 18 para que uma representação autônoma da mulher se impusesse.

De fato, no começo, a invenção do clitóris não levou ninguém a abandonar a idéia do forro. Alguns autores pareciam não se incomodar com a idéia de que, de repente, a mulher teria dois pênis: um, revirado, para o coito, e outro, pequeno, lá em cima, para o prazer. Provavelmente, o clitóris era tanto melhor assimilável pelos homens quanto mais ele era descrito como uma espécie de versão menor do pênis masculino. Afinal, tudo isso não colocava em perigo a supremacia de Adão. Ao contrário, podia transformar a mulher em uma espécie de hermafrodita. Com isso, os homens podiam dormir tranquilos. Não só a vagina é um pênis ao avesso, mas as mulheres também têm uma miniatura de pênis.

Pode-se duvidar, aliás, que, deste ponto de vista, a gente tenha progredido muito. Certo, desde o século 18 a mulher veio conquistando sua "paridade". Mas será que nossa visão de seu sexo mudou? As grandes representações, do receptáculo e do pequeno pênis meio atrofiado, continuam vivas, apesar dos inegáveis recentes efeitos do feminismo contemporâneo.
No entanto, mesmo antes disso, algo mudou (como aparece claramente em Freud, por exemplo): o sexo feminino, embora eventualmente representado ainda como versão segunda do masculino, tornou-se objeto de uma manifesta grande perplexidade. O que será que uma mulher quer? Como será que ela goza?

A representação contemporânea do sexo feminino é, por um lado, a mesma de sempre e, por outro lado, um fascinante mistério. É bem possível, aliás, que a representação do mistério seja mais uma estratégia masculina: nós temos um sexo, um gozo que se presume seja claro e definido, e vocês são misteriosas.

O que faz justamente o charme do romance de Andahazi é que, em seu relato, Realdo Colombo é um verdadeiro herói moderno. Pois, descobrindo o clitóris, ele, na verdade, não está tanto querendo reformar a anatomia, mas correndo atrás de um órgão que lhe daria, enfim, controle do gozo feminino e lhe permitiria "tocar uma mulher como um instrumento". O que o seduz é a possibilidade de fazer gozar qualquer mulher e _talvez mais importante ainda_ de fazê-la gozar de uma maneira familiar, como goza um homem, por exemplo.

O Colombo de Andahazi, entusiasmado pela descoberta, que faria com que as mulheres lhe obedecessem a dedo, no entanto, fracassa. Não diremos aqui como, pois só vale a pena levantar uma pergunta com a qual o leitor ficará de qualquer forma: o que é uma puta? É a mulher que ousa se entregar ou, então, aquela que não se entrega nunca? Os homens, aliás, não param de hesitar entre estas duas possibilidades, chamando de puta tanto a mulher fácil quanto aquela que a eles se nega.

Evidentemente, a homonímia dos dois Colombos, o da América e o do clitóris, inspirou Andahazi, assim como ela deve ter inspirado Realdo a se tornar descobridor. Andahazi, aliás, pretende que Realdo Colombo, em seu tratado, chame o clitóris, sua querida descoberta, de "oh, minha América, minha doce terra encontrada!".

De fato, li com cuidado o capítulo 16 do "De Re Anatomica" e não encontrei esta gloriosa metáfora. No entanto, esta frase é um verso de John Donne, escrito mais tarde, em uma famosa elegia para sua amada, cujo título é "Indo para Cama" (''Going to Bed''). Mesmo que a citação de Colombo seja inventada, ela é bem "trovata".

Na Renascença tardia, a América torna-se mesmo uma metáfora do desconhecido e, enfim, do corpo feminino. Também ela serve para entender a relação entre os dois Colombos. Pois se, entre as explicações do surgimento da modernidade ocidental, sempre são mencionadas as grandes descobertas geográficas, menos frequentemente é mencionada a revolução em matéria de amor que o século 13 e 14 acarretaram.

O único que viu esta relação não foi nem Weber nem Marx, mas Werner Sombart (seu monumental "O Capitalismo Moderno", publicado entre 1916 e 1923, merece ser lido e relido). Sombart entendeu que a liberdade de amar, ou seja, de escolher uma mulher segundo o amor, foi decisiva na constituição do mundo moderno. Pois implicou, por exemplo, que, para se tornar amável e seduzir, as condições de casta do amante não bastavam mais. Daí a necessidade de bens de luxo para se distinguir aos olhos da amada e para conquistá-la. Parece coisa de pouca importância, mas lembre-se que, em grande parte, a conquista da América inteira foi, sobretudo, uma grande procura de bens de luxo.

Resumindo: a procura de um mundo novo onde fazer glória e fortuna ou de onde trazer produtos que pudessem nos dar destaque se deu junto com a necessidade de responder aos recônditos desejos da mulher amada e de conseguir seduzi-la. Esta coincidência merecia dois Colombos.
Enfim: a modernidade incipiente é uma época de grande paixão anatômica. Pouco importa que esta atenção ao corpo humano estivesse ou não (deixemos a Inquisição decidir) a serviço da glória divina. De qualquer forma, o corpo começou a interessar quando o indivíduo veio percebendo que na vida podia e devia contar só consigo mesmo, com seu corpo individual, e não com a comunidade que já não lhe impunha mais seu destino. Daí a idéia de ver de perto o que havia por dentro da máquina. E, naturalmente, da parte sexual da máquina, pois as jóias do amor (sexuais e conjugais) também não eram mais garantidas pela instituição social, mas deviam ser procuradas pelo mundo afora. Colombo foi, então, um ilustre anatomista.

