domingo, 3 de fevereiro de 2013

"Amor" letal


Algumas reflexões depois de assistir a "Amor", de Michael Haneke. 

Adolescente, eu já achava bizarra a certeza com a qual alguns amigos se expressavam: "Se eu ficar 'assim'", diziam, "eu me mato na hora. E, por favor, se eu não me matar, seja generoso comigo, mate-me você".

O "assim" que justificava tamanha convicção dependia de relatos, leituras e filmes --ia desde uma impotência sexual talvez passageira (mas que parecia acabar com o charme da vida) até a condição terrificante do protagonista de "Johnny Vai à Guerra", livro e filme de Dalton Trumbo: o soldado Joe, sem braços, sem pernas, sem rosto, parece ser apenas uma carne disforme, enquanto a mente dele continua funcionando.

Eu não concordava com a certeza suicida de meus amigos; imaginava que, antes de decidir me matar, seria bom experimentar minha nova condição durante um tempo. Afinal, em geral, as imperfeições nunca impediram os humanos de viver --ao contrário.

Na época de minha adolescência, não dispúnhamos do exemplo do físico Stephen Hawking ou de Christy Brown, o protagonista de "Meu Pé Esquerdo", de Jim Sheridan. Em compensação, um amigo de meus pais, severamente inválido, disse-me, uma vez: "Você, por exemplo, não pode voar como as aves e é desafinado como um sino quebrado; ou seja, tem coisas que não pode fazer, e você vai procurar o valor de sua vida em outras coisas, que você pode fazer. Comigo não é diferente".

Entendi. Mas me sobrou um certo medo (justamente, pela leitura precoce de "Johnny Vai à Guerra"): poderia acontecer que, de imediato, por causa de um acidente cerebral ou, sei lá, de um incidente de carro, eu me encontrasse numa condição na qual eu não quisesse viver de jeito nenhum e na qual eu não tivesse sequer a capacidade material e mental de pôr fim à minha vida ou de pedir para um próximo que ele me ajudasse a morrer.

Anos atrás, conheci alguém realmente preocupado (muito mais do que eu) com essa eventualidade. Ele envelheceu desesperado, oscilando entre o medo de se matar cedo demais, quando ainda poderia viver um tempo que valesse a pena, e o perigo de esperar além da conta e decidir sair de cena quando ele não tivesse mais condição de se matar ou de pedir a alguém que o matasse.

O mesmo alguém se consolava pensando assim: no caso extremo em que eu não pudesse mais pedir, quem me ama (ou melhor, quem amava aquela pessoa que eu era antes) saberá decidir que eu, embora impedido de me manifestar por minha invalidez, não estou querendo mais viver. Nessa situação, para quem me ama (ou amava, que seja), me ajudar a morrer seria um gesto de amor.

Pois é. Não é tão fácil assim nem tão claro. Na sua coluna de sexta passada, Barbara Gancia escreveu, com razão, que "o fardo de cuidar dos idosos tornou-se um dos maiores dramas da atualidade". Os avanços da medicina fazem que, hoje, sejam cada vez mais numerosos os que cuidam de próximos que sobrevivem transformados pela idade, pela invalidez ou pela demência. E sobrevivem, muitas vezes, tanto irreconhecíveis quanto incapazes de reconhecer os que cuidam deles. Perguntas básicas.

1) Será que o outro que nós amávamos, se ele pudesse escolher, toparia viver como ele está agora?

2) Será que o ser do qual cuidamos hoje é o mesmo que nós amávamos antes do acidente, da invalidez ou da demência? Se ele não for o mesmo, será que esse "novo" ser não tem seus próprios critérios do que é uma vida que valha a pena de ser vivida --critérios diferentes dos do nosso amado de antes?

3) Difícil continuar amando alguém que não nos reconhece mais. Mas será que por isso o deixaríamos morrer --por ele não ser mais aquele ou aquela que amávamos?

4) Por que sempre chega um dia em que ninguém aguenta mais cuidar? É porque o custo (em todos os sentidos) é excessivo e queremos recuperar nossas vidas? Ou é porque é quase impossível fazer o luto de um amado que já se foi, mas continua de corpo presente?

Acontece que alguém se suicide depois de ter matado um amado inválido e demente, de quem não consegue mais cuidar. É mais que uma maneira de evitar a culpa: renunciando a viver sem você, confirmo que foi por amor que matei você --ou melhor, que matei o desconhecido que tinha tomado seu lugar.

Pois é, foi mesmo por amor que matei você? Ou por vingança, por você ter me deixado sozinho?