Ora, a Biblioteca de Medicina de Washington possui uma cópia da obra de Colombo em uma edição tardia, de 1593, feita em Frankfurt por P. Fisher. Nas páginas finais desta cópia _segundo o catálogo descritivo dos livros impressos antes de 1956 em bibliotecas americanas_, há várias anotações manuscritas. Uma, feita em Antuérpia, em 1596, com o título "De Coitu". Outra, também em Antuérpia e no mesmo ano, relata observações anatômicas (entenda-se: relatos de dissecação de cadáveres) feitas segundo as recomendações de Colombo. Estas notas são assinadas por um _acreditem se quiser_ doutor Franckenstayn (sic).

Eu quis, naturalmente, correr a Washington, perseguindo várias hipóteses. Primeiro, este exemplar único da obra de Colombo (com as anotações) poderia ter pertencido a Mary Wollenstonecraft Shelley, e dele ela teria tirado o nome do famoso médico romântico. A coisa poderia, aliás, estar documentada na Shelley's Room da Biblioteca Pública de Nova York.

Segundo, talvez a história mesma que ela conta tenha sido verdadeira e documentada nestas misteriosas anotações. Mas eu não tinha tempo. Quem sabe Andahazi retome o fio e nos dê, assim, uma nova história. De qualquer forma, há mesmo um fio entre a paixão anatômica da Renascença, a subsequente descoberta de Colombo e Frankenstein. São todos momentos da história do homem ocidental _obrigado, em troca de sua liberdade, a inventar a si mesmo a partir do próprio corpo.

domingo, 25 de maio de 1997

A vida boa e o país-paraíso

Para alegria da casa-grande, brasileiros são felizes porque se contentam com pouco

Que os deuses das ciências sociais estejam conosco! A invocação é necessária antes de interpretar uma pesquisa sem dados comparativos. Ou seja, sem os resultados de uma pesquisa igual produzida em outras culturas, ou em outras épocas. Na falta de comparações, resta tentar entender as tendências de olho na realidade do Brasil, presumindo que os deuses respondam e nos protejam.

Há quinze dias esteve em São Paulo _para participar do encontro São Paulo sem Medo_ Jack Maple, eficientíssimo braço direito do ex-chefe da polícia de New York, Bratton, de 1993 a 1996, a época que viu o começo de uma drástica redução da violência criminosa naquela cidade.
Conversando uma noite, Maple me disse que ele conseguia viver só a duas velocidades: ou a máxima, ou, então, em estaca zero. Seu prazer é a pesca de alto-mar. Isolado a 50 ou 60 milhas da costa, num dia calmo de sol, Maple parece muito diferente do comissário que, às 3h da madrugada, inspecionava os distritos de Nova York.

Somos todos Jack Maple. Todos, brasileiros ou não, somos seres de transição, divididos entre um sonho de paz e, por outro lado, a velocidade da corrida que chamamos de sucesso, seja ele feito de abundância de bens que demonstram nosso status, de poder ou notoriedade. Citadinos, sonhamos com Alphaville. Alphavillinos, ficamos desesperados pela drástica ausência de Joyce Pascowitch em nossas noites.

Mais radicalmente, ficamos a cavalo entre dois desejos. O desejo de um mundo em que _com a benção da providência divina, irresistível dispensadora de destinos_ saberíamos aceitar nossa condição e, dentro de seus limites, construir alguma felicidade; e, por outro lado, o desejo de um mundo indefinido, no qual nossa condição poderia ser mudada e melhorada e em que, para isso, poderíamos contar só com nossos esforços, sem esperar o bingo da graça divina. Em suma, praticamos duas representações opostas da felicidade: a vida boa e o sucesso.

A vida boa, em princípio, é o ideal de felicidade das sociedades tradicionais e era o ideal da nossa antes da modernidade (embora, como dissemos, continue conosco). Para a vida boa, é necessário satisfazer o essencial e cultivar a arte de fazer uma festa tranquila, com pouca coisa. A técnica da vida boa é simples e antiga (a filosofia helenística era mestre nela): precisa saber se satisfazer não só realizando nossos desejos, mas também, e sobretudo, conseguindo desejar um pouco menos.

O ideal de sucesso, ao contrário, é um sonho moderno e, a rigor, não tanto uma representação da felicidade quanto o direito (e a obrigação) de correr atrás. Para a modernidade, o que conta é a procura que motiva a mobilidade social: ser insatisfeito é ser moderno. A felicidade como condição estável, do ponto de vista moderno, sobra para os primitivos.

Entre esses dois sonhos _um desejo infinito de sucesso que nos empurra e a tranquilidade da vida boa_ oscilamos, como entre cidade e subúrbio, vida ativa e aposentadoria etc. Um herói recente conseguiu conciliar os dois: Forrest Gump. O rei dos camarões _acionista da Apple Computers achando que é um negócio de fruta_ consegue o impossível: encontra o sucesso sem deixar a simplicidade da vida boa. Mas quem topa ser como ele?

Pois bem. Os brasileiros (65%), perguntados se eles se consideram pessoas felizes, respondem que sim. Como é possível? É que eles entenderam bem a pergunta, que concerne às pessoas, e responderam de olho no ideal mais privado de felicidade: o ideal da vida boa.

Os itens mais importantes para a felicidade não são os esperados índices do sucesso moderno, mas fé religiosa, casa própria e saúde, ou plano de saúde. Ou seja, o básico para gozar de prazeres discretos, com a condição de não querer demais. Atualizando: um golzinho, um parceiro e um violão... Os itens mais incertos (e modernos), que deixariam a felicidade eternamente em perspectiva (o próprio ''sucesso'', por exemplo), acabam como lanterninha. ''Se divertir'' leva apenas 7%. Com razão, pois a vida boa implica um universo circunscrito, enquanto a diversão sugere ameaçadoras ampliações do horizonte. Em suma, os brasileiros são felizes porque _declaram_ sabem, segundo o preceito antigo, ser felizes com pouco.