Seja como for, fica confirmado, embora num sentido inabitual, que o amor resiste dificilmente ao tempo.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Atores famosos no palco

Passei um mês em Nova York --escrevendo, lendo e frequentando teatros, cinemas e galerias. Aproveitei para ver ao vivo alguns atores de cinema ou de televisão. Por que eu não estaria a fim de "conhecer os corpos" de atores que dão vida a ficções que me tocam?

 No teatro, nunca desdenho uma primeira fileira, de onde é fácil ouvir a respiração e enxergar as gotas de suor e de saliva que constituem, para mim, o charme da presença material, física do ator. Vi Jessica Chastain (a imperdível protagonista de "A Hora Mais Escura", de Kathryn Bigelow, que estreará em 15 de fevereiro), David Strathairn e Dan Stevens (o Matthew Crawley de "Downton Abbey" --agora no GNT), todos em "The Heiress" ("A Herdeira"), de R. e A. Goetz, no Walter Kerr Theatre. E vi Scarlett Johansson em "Cat on a Hot Tin Roof" ("Gata em Teto de Zinco Quente"), de Tennessee Williams, no Richard Rodgers Theatre.

 Ao entrarem no palco, os atores eram recebidos por aplausos que sustavam a ação: afinal, o público estava lá para vê-los. Mas, fora essas breves suspensões, todos eles seguiam o que é hoje um padrão de atuação: uma sólida quarta parede. Explico. No teatro, o palco é delimitado por três paredes, a quarta sendo a que está faltando, de modo que a plateia possa enxergar a ação. Os atores podem aproveitar dessa abertura para interagir com o público (lembrando assim a todos que se trata de uma peça) ou, no extremo oposto, agir como se eles estivessem sozinhos, entre quatro paredes.

Hoje, em regra, o ator (ainda mais se for de cinema) tende a atuar assim, entre quatro paredes, como se não houvesse câmera nem plateia. A ponto que uma cumplicidade com o público parece intencional --um jeito de transgredir o padrão dominante, de nos fazer rir ou de nos distanciar da história representada.

A experiência foi diferente quando fui ver Al Pacino em "Glengarry Glen Ross", de David Mamet, no Schoenfeld Theatre. Aqui, a atuação de Al Pacino era um grande aparte endereçado ao público. Mesmo nos diálogos com os outros atores, ele olhava e falava para nós.

Não vou me queixar de que, num diálogo comigo (e 800 outros, claro), ele usasse as manhas de Michael Corleone, Frank ("Perfume de Mulher") ou Lefty ("Donnie Brasco"). Afinal, eu estava lá para isso, não é?
No Brasil, também, já vi atores famosos do cinema e da televisão atuando no teatro. Nunca vi um deles dar uma de Al Pacino e quebrar a quarta parede para oferecer ao público um banho de presença estrelada.
Em compensação, fico quase sempre com a impressão de que, no Brasil, os atores mantêm uma conexão com a plateia que abre uma fresta na famosa quarta parede.

É óbvio que não estou me referindo a peças nas quais, de maneira intencional, os atores interagem com a plateia como se não houvesse quarta parede. É óbvio também que não estou falando de rupturas escrachadas da quarta parede, como, sei lá, apartes ou piscadinhas engraçadas para o público.

Ao contrário, gostaria de descrever (mas não consigo) uma impressão sutil de que os atores, aqui no Brasil, atuam PARA mim. Ou seja, que a presença da plateia pesa no que acontece no palco.

Se essa minha impressão capta alguma realidade, qual seria uma origem possível do fenômeno? É difícil superestimar a importância da telenovela na cultura nacional (e, por consequência, na formação dos atores). Ora, há uma especificidade da novela que dota a quarta parede de uma leve, mas constante transparência. Qual?

A novela é escrita enquanto está sendo gravada e vai ao ar --ela é um pouco herdeira da "commedia dell'arte", uma gloriosa forma de teatro em que os atores improvisavam a partir de uma sinopse.

A primeira consequência disso é que, na novela, como em nenhum outro gênero, a relevância de um personagem e seu destino na história podem depender da recepção que o público lhe reserva.

O ator sabe que, se seu personagem conquistar o público (pelo bem ou pelo mal), ele ganhará relevância nos capítulos seguintes (um personagem pode ser secundário na sinopse e se tornar central ao longo da novela). Ou seja, o caráter inacabado do texto impõe ao ator uma tarefa que corrói a opacidade da quarta parede: a tarefa de ser especialmente apreciado (gostado ou odiado, tanto faz).