Uma confirmação dessa interpretação da resposta está com a pequena, mas significativa, porcentagem de pessoas acima de 65 anos (75%) que respondem: sim, somos felizes. A felicidade da aposentadoria _a época da vida em que o sonho de sucesso conta menos_ é uma felicidade de vida boa.

Não só a maioria dos brasileiros se considera felizes, mas também eles consideram que o Brasil é o país onde mais há pessoas felizes. Essas duas respostas são redundantes. Pode parecer contraditória a resposta à pergunta: ''Você acredita que os brasileiro são felizes?'', em que só 23% respondem sim. Mas a contradição é só aparente. Surpreendentemente, os entrevistados parecem fazer a diferença correta entre as pessoas e o grupo social: ''os brasileiros'' não são a mesma coisa que ''as pessoas'', no Brasil. Como corpo político, como coletividade _organizada em uma sociedade moderna e, portanto, tomada pelo jogo da mobilidade social_, os brasileiros se consideram infelizes.

Com toda razão e pertinência, pois são obrigados a jogar o jogo da modernidade como farsa, lutando contra a obstinada sobrevivência de regras tradicionais escravocratas. Jogam uma paródia de mobilidade social e corrida ao sucesso sobre um tabuleiro em que as diferenças entre as casas ainda são, em grande parte, qualitativas.

A pesquisa, então, parece confirmar a leitura do país cara a Roberto Da Matta. Dois universos caminham juntos no Brasil (embora não de mão dadas): uma comunidade tradicional que sobrevive a um país liberal pretensamente avançado. A pesquisa acrescenta que os brasileiros saberiam fazer a diferença: como coletividade, ''os brasileiros'' são infelizes, mas, no Brasil, ''as pessoas'' seriam felizes.

Da Matta concluiria _feliz_ que os restos do Brasil arcaico fazem nossa identidade e nossa felicidade de vida boa, enquanto a modernidade azucrina nossa existência. Eu, muito menos otimista, entendo assim: os restos arcaicos são só formas antigas de domínio, jeitinhos execráveis que barram o acesso a uma modernidade democrática em que as diferenças sociais não seriam mais qualidades quase naturais.

Tomados na contradição entre um modo de produção aparentemente moderno e laços sociais e políticos que tornam impossível o sonho de sucesso (incentivo indispensável deste modo de produção), os brasileiros se retraem. De necessidade eles fazem virtude, e concentram sua felicidade na vida privada. Os salários são defasados (só 34% satisfeitos)? Resta compensar com o prazer do trabalho (65% satisfeitos). Sobretudo, é preciso criar um culto da felicidade doméstica: extraordinários 70% se declaram felizes com sua vida sexual, 43% dão nota dez ao desempenho sexual de seu parceiro, 76% são felizes com o casamento.

Contra a insatisfação política e social (37% infelizes e 40% mais ou menos felizes com relação à política desenvolvida em dezembro passado) reage-se com o culto de uma vida sem demasiadas pretensões e, portanto, boa.

Em suma, se a felicidade é entendida como vida boa, se a música popular canta a arte de sorrir se contentando com pouco, em vez de cantar corridas loucas pelas auto-estradas da vida, talvez não seja por alguma romântica especificidade cultural, mas pelo estado das rodovias no país. Será verdade que os brasileiros praticam esta sabedoria de pantufas? Ou suas respostas são só o fruto de uma imagem feliz de si mesmos que continuam querendo apresentar ao mundo?

De qualquer forma, o resultado não me faz feliz. A alegria (fingida ou não) na senzala sempre encorajou a festa na casa-grande. Não tenho carinho de sobra para o cartão postal de um Brasil-paraíso, em que o ''povo'' fica sorrindo e as elites contam tranquilas com a tolerância (e a inércia) de quem seria feliz com casa própria na vila, fé religiosa e plano de saúde. Eu teria sido mais feliz encontrando na pesquisa menos sorrisos, mais raiva e mais vontade de abrir portas e janelas da casa própria para construir espaços novos de vida em que o fazer dê sentido a nossas vidas, mais ou menos felizes.

domingo, 13 de abril de 1997

SEXO

. Diferenças sexuais

Sexos biológicos ainda há dois: mulher e homem. Isso, se definirmos o sexo pelos órgãos externos e a função de reprodução. Mas parece estabelecido que os órgãos sexuais externos e internos dizem pouco sobre nossa futura vida sexual.

Há alguns anos, graças aos trabalhos de Robert Stoller, existe a distinção entre sexo biológico e identidade de gênero, sendo entendido que sexo e identidade podem não corresponder. A identidade de gênero (masculino, feminino) não depende (só) do sexo biológico, mas é o resultado de uma série de fatores: desde o desejo dos pais em suas manifestações mais concretas (o jeito de tocar e de falar do corpo do nenê) até _naturalmente_ determinações biológicas mais sutis do que os órgãos externos e reprodutores. Que sexo e identidade de gênero possam não corresponder significa que é possível se viver como mulher em um corpo de homem e vice-versa.

Mas, cuidado: existir como homem ou como mulher não implica nada no que concerne ao desejo sexual. Paradoxo: se tenho um corpo de mulher, mas vivo como homem, isso não quer dizer que eu prefira desejar mulheres.

A coisa atrapalhou, por exemplo, as clínicas americanas que têm a tarefa oficial de decidir quem estaria suficientemente em discordância com seu sexo anatômico para ter direito a uma operação de mudança de sexo (biológico). Justamente, uma mulher _embora preenchendo todos os requisitos psíquicos e físicos_ não conseguiu durante dois anos a dita autorização, porque preferia desejar homens. Assim, lhe era dito: ''Mas, se você gosta de homens, por que quer se tornar homem? Não vai ser um problema?''. Ela respondia: ''Nada disso, gosto de homens e seguirei gostando como um homem homossexual''.

Complicado, mas respeitável. Então: sexo biológico é diferente de identidade de gênero, que é diferente de orientação sexual.

Nesta recente altura da discussão, florescem pesquisas para mostrar que a orientação sexual tem fundamento biológico (logicamente diferente dos órgãos sexuais externos e reprodutores).
Os resultados não são conclusivos: algumas especificidades biológicas (cerebrais, por exemplo) parecem corresponder (não mecanicamente e com amplas margens de variação) a definidas orientações sexuais. Resta saber se estas diferenças são genéricas ou então produzidas pelo próprio comportamento sexual.

O debate assume tons propriamente ideológicos. Alguns acham que justificar, por exemplo, o homoerotismo por via biológica deveria aumentar a tolerância, outros acham que o jogo não vale a aposta.

A questão, na verdade, se formula melhor de outro jeito: certamente vai ser possível encontrar diferenças biológicas (cada vez mais finas) segundo as quais dividir os seres humanos. Mas, se as diferenças encontradas são sem dúvida biológicas, as categorias segundo as quais os humanos são divididos por estas diferenças são culturais. Para maior clareza: não se trata de discutir se o homoerotismo é determinado biologicamente ou não. O problema é que, para procurar uma especificidade biológica do homoerotismo, é necessário primeiro considerar (culturalmente) que o homoerotismo seja uma categoria relevante. Daí, procura-se ver se existe ou não algum traço biológico dos homoeróticos.

Então, por mais que encontremos uma especificidade biológica do homoerotismo que seja estatisticamente significativa, resta que a divisão da sociedade sexual em homoeróticos e heteroeróticos não tem nada de biológico. Ao contrário, é uma distinção cuja existência é extremamente recente, data do século 19 (os trabalhos de Jurandir Freire Costa a este respeito são dificilmente contestáveis).

Volta-se, assim, à estaca zero: o sexo não coincide com a identidade sexual (de gênero), que por sua vez não coincide com a orientação sexual. Desta orientação talvez seja possível encontrar uma marca biológica. Mas, de qualquer forma, as categorias, os grupos que acabaremos confirmando graças a estas marcas não serão nunca ''naturais'', mas sempre decididos previamente pelo estado de nossa cultura.

Assim, se ainda subsistem as categorias que dividem a sexualidade segundo o sexo do parceiro, de fato o cotidiano as desmente. A Associação Nacional do Couro, dos EUA, abre-se aos amadores de couro de qualquer ''orientação''. O que significa reconhecer que a verdadeira orientação é o couro, não o sexo do parceiro. Paralelamente, o debate sobre o casamento homoerótico força a similitude entre maneiras de amar, independentemente do sexo dos parceiros.

Assim, o movimento ''queer'' (estranho) _embora emanação do movimento gay_ parece defender uma pluralidade indefinida de sexualidades que se definem pelas fantasias e, de novo, não pelo sexo dos parceiros.

A problemática das diferenças sexuais se transforma, neste fim de século, em uma questão sobre as próprias categorias segundo as quais se colocariam as diferenças. A coisa vai mais longe do que as orientações sexuais.

As categorias (masculino e feminino) da identidade de gênero são também discutidas: com efeito, se tenho um corpo de mulher e me sinto homem, será que minha identidade de gênero (masculina) não concorda com meu corpo de mulher ou será que _nesta contradição_ minha identidade de gênero é diferente tanto do masculino quanto do feminino? Será que o transexualismo, o ''drag'', mesmo o travestismo, não são identidades de gênero específicas, diferentes de masculino e feminino?

. Práticas sexuais
A perda de relevância da orientação sexual ou _no mínimo_ das categorias tradicionais da orientação sexual (e mesmo da identidade de gênero) é o sinal de uma mudança mais decisiva. Desde o primeiro volume da ''História da Sexualidade'', de Michel Foucault _mal recebido na época, mas a meu ver, cada vez mais influente_, já começamos a reconhecer que a própria relevância do sexo em nossas vidas, e ainda mais em nossa fala, é um fenômeno cultural moderno, e não uma descoberta de alguma ''essência'' humana que seria sexual.

Aos poucos, a modernidade nos levou a falar de nossa vida sexual, a confessá-la, contá-la e, finalmente, erigi-la em peça chave de nossa verdade mais íntima. Me diz como trepas, te direi quem és. A psicanálise foi um momento decisivo nesse processo. É possível que, como teria dito Foucault, esse novo pegajoso sexualismo fosse e seja, fundamentalmente, uma técnica do poder, ou, mais deleuzianamente, do micropoder (''Fala, que saberei como lidar contigo'').

De qualquer forma, o crepúsculo das categorias inventadas pelo mesmo poder que nos levou a falar tanto de nossa sexualidade sugere que talvez o sexo esteja perdendo seu lugar de exceção.
A orientação sexual categorizada segundo fantasias e práticas (e não segundo, por exemplo, o sexo dos parceiros) parece implicar uma relação mais pragmática com o sexo. Seminários sobre práticas sexuais, manuais para invenção de práticas novas, lojas cada vez menos sinistras e mais ''high tech'' de auxílios para a vida sexual e, enfim, até a educação sexual nas escolas não são sinais da boa saúde do sexo moderno como mestre pretensamente secreto e, de fato, tanto falado de nossa verdade íntima.