Em suma, talvez a telenovela, por sua relevância e por essa sua caraterística, produza, entre nós, atores particularmente atentos ao retorno da plateia. Não sei se é um bem ou um mal.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Loucos e adolescentes suicidas


Nos EUA, desde o massacre na escola primária Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, o debate não para: quem mata, as armas ou os homens? 

Obviamente, quem mata são homens com armas --e é mais fácil controlar as armas do que controlar os homens, os quais são bastante imprevisíveis.

Para a NRA (Associação Nacional dos Rifles), ao contrário, as armas não seriam problema à condição de que elas não caíssem nas mãos de malucos. Como evitar que isso aconteça? O presidente da associação propõe a criação de uma lista nacional das pessoas que, em algum momento da vida, precisaram de atendimento em saúde mental. Os que estivessem nessa lista seriam barrados na hora de adquirir uma arma.

Não se sabe se a lista incluiria só os que recorreram a psiquiatras e a medicações ou também os que recorreram a um psicoterapeuta (sem contar os que pediram ajuda a padres, pastores, rabinos e outros "sábios").

Mesmo supondo que se trate só dos pacientes medicados, imagine as consequências. Dez anos atrás, você ficou triste porque perdeu o emprego, e um médico (talvez desavisado) quis ajudar e lhe prescreveu antidepressivos (que, aliás, provavelmente não serviram para nada). Pois bem, desde então, você está na tal lista nacional (a qual, não se iluda, não será consultada só quando você pedir para adquirir uma arma).

Anos atrás, psicoterapeuta nos EUA, eu atendia pacientes que tinham direito ao reembolso da terapia pelo seu seguro de saúde, mas que preferiam pagar meus honorários de seu bolso: eles não queriam que ficasse registrado em lugar algum que eles tinham precisado de assistência em saúde mental --achavam que essa "fraqueza" mancharia seu currículo. Essa preocupação me parecia descabida, mas talvez eles tivessem razão.

Recorrer à psicoterapia e à medicação psiquiátrica se tornou banal. Isso não é só consequência de diagnósticos e prescrições apressados, mas também de uma mudança na ambição da psiquiatria e da psicologia clínica, que querem, como a medicina, cuidar da gente, ou seja, exercer seu poder sobre nossas vidas.

Em vários casos, a nova versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5), da Associação Americana de Psiquiatria, prevista para este ano, baixa o limiar do que pertence à patologia, designando como transtornos --passíveis de cuidado médico e psicológico-- afetos, pensamentos e humores que, até hoje, eram considerados parte da experiência humana normal.

Em outras palavras, somos cada vez mais considerados como "doentes" (e convidados a procurar tratamento) por uma psicologia e uma psiquiatria que não param de definir nossa "normalidade" --com as melhores intenções.

Isso é bom ou ruim? Nem sempre é fácil responder. Eis um exemplo, complicado.
Acabo de ler uma pesquisa sobre suicídio na adolescência, de Matt Nock (professor de psicologia em Harvard) e outros, publicada em 9 de janeiro no "JAMA Psychiatry", o Jornal da Associação Médica Americana on-line (íntegra:http://migre.me/cNp2O ).

Numa amostra de mais de 6.000 adolescentes de 13 a 18 anos, os pesquisadores acharam que 12% pensaram em suicídio de maneira consistente e continuada --as meninas mais do que os meninos: entre elas, 6% fizeram planos de suicídio e 5% tentaram se matar. Esses números não destoam de minha experiência, tanto de clínico como de ex-adolescente, mas, claro, preocupam.

No entanto, a repercussão do estudo é devida a outro dado: como o "New York Times" destacou, segundo a pesquisa, mais da metade dos adolescentes suicidários tinham recebido algum tipo de tratamento antes de planejar ou mesmo tentar o suicídio.
Receávamos que nossos adolescentes não tivessem acesso ao tratamento do qual precisam, mas o problema, aparentemente, é que os tratamentos não estariam funcionando direito. Claro, é preciso aperfeiçoá-los, estender seu alcance etc. Mas será que nossos tratamentos não funcionam ou será que estamos esperando deles o impossível?
Mal precisa dizer que devemos evitar que os adolescentes se suicidem. Por outro lado, é raríssimo que alguém atravesse a adolescência sem pensar, de vez em quando, que o futuro poderia não valer a pena.
Seria fácil, mais uma vez, designar esse pensamento normal como transtorno e, para curar alguns adolescentes, pretender curar a adolescência, tentando tirar dela aquela dor de viver que, bem ou mal, a define.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Então, era só isso?


 Mal conseguimos ver o tempo passar sem pensar que a nossa vida poderia ou deveria ter sido diferente 

 MICHAEL APTED é um diretor de cinema inglês, premiado e popular (participou das "franquias" James Bond e Nárnia). Em 1964, aos 23 anos, ele fez um filme para a televisão inglesa, chamado "7 Up" (de sete para cima, com um trocadilho com o nome de um refrigerante), no qual entrevistou 14 crianças de sete anos, de origem social variada, perguntando quais eram seus sonhos, planos e desejos. Ele prometeu que voltaria a entrevistar as crianças a cada sete anos.

 Apted manteve sua promessa. Entrevistou o mesmo grupo aos 14 anos, aos 21, aos 28 etc. A cada filme, os entrevistados comentavam suas repostas anteriores, ou seja, mediam as mudanças em sua vida.

 Na semana passada, estreou, em Nova York, "56 Up": as crianças de 1964 (todas vivas) têm hoje 56 anos. Para ter uma ideia do conjunto e do último documentário, veja trechos no site da CBS: http://migre.me/cHQ6k.

 A intenção inicial de Apted era documentar, ao longo de décadas, as consequências das diferenças econômicas e de classe. De fato, a mobilidade social existiu, mas não foi grande. Os mais ricos, que estudavam nas melhores escolas, foram para as melhores universidades e, hoje, estão, como se diz, bem de vida. Os mais pobres (alguns vinham de uma espécie de asilo para crianças carentes, outros, do East End de Londres) tiveram uma vida mais dura. Em suma, tudo tocante e mais ou menos previsível, salvo a sensação com a qual fiquei ao sair do único cinema de Manhattan em que o filme está passando, o IFC Center, na Sexta Avenida, na altura de 3rd Street.

 Quase em frente ao IFC, do outro lado da avenida, está o Blue Note, que, desde os anos 1980, é um templo do jazz nova-iorquino. Deixando o cinema, deparei-me com o letreiro do clube: a "blue note" é aquela nota que é cantada ou tocada meio tom abaixo do que seria esperado e confere, portanto, à música e às letras uma dimensão de tristeza quase existencial (o "blues"). Por isso, alguns dizem que a "blue note" tem a ver com a vida nas plantações, sua dureza e a nostalgia de outro destino.

 O trecho da Sexta Avenida de ambos os lados do cinema IFC fica animado até muito tarde: há dois sex shops e cinco ou seis estúdios de tatuagem e piercings. Para quem passar por Nova York e quiser se aventurar por lá: nenhuma preocupação, não há perigo de ser assaltado.

 Mas há outros perigos, sobretudo se você já tiver esbarrado no letreiro do "Blue Note", depois de assistir ao documentário de Michael Apted. No meu caso, aconteceu o seguinte: fiquei parado, na calçada, intensamente triste, sem saber por quê. As únicas palavras que vinham à minha cabeça eram: "Então, era isso?".

 Cuidado: nenhum dos entrevistados de Apted, nem na infância nem na juventude, expressou desejos extravagantes. A maioria, de um jeito ou de outro, teve a chance de tentar realizar seus sonhos. Claro, alguns escondem suas dificuldades (de nós e de si mesmos), mas, no conjunto, a vida não foi propriamente cruel com nenhum dos 14. Quase todos tiveram amores, filhos, alguma realização; um construiu uma bonita fazendola, outro comprou uma casa de férias na Espanha e outro, que fracassou na vida, foi eleito representante de sua comunidade. Então, qual é a razão da "blue note" que ressoou em mim?

 Talvez seja a sensação de que a vida vai (aos poucos, de sete em sete anos) e que poderia ter sido outra. Mas será que poderia? E outra como?

 Os estúdios de tatuagem e os sex shops da Sexta Avenida parecem sugerir que há vidas que, à diferença da nossa e da dos entrevistados de Apted, queimam rápido, sem se resguardar; mas basta entrar nas lojas para descobrir que nada aí dentro é "extremo" -o ideal de uma vida intensa, como um único grande e curto fogo de artifício, mal tem existência própria, mas é apenas o efeito da nossa nostalgia de "outra coisa".

 Só há uma vida: a que estamos vivendo. É óbvio. Mas por que mal conseguimos viver sem imaginar que ela possa ou deva ser "outra"?