Ao contrário, o sexo _falado sim, mas pragmaticamente_ talvez não seja mais o interpretante de nossas vidas, mas só o campo de uma prática (prazerosa, se possível).

domingo, 26 de janeiro de 1997

Uma fantasia velha

Não vi "Crash", o novo filme de David Cronenberg. Aqui, nos Estados Unidos, ele ainda está lutando para uma classificação que lhe permita a distribuição em salas normais. Mas li o livro homônimo de J.G. Ballard _que de fato é um dos melhores escritores britânicos do pós-guerra, muito apreciado por Anthony Burgess (''Laranja Mecânica'')_, que está na origem do filme. E, naturalmente, percorri as páginas da Internet em que encontram-se fotografias do filme, entrevistas de Ballard e Cronenberg, mais um estranho ensaio que junta Baudelaire, Ballard e Baudrillard (deve ser por causa do ''B'' inicial). Para quem quiser ler, é só procurar, passando por Altavista: ''Ballard Crash''.

"Crash!", o livro (e parece que o filme, deste ponto de vista, é bastante fiel), me deixou com uma dupla insatisfação. A idéia, ou melhor, a fantasia que anima Ballard é ao mesmo tempo psicologicamente improvável e, lida hoje, velha, datada. O livro, aliás, é de 1973.

Por que psicologicamente improvável? A tia Adelina nem era propriamente uma tia. Ela estava naquela zona cinza na qual, em um vilarejo, parentes, amigos e conhecidos se misturam em uma espécie de extensa família. Morreu sem nunca casar e com reputação de virgem. "Coitada, Adelina, era tão religiosa... que até toalhas de mesa compridas usava, para não deixar aparecer as pernas das mesas".

Escutei esta frase, murmurada sem nenhuma intenção cômica, aos cinco anos, na tropa vociferante do enterro.

Aprendi assim que as mesas têm pernas. E concluí que as poltronas têm braços. Por isso mesmo, aliás, Adelina devia também pudicamente cobrir os braços e os encostos (as costas) das poltronas com guardanapos de renda. Descobri, enfim, que o assento era de fato o bumbum das poltronas e das cadeiras. Mas foi só uma intuição.

Muito mais tarde, sem mesmo me lembrar de Adelina, concebi o projeto de um romance que nunca escrevi: entrando em uma casa desconhecida e abandonada precipitadamente por seus habitantes, o narrador reconstruiria a presença de seus corpos e de seus gestos a partir das marcas por eles deixadas. A cena crucial era na verdade o exame da cama: o narrador poderia, examinando com atenção (e fantasia) a superfície da cama desfeita, descobrir detalhadas preferências sexuais dos habitantes desaparecidos.

Na verdade, vivemos em um mundo quase inteiramente modelado segundo as formas de nossos corpos. Além dos objetos cuja vocação é mesmo a de combinar diretamente com algum órgão nosso, como maçanetas, cabos, roupas, torneiras, penas, armas etc., todo o espaço é à medida de nossos corpos. É necessário e salutar, aliás, que a gente esqueça e acabe lidando naturalmente com os objetos cotidianos como se eles devessem suas proporções ao acaso. Como seria nossa experiência do cotidiano se a cada passo ou gesto fôssemos conscientes da pegada de outros corpos? Se cada gesto nos evocasse o encontro com outras carnes, inevitavelmente eróticas?
Seria no mínimo desconfortável ou mesmo insuportável. O que se verifica, por exemplo, cada vez que sentamos em uma poltrona ainda quente: o desconforto, quando não o nojo, é que nos afeta, afasta de nós qualquer especulação sexual. O mesmo homem que sonhará noites adentro com a redondeza de uma bunda, achará repugnante sentar num assento de cinema esquentado por uma misteriosa espectadora que o precedeu.

Em suma: o mundo dos objetos é moldado nos corpos, mas é indispensável esquecer esta propriedade. Quem se aventura a reconhecer a marca dos corpos nos objetos cotidianos e _por consequência_ a erotizá-la não consegue mais lidar nem com os objetos nem com os corpos. Acaba como tia Adelina, virgem e forçada a cobrir as pernas das mesas com toalhas despropositadamente grandes.

Freud já reparara, naturalmente, o fenômeno, afirmando que a inibição é efeito de erotização. Ou seja, quando a gente erotiza o cotidiano, acaba se inibindo em sua prática. Por exemplo: quem vê em cada letra "m" três perninhas, acaba com problemas de ortografia. A coisa vai mais longe, e é até de se perguntar se algumas impotências sexuais não são efeito justamente de uma erotização excessiva do próprio sexo. Tipo: "Estou tão excitado que não consigo".

Em "Crash!", J.G. Ballard descobriu que o carro também, como as mesas da tia Adelina, é moldado em nossos corpos, uma espécie de prótese global que se encaixa em nossas curvas, desde as mais óbvias até as mais indiscretas. Quando, em uma concessionária, experimentamos um carro novo, sentamos, pegamos a direção, verificamos que os comandos estejam não só ao alcance, mas _por assim dizer_ na proporção certa para nosso corpo. Procuramos, em suma, um encaixe corporal. Depois, evidentemente, esquecemos. Dirigir seria impossível se fosse uma aventura explicitamente erótica.

Ora, Ballard imagina que o acidente de carro seja um momento privilegiado, orgástico, no qual seria revelada ao acidentado a íntima relação entre seu corpo e o carro que ele molda e que o molda. No acidente, enfim, o corpo e o instrumento se encontram, se compenetram e de uma certa forma se fundem em um gozo novo, excepcional, uma espécie de estupro sublime, em que a complexidade do habitáculo casa finalmente com a do corpo do passageiro. E os corpos parecem por sua vez se revelar só no acidente, como se tia Adelina só acabasse sabendo de sua própria sexualidade o dia em que batesse na perna de uma mesa.

Os protagonistas do "Crash!" são prolongamentos de seus carros, ou vice-versa, pouco importa. E os carros, por sua vez, não são fetiches, mas elementos de uma máquina circulatória maior, feita de estradas que se cruzam e massas mecanizadas que se deslocam.