 É uma aflição moderna, pós-romântica. Imagine que Emma Bovary e Anna Karenina tenham se juntado, desistido de complicar sua vida com amantes e sonhos, e transferido todas suas aspirações para seus filhos, ou seja, para nós. Rebentos dessas duas maravilhosas mulheres, como poderíamos achar que o que vivemos é suficiente? Como poderíamos ver o fim da vida se aproximando sem resmungar: "Então, era só isso?".

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Experiência para 2013


A vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las seria esconder nossa maior riqueza

Vinte anos atrás, fui ao casamento de uma amiga em Saratoga Springs, no norte do Estado de Nova York. Era o fim do inverno; a cidade ainda não recebera a turma das águas termais, que chega na primavera, e ainda menos a turma das corridas de cavalos, que acontecem no verão.

Na noite antes da festa, passeando pela rua principal (que, se não me engano, chama-se Broadway), entrei numa loja para fugir do vento. Num canto, estavam os restos dos restos das liquidações de inverno, descontados até não poder mais: as camisas custavam US$ 5 (R$ 10, mais ou menos). Adquiri duas camisas idênticas de sarja pesada, de um cinza escuro, quase preto. Eram as últimas duas no meu tamanho.

Desde então, com o uso, a sarja se tornou mais macia e a cor desbotou um pouco. Por sorte minha e das camisas, isso aconteceu ao longo de uma época que me parecia valorizar, digamos assim, as marcas da experiência. É dessa forma que sempre entendi a moda do brim desbotado, das bainhas desfeitas e desfiadas ou das calças jeans furadas e rasgadas: a vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las (por exemplo, atrás de roupas novas) significaria esconder a maior riqueza que acumulamos, a dos percalços de nossa existência -que eles tenham sido bons ou ruins, tanto faz.

Um dia, 8 anos atrás, a manga de uma dessas camisas brigou com a maçaneta de uma porta, e o tecido foi rasgado, na forma de um sete -de cinco centímetros por oito.
Mandei consertar, sem dissimular o remendo. Afinal, o mundo me parecia maduro para isso: tanto eu quanto minha camisa (que se tornou a preferida das duas) podíamos mostrar sem vergonha as marcas dos anos e das batalhas.

Durante muito tempo, carreguei meu remendo na manga como o distintivo de uma honrada patente militar. Ou como uma declaração à la Neruda, feita por mim e por minha camisa: "confesso que eu vivi".
Como disse, minha confiança no espírito dos tempos era um pouco ingênua, e isso foi revelado nos últimos dias, quando, de repente, um menino de dez anos apontou o dedo para a manga de minha camisa e estranhou: "Mas este é um rasgo?".

Pensei que ele estivesse censurando o que talvez lhe aparecesse como desleixo: por que eu não compraria uma camisa nova e pararia de impor ao mundo a triste visão de um remendo? Mas logo percebi que ele estava usando uma calça jeans rasgada com afinco, de modo que era suficiente ele dobrar levemente as pernas para que seus joelhos estivessem ao ar livre.

Agora, a própria existência de calças rasgadas e desbotadas para crianças invalida meu entendimento de que os nossos tempos valorizariam a experiência. Pois, mesmo vivendo intensamente, uma criança não teria tempo para maltratar sua calça a ponto de lhe imprimir um "look" rasgado radical.

Conclusão: para o menino, meu rasgo e meu remendo eram ruins porque eram verdadeiros. Enquanto os rasgos da calça jeans dele eram bons porque eram de mentira. Ou seja, o que ele aprendera a valorizar não era a experiência real (pressuposto de eventuais acidentes com suas calças), mas os rasgos falsos, ou seja, a pura aparência da experiência.

Entendo que adolescentes e pré-adolescentes tentem aparentar "quilometragem". Alguns, aliás, fazem "besteiras" para acumular logo experiências que lhes permitam se comparar aos adultos. Outros (hoje mais numerosos, talvez?) fazem menos besteiras, porque escolhem um atalho (que os pais, em geral, adoram propor): eles descobrem que arriscar-se a viver é mais difícil e mais cansativo do que acumular e exibir as falsas aparências da experiência. Para eles, os rasgos falsos são propriamente melhores do que os verdadeiros. E brincar é sempre melhor do que viver.

Escrevo esta coluna no dia 31. Estou perto de Times Square. Ao longo da tarde, periodicamente, ouço uma "hola" das pessoas que já esperam para o fim do ano. A "hola" corresponde aos momentos em que as redes de televisão ligam as câmeras. Faz frio e ficar 12 ou 14 horas em Times Square é chato. À meia-noite, você dará um abraço e um beijo nos amigos que estão com você, mas isso você poderia ter feito em casa ou numa festa. A razão de estar em Times Square não é sua experiência, é a aparência de alegria que você talvez possa mostrar ao mundo, na televisão.

Para todos, os votos de um 2013 com rasgos e remendos reais, ou seja, de uma vida que não precise ser confundida com um reality show para convencer aos outros (e à gente) de que ela vale a pena.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Mundo Não Acabou


Depois do fim do mundo, a gente se encarará sem mediação, com uma mão pronta em cima do coldre 

PODE SER que o mundo acabe entre hoje (segunda, dia em que escrevo) e quinta, 27, dia em que seria publicada esta coluna. Em tese, eu não devo me preocupar: meu título não será desmentido -pois, se o mundo acabar, não haverá mais ninguém para verificar que eu me enganei.

 Tudo isso, em termos, pois o fim do mundo esperado (mais ou menos ansiosamente) por alguns (ou por muitos) não é o sumiço definitivo e completo da espécie. Ao contrário: em geral, quem fantasia com o fim do mundo se vê como um dos sobreviventes e, imaginando as dificuldades no mundo destruído, aparelha-se para isso. Na cultura dos EUA, os "survivalists" são também "preppers": ou seja, quem planeja sobreviver se prepara.

A catástrofe iminente pode ser mais uma "merecida" vingança divina contra Sodoma e Gomorra, a realização de uma antiga profecia, a consequência de uma guerra (nuclear, química ou biológica), o efeito do aquecimento global ou, enfim (última moda), o resultado de uma crise financeira que levaria todos à ruina e à fome.

 A preparação dos sobreviventes pode incluir ou não o deslocamento para lugares mais seguros (abrigos debaixo da terra, picos de montanhas que, por alguma razão, serão poupados, lugares "místicos" com proteção divina, plataformas de encontro com extraterrestres etc.), mas dificilmente dispensa a acumulação de bens básicos de subsistência (alimentos, água, remédios, combustíveis, geradores, baterias) e (pelo seu bem, não se esqueça disso) de armas de todo tipo (caça e defesa) com uma quantidade descomunal de munições -sem contar coletes a prova de balas e explosivos. Imaginemos que você esteja a fim de perguntar "armas para o quê?".

Afinal, você diria, talvez a gente precise de armas de caça, pois o supermercado da esquina estará fechado. Mas por que as armas para defesa? Se houver mesmo uma catástrofe, ela não poderia nos levar a descobrir novas formas de solidariedade entre os que sobraram? Pois bem, se você coloca esse tipo de perguntas, é que você não fantasia com o fim do mundo. Para entender no que consiste a fantasia do fim do mundo, não é preciso comparar os diferentes futuros pós-catastróficos possíveis.

Assim como não é preciso considerar se, por exemplo, nos vários cenários desolados do dia depois, há ou não o encontro com um Adão ou uma Eva com quem recomeçar a espécie. Pois essas são apenas variações, enquanto a necessidade das armas (e não só para caçar os últimos coelhos e faisões) é uma constante, que revela qual é o sonho central na expectativa do fim do mundo. Em todos os fins do mundo que povoam os devaneios modernos, alguns ou muitos sobrevivem (entre eles, obviamente, o sonhador), mas o que sempre sucumbe é a ordem social. A catástrofe, seja ela qual for, serve para garantir que não haverá mais Estado, condado, município, lei, polícia, nação ou condomínio.

Nenhum tipo de coletividade instituída sobreviverá ao fim do mundo. Nele (e graças a ele) perderá sua força e seu valor qualquer obrigação que emane da coletividade e, em geral, dos outros: seremos, como nunca fomos, indivíduos, dependendo unicamente de nós mesmos. Esse é o desejo dos sonhos do fim do mundo: o fim de qualquer primazia da vida coletiva sobre nossas escolhas particulares. O que nos parece justo, no nosso foro íntimo, sempre tentará prevalecer sobre o que, em outros tempos, teria sido ou não conforme à lei.

 Por isso, depois do fim do mundo, a gente se relacionará sem mediações -sem juízes, sem padres, sem sábios, sem pais, sem autoridade reconhecida: nós nos encararemos, no amor e no ódio, com uma mão sempre pronta em cima do coldre. E não é preciso desejar explicitamente o fim do mundo para sentir seu charme. A confrontação direta entre indivíduos talvez seja a situação dramática preferida pelas narrativas que nos fazem sonhar: a dura história do pioneiro, do soldado, do policial ou do criminoso, vagando num território em que nada (além de sua consciência) pode lhes servir de guia e onde nada se impõe a não ser pela força.