É um mundo fantasiado, em que intensidades de desejo erótico, sem afetos, correm a procura de um último e mortífero momento de gozo. A tentação é grande de evocar Deleuze/Guattari e Paul Virilio, e outras grandes ou pequenas referências. Mas a verdade é que o charme sinistro do livro reside sobretudo na implícita ameaça de um futuro em que teríamos abdicado nossa humanidade e gozaríamos em uma orgia maquínica e mortífera.

Talvez por isso mesmo o livro pareça velho. Não só porque o carro já não é mais a máquina destes anos (o computador seria melhor vindo para exercícios futurológicos). Não só porque Elizabeth Taylor (com quem Vaughan, o herói do livro, sonha fundir-se, acidentado) é hoje uma velha senhora. Não só porque os drive-ins fecharam, e o carro é cada vez menos um lugar de encontros eróticos. Parece velho sobretudo porque ficou velho qualquer discurso apocalíptico antitecnológico. Cansamos, ou pelo menos cansei, de ser ameaçado com a perda da humanidade cada vez que olho a televisão, acendo o computador, uso um microondas ou passo um fax.

Não sei bem por que aqui nos EUA parecem considerar o filme um pouco ousado. Ao contrário, seu efeito principal deveria ser politicamente correto, pois o que me resta de positivo da leitura do livro é sobretudo a idéia de que, apesar de cicatrizes e próteses, um corpo de acidentado pode continuar sendo desejado. O que é ótimo.

quinta-feira, 2 de novembro de 1995

Lápides contam o passado dos seres admiráveis

Como lembra Philippe Ariès ("Histoire des Attitudes Devant la Mort en Occident du Moyen Âge à Nos Jours, Paris Seuil, 1975), apenas dois ou três séculos atrás, no Ocidente, as sepulturas ainda faziam parte da vida cotidiana: na beira dos caminhos, ao lado ou no chão das igrejas, as lápides mortuárias não eram ameaçadoras.

Sua presença não prometia só um destino funesto. Era possível e importante lembrar da morte, porque o verdadeiro depositário da vida não era o indivíduo em sua vã existência, mas a comunidade -terrestre ou celeste que fosse.

As tumbas encontradas a cada passo afirmavam a continuidade da vida (da comunidade), mais do que ameaçavam com o desespero do fim (do indivíduo).

Ora, se hoje a morte é horror sem remédio, os cemitérios seriam prisões onde esperamos afastar e prender a morte. E o Dia dos Mortos seria uma espécie de exorcismo coletivo quando forçadamente lembramos -uma vez por ano- o que preferiríamos esquecer.

Sabemos que não é assim. A visita às tumbas de família não é só um sedativo da culpa. Podemos gostar de passar em um cemitério desconhecido, lendo nos epitáfios o mistério de vidas que nos precederam (a "Antologia de Spoon River, de E. L. Masters, é sussurrada por cada lápide). Acontece também que procuremos inspiração nas tumbas dos grandes.

Os cemitérios, nascidos para afastar de nós a morte, se tornaram lugares de homenagem, lembrança, ou mesmo -um pouco como as igrejas- de meditação. O aparente paradoxo pode se expressar no alternar do dia e da noite.

O cemitério da noite, quando é frequentado por outras coisas do que simplesmente os nossos terrores, se torna -como o Père-Lachaise em Paris- um lugar de escuros encontros onde o gozo se dá, à condição de nunca saber direito se atrás do zíper se esconde um sexo, uma faca ou um vírus.

Em suma, ele é o parque confinado dos horrores: o horror da morte e o horror de um impossível e último gozo. O cemitério de dia, ao contrário, é parte indispensável de nossas vidas. Pois, exatamente pela mesma razão pela qual afastamos de nós a presença física da morte, também não podemos abrir mão da lembrança dos mortos.

Acontece que, por sermos indivíduos (e portanto termos horror da morte), somos também sujeitos com pouca tradição, sempre incertos de quem somos, eternamente necessitados de fazer e refazer, pensar e repensar nossa história.

E por isso precisamos dos mortos que nós mesmos afastamos. Homens e mulheres famosos, inspiradores ou não, parentes e amigos próximos ou menos. E mesmo a massa dos mortos que nunca encontramos em vida nos habitam. Mantemos eles dentro de nós e com eles engajamos uma espécie de diálogo intrapsíquico.
E, quando visitamos -de dia, naturalmente- suas tumbas, paramos para dialogar com eles. Frequentemente, aliás, em voz semi-alta, dando aos cemitérios no Dia dos Mortos a aparência de enfermarias de alucinados.
Ainda bem, pois o medo da morte não nos impede de inventar, com a ajuda dos mortos, nosso passado e nosso futuro.

domingo, 1 de outubro de 1995

A Vida Como Ela Está

Entre jocosas e frementes passeatas mascaradas nas noites de Halloween e natais milagrosamente nevados e tilintantes de ``Jingle Bells". Em grandes casas de madeira onde cada um tem seu quarto com papel floreado e, ao lado da cama de edredom, foto, taco e luva de beisebol com capacete de futebol americano. De jeans que não temem nem sujeira nem rasgões.

Fartas de coca-cola e ``chewing gum", milkshakes e monstruosas bananas-splits, empoleiradas nos bancos de um "diner de fórmica e aço inoxidável -o ``jukebox" cuspindo rock e folk-, moldadas por um desenho de Norman Rockwell: as crianças americanas eram o sonho do mundo inteiro. Pedalando para distribuir jornais antes da escola, confirmavam assim a promessa de um futuro tranquilo e próspero e outorgavam aos americanos a convicção de fazer a inveja de todos.