 Na coluna passada, comentei o caso do jovem que matou a mãe e massacrou 20 crianças e seis adultos numa escola primária de Newtown, Connecticut. Pois bem, a mãe era uma "survivalist"; ela se preparava para o fim do mundo. Talvez, junto com as armas e as munições acumuladas, ela tenha transmitido ao filho alguma versão de seu devaneio de fim do mundo.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O Massacre de Newton



Na sexta passada, em Newtown, Connecticut, um jovem de 20 anos voltou para sua antiga escola primária e matou 20 crianças, de seis e sete anos, e seis adultos (a diretora, a psicóloga da escola e quatro professoras). Em casa, ele já tinha assassinado sua própria mãe. 

 Fiquei diante da televisão durante boa parte do fim de semana. O cenário bucólico da região reforçava a insensatez do acontecido.

 1) Poucas horas depois do massacre, o dr. Sanjay Gupta, neurocirurgião e "correspondente médico" da CNN, afirmava enfaticamente que precisamos de "uma legislação que permita que as autoridades façam o que deve ser feito". "Essas coisas", ele acrescentou, "podem ser previstas e podem ser tratadas".

 Na emoção do momento, Gupta (que, em geral, é competente e prudente) reiterou que sempre há sinais que nos avisam de que algo terrível está para acontecer. Seu exemplo? Veja: "Alguém está irritado e isolado, sofre de alucinações auditivas, tem paixão por armas e frequenta um estande de tiro".

 Diante desse quadro, lamentou Gupta, você não tem como chamar a polícia, pois ela não tem os meios legais para intervir. Por sorte, acrescento eu.

 Mais tarde, também na CNN, uma psiquiatra declarou que o atirador "era um perigo para sua própria família" (fácil de se dizer, sobretudo DEPOIS de ele ter assassinado a mãe). Segundo ela, fomos longe demais no respeito por doentes e perigosos: temos medo de prender as pessoas. A mesma psiquiatra disse que pessoas como o assassino, infelizmente, se recusam a serem medicadas.

 Ou seja, não é que nossos diagnósticos sejam imprecisos e tardios, nem que nossos remédios sejam insuficientes e precários. Também não é que a gente não saiba prever uma explosão de loucura assassina.

 Nada disso. Na sexta-feira, segundo a CNN, se tivéssemos os meios legais de internar e medicar à força, teríamos resolvido o problema definitivamente. Eu mesmo adoraria jurar, em cima das tumbas das vítimas de Newtown (e de milhares de outras, mundo afora), que, a partir de suas mortes, tudo mudará. Mas essas são palavras que apenas servem para nos consolar.

 2) Sou favorável ao movimento para que sejam verificados a sanidade (até onde possível, que é pouco) e os antecedentes dos que adquirem armas. Sou favorável à proibição da venda das armas de guerra --e talvez até de todas as armas. Mas, por favor, SEM ILUSÕES.

 No caso, em Connecticut, o controle já existe, e as armas usadas pelo assassino de Newtown eram devidamente registradas: elas pertenciam à mãe de assassino, uma de suas vítimas.

 O Japão tem uma legislação rigorosa contra a posse de armas. Justamente, em 2001, Mamoru Takuma, condenado à forca em 2004, entrou numa escola primária de Osaka e matou oito crianças --com uma faca.

 No Reino Unido, depois do massacre de Hungerford, em 1987 (16 vítimas, entre as quais a mãe do assassino --mais o assassino, que se suicidou), as armas automáticas e semiautomáticas foram banidas pelo Firearms (Amendment) Act, de 1988. No massacre na escola de Dunblane, na Escócia, em 1996 (morreram 16 crianças, um adulto --e o assassino, que se suicidou), foram usadas duas pistolas e dois revólveres. Em consequência, foi proibida a propriedade privada de todas as armas de mão. Isso não impediu que, em 2010, alguém, no condado de Cúmbria, Inglaterra, matasse 12 pessoas e ferisse mais 11, antes de se suicidar.

 Meus amigos caçadores, membros da National Rifle Association, pensam que não é bom proibir as armas: segundo eles, se as professoras, a diretora e a psicóloga de Newtown estivessem armadas e reagissem, o balanço do horror teria sido mais leve. O mesmo argumento poderia ser invocado pelo massacre na escola Municipal Tasso da Silveira, no Realengo, no ano passado. Mas você gostaria que suas crianças frequentassem uma escola em que os professores estivessem constantemente armados?

 Minha conclusão é a de que devemos agir, sim: controlar as armas de fogo, melhorar nossos diagnósticos. Mas, por favor, sem mentir para nós mesmos.