Os adolescentes já eram mais animados. Aos 16 anos -sortudos!- dirigiam pick-ups envenenadas. Circulavam na noite, de drive-in em drive-in, procurando uma loja de alcoólicos complacente. Podiam preocupar os pais europeus ou sul-americanos, mas como deviam se divertir... Ninguém, aliás, queria ser adolescente, só "teen-ager".

Certo, a realidade sempre foi outra. A "selva de asfalto" das cidades não podia se parecer com o estereótipo da utopia suburbana. A pobreza, as diferenças raciais sempre recortaram realidades diferentes. Mas, sobretudo nos últimos 15 anos, aos poucos, a infância e a adolescência americanas vieram perdendo seu brilho. Ao drama, que é normalmente para uma sociedade o extravio de seus jovens (o que será de nós?), se acrescenta aqui a perda de uma ilusão que contava no otimismo americano.

Em julho deste ano, enfim, saiu "Kids", obra-prima cinematográfica de Larry Clark, um fotógrafo de 52 anos, já conhecido por seus livros dedicados aos adolescentes marginalizados e às margens mais escabrosas da vida de adolescente ("Tulsa", de 1971, "Teenage Lust", de 1983 e "1992"). Clark passou um bom tempo em Washington Square, em New York, com os adolescentes skatistas e escreveu o roteiro de "Kids" com um jovem de 22 anos, Harmony Korine.

Na cena final de "Kids", Casper -um dos personagens principais- acorda no meio dos restos sinistros de uma festa -garrafas vazias, vômito, baganas e corpos adormecidos pelo álcool, a droga e um sexo violento e sem graça-, para exclamar, olhando direto para a câmara: "Jesus Cristo, mas o que aconteceu?"
É bem o que se perguntaram os espectadores americanos: o que aconteceu com os nossos adolescentes? O sonho parece que virou pesadelo.

"Kids" é um dia de verão na vida de um pequeno bando de adolescentes nova-iorquinos. Não são nenhuma gangue de marginais, só jovens de férias. Eles não constituem nenhum exagero, participam da banalidade cotidiana. Erram pela cidade, um deles seduz garotinhas virgens dando cantadas banais, mas eficientes, roubam uma cerveja e dois pêssegos, se drogam, nadam em uma piscina fechada, batem severamente, em grupo, num passeante que reage a suas provocações, fumam, bebem e alimentam uma fala que nunca, no dia inteiro, passa de uma litania de palavrões, mais feitos para confirmar a adesão de todos a um código comum do que para se expressar.

Uma delas acaba sabendo neste dia o resultado positivo de um teste HIV e procura o garoto que a contaminou. É este o fio narrativo.

O filme, qualificado NC 17 -proibido a menores de 17 anos, o que é comercialmente danoso para uma produção-, encontrou apesar disto um público numeroso, fascinado e perplexo. A imprensa, desde o ``The New York Times" até ``The New Yorker", passando por ``Newsweek", comentou o filme repetidamente. A dificuldade era entender por onde se dava o escândalo.

Alguns acusaram a ausência de comentário moral e a fascinação de Clark pelo tema e pela história. Mas outros notaram que justamente o consternante vazio destas vidas e o horizonte de morte apontado pela Aids constituíam um juízo moral.

Outros ainda acusaram o caráter descritivo, fotográfico do filme, seu estilo "cinéma vérité", não só pela falta de crítica da realidade filmada, mas por mostrar esta adolescência não como um momento de transição para o dia da volta ao canil, não como uma promessa, mas como ``a vida como ela é" e presumivelmente vai continuar sendo. Os clássicos filmes americanos sobre adolescência, desde "Juventude Transviada" (de Nicholas Ray, 1955), sempre insistiram sobre o caráter inadaptado do adolescente, deixando-lhe a escolha: morrer ou se tornar adulto. No filme de Clark, os adolescentes morrerão eventualmente. Mas quanto a "se tornar adultos" nem se fala. Talvez, como veremos, porque eles já sejam.

Ninguém contestou o quadro que o filme oferece dos adolescentes de classe média baixa de Nova York.

Valeu a pena perguntar para dezenas de espectadores americanos suas impressões: sempre uma sensação de evidência -"é isso mesmo!"- acompanhava um mal-estar profundo, quase um certo nojo, a irritação, o desconforto, a preocupação, a indignação. As reações eram mais vivas nas pessoas de 40 anos para cima, com filhos adolescentes. Mas, à pergunta sobre o porquê do mal-estar, respondia uma perplexidade evidente.

Os adolescentes de ``Kids", os kids -chamemos eles assim-, bebem e se drogam. E daí? Até o presidente Clinton fumou marijuana (embora afirme não ter tragado).

Eles fumam, e a gente não fumava aos 15 ou 14 anos? E quem não roubou em uma loja nesta idade? Quem não sonhou transar, ou melhor, traçar meninas na nossa adolescência? Dão uma surra coletiva em um passeante. E quem não fez grupinho de defesa e ataque com seus amigos, quem não se deliciou, sonhando com a coesão agressiva e protetora das gangues de motoqueiros?

Então, o que os kids têm de tão diferente de nós? Por que o filme nos apavora ou indigna?

Uma pergunta surda acompanha o espectador de "Kids": cadê os adultos? Sua presença no filme é irrisória: o passeante surrado, um mendigo aleijado, loucos sem casa perdidos na cidade, assistentes sanitárias anônimas, uma mãe fumando em cima de seu bebê, vidrada na televisão, um sapato paterno onde roubar dinheiro... A fala dos adultos é ausente.

A constatação, em um primeiro momento, conforta o espectador em tudo que já acredita saber. Nossos adolescentes se perderam porque não cuidamos deles como deveríamos. Entona-se a música do declínio da civilização americana. A culpa é um grande consolo: achamos os responsáveis, e somos nós.

É esta a vantagem das explicações sociológicas: a família se desagregou, nos divorciamos demais. A mulher, que entrou maciçamente no mercado do trabalho durante a guerra, gostou e continuou nele, preferindo sua afirmação social aos cuidados maternos. A corrida social se fez mais dura e os pais não têm mais tempo. Uma economia menos triunfante e mais seletiva (porque mais ávida) expõe os jovens americanos a novas dúvidas sobre seu futuro. E vai andando. Mas aqui dois problemas.

Primeiro: a relação é precária entre estas lamentadas mudanças sociais das quais seríamos responsáveis e o aumento de violência, prisões e outros extravios adolescentes. Como mostra o artigo de Gilberto Dimenstein neste Mais!, a sociedade americana não é nenhum clube de auto-ajuda. Mas, embora os números sejam impressionantes, eles não acompanham diretamente as transformações sociais lamentadas.
Segundo: o que acompanha, sim, estas transformações é nossa crescente preocupação, nossa culpa. Com a consequência que, quanto menos nos ocupamos dos kids, tanto mais nos sentimos culpados e queremos, exigimos, que eles sejam de novo felizes.

Não há dúvida que os kids escutam direito esta nossa exigência. Usam dela, aliás, para pedir indulgência, desculpa, dinheiro, liberdade. Como recusaríamos?

A dúvida é outra: será que a felicidade que eles tentam se dar (para acalmar nossa culpa) é bem aquela que gostaríamos?

Claro que não, parecem responder em massa os espectadores de "Kids". Droga, cerveja e meninas não fazem a felicidade que queremos. Observa um amigo: é uma felicidade deserta, sem cultura ou seja, com aspirações, pensamentos, projetos, complexidade. Certo, mas, se o filme nos perturba, é bem porque a vida dos kids realiza ao pé da letra, além de nossas civilizadas pretensões, um ideal de massa que é o nosso.

Perguntando-me para onde foram os adultos do filme, encontrei assim uma resposta. Me ajudou constatar que uma das críticas mais constantes do trabalho de Clark (tanto do filme como de seu trabalho anterior) acusa sua fascinação com a adolescência, como se dela nunca o autor tivesse saído apesar de seus 52 anos.

Não é difícil constatar que os fascinados pelos kids do filme somos nós. Se os adultos parecem ausentes do filme, é por estarem demasiado presentes, por serem -como Larry Clark- aqueles que sonham com esta adolescência extraviada. Os kids nos fascinam e perturbam por revelar a face crua e miserável de nosso próprio desejo.

A adolescência é sempre um momento de interrogação: qualquer kid se pergunta nesta altura o que querem os pais. Frequentemente estes acham que o kid só quer fazer o contrário do que eles desejam. Mas nunca é assim. Quer queira quer não, o kid interpreta, lê atrás das linhas, procura encontrar o desejo dos pais atrás do que eles declaram. Por exemplo, o que importa na separação dos pais e mães não é tanto a subsequente dificuldade de cuidar de crianças para mães e pais solteiros, nem as complicações intrínsecas de maternidades e paternidades adquiridas. Importa que os pais aparecem como privilegiando suas paixões amorosas e sexuais sobre a família. Que seu discurso explícito seja de respeito aos valores do lar pouco vale, comparado com a constatação de que -para eles, de fato- mais valeu procurar e seguir procurando parcerias ou encontros mais alegres. Como estranhar então que os kids vivam sexos e amores mais leves, se é esta a escolha dos pais?

Os kids lêem o desejo parental além do que os pais imaginam. E hoje, nesta leitura, eles dispõem como nunca de indícios explícitos. A simples adesão de seus pais aos valores sociais de massa destina os kids ao ideal de vida que os orienta (ou desorienta) no filme de Larry Clark.

Nos anos 60, um famoso filme de ficção científica, "O Planeta Proibido", nos apavorava com um monstro que era a pura emanação energética do desejo inconsciente de um cientista. No fim, na frente de uma porta de aço já quase fundida pela criatura, o próprio cientista, ajoelhado, gritava: "Pára, não é isso que quero", mas a energia animada por ele mesmo continuava sua obra, insensível a suas declarações e fiel ao desejo inconsciente que a animava. Os kids funcionam do mesmo jeito: insensíveis à nossa indignação e às nossas críticas explícitas, continuam certos de seguir de fato nosso desejo e realizar nossos sonhos.

É este então, aquele de "Kids", o futuro da adolescência aqui nos Estados Unidos? Seria, se a cultura de massa triunfasse, acompanhada, como sempre, pela negação explícita de seus próprios efeitos.

Nestes dias, Calvin Klein, por exemplo, teve que retirar uma campanha publicitária inteira, mórbida pelo explícito apelo ao desejo dos corpos adolescentes dos modelos. Triste episódio: tanto -do lado dos censores- pela negação obstinada da sexualidade adolescente quanto -na campanha- pelos estereótipos da sexualidade que os adolescentes eram chamados a encarnar.

Mas também nestes dias abriu ao público, na Houk Friedman Gallery de Nova York (851, Madison Ave.), uma exposição das mais recentes fotografias de Sally Mann. Emmett, Jessie e Virgínia, os modelos (e filhos) de Sally Mann, posam como caricaturas de nossos desejos: em suas atitudes, a imitação forçada de nossos sonhos é revelada (mimam, por exemplo, alguns quadros famosos de nossa galeria erótica). Eles, sobretudo, lançam para a câmera um olhar de desafio, que afirma, como no retrato dos três juntos, a vontade de vir a ser outra coisa do que a pálida e tristonha realização de nossos sonhos. Pelo olhar de Sally Mann, há esperança. Como há esperança, se a cultura americana sabe produzir "Kids" e, com Casper, se interrogar: ``O que aconteceu?".