 Nossas ações acarretarão consequências mínimas: algumas vítimas talvez sejam salvas graças às novas disposições (isso já é muito), mas horrores parecidos com os que mencionei vão acontecer de novo --e nunca teremos como evitá-los, nunca teremos mesmo como preveni-los.

 Desculpem-me se o tema da semana foi sombrio. Mesmo assim, boas-festas a todos!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O devaneio é uma doença?



Enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio numa doença
CANSADA DE sonhar de olhos abertos, uma leitora, Ana, quer saber mais sobre devaneios: "Por que acabo sempre fugindo para esse lugar fictício, onde tudo pode ser tão melhor ou pior, um mundo do que poderia ser, do que poderia ter sido, da pior hipótese fantástica, pretéritos imperfeitos, mais que perfeitos, futuros incertos -e quando vejo, perdi tanto tempo com isso?".
Tenho carinho pelos sonhos de olhos abertos. Até o começo da adolescência, o devaneio era meu aliado contra o que me parecia ser a mediocridade do mundo.
Para mim, como para Ana, o devaneio era o país de onde eu vinha (minha origem escondida) ou minha pátria futura; de um jeito ou de outro, era meu passaporte para um outro mundo, que me salvaria de meu lugar e de meu presente.
Graças ao devaneio, assisti a centenas de aulas chatérrimas aparentando minha absoluta atenção (embora de olhos um tanto vidrados). Quando atravessei a dolorosa época em que os adolescentes menosprezam os seus pais, o devaneio me consolou, alimentando a certeza de que eu, de fato, pertencia a outra família.
Enfim, à força de contar histórias para mim mesmo, aprendi a contá-las para os outros.
O que fez com que, aos poucos, meu devaneio se acalmasse (por sorte, sem se exaurir)? Será que eu "amadureci"? Ou será que as aulas, o trabalho e os amores se tornaram interessantes, e a necessidade de sonhar diminuiu?
Na hora de explicar o excesso de devaneio, o adolescente tende a acusar a realidade na qual ele vive, a qual mereceria o enfado que ela lhe inspira. Mas, em geral, não há realidade enfadonha, apenas indivíduos enfadados, que, por alguma razão, não enxergam o encanto possível do dia a dia.
Ao devanear, eu me afasto da realidade. Por outro lado, sem devanear, mal consigo inventar e desejar realidades diferentes. O que é pior? Entre renunciar a devanear e sucumbir ao devaneio, talvez seja pior renunciar a devanear.
Infelizmente, enquanto a gente sonha sossegado, alguns se esforçam para transformar o devaneio num transtorno, se não numa doença. Desde um texto de 2002 no "Journal of Contemporary Psychotherapy" (revista de psicoterapia contemporânea,http://migre.me/cjDUi), monitoro a ascensão do "transtorno" de devaneio excessivo e "mal-adaptativo" (ao mesmo tempo, desadaptado e capaz de comprometer nossa adaptação ao mundo).
Rapidamente, os blogs se multiplicaram -tanto de pessoas se queixando de seus devaneios excessivos como de médicos interessados em registrar o novo transtorno e propor uma cura. Dez anos atrás, o devaneio era considerado como fuga de um provável abuso infantil. Hoje, é possível ser sonhador sem ter sido abusado; é um alívio.
No fim de 2011, foi publicada, em "Consciousness and Cognition" (consciência e conhecimento), uma pesquisa detalhando o sofrimento dos sonhadores compulsivos (http://migre.me/ciyPG): blogs e sites fizeram uma festa.
Aprendemos que os sonhadores de olhos abertos sentem vergonha de sua condição. Eles se escondem, mas podem ser identificados porque, sem se dar conta, enquanto sonham, eles atuam seus devaneios em gestos e palavras (ou seja, falam sozinhos). Enfim, eles precisam ser ajudados porque tudo isso leva a ansiedade e depressão.
Li recentemente, num blog, a carta de uma mãe preocupada porque o filho, de sete anos, não para de sonhar em proteger o mundo contra os malvados ou em distribuir dinheiro aos pobres. Será que, nas próximas décadas, o devaneio ocupará o lugar do transtorno de deficit de atenção?
Desde 2008 (http://migre.me/ciyZL), alguns garantem que a fluvoxamina (remédio, em tese, para transtornos obsessivo-compulsivos) cortaria o devaneio excessivo. Se os laboratórios decidirem que medicar o devaneio é um bom negócio, que Deus acuda as crianças.
O devaneio excessivo é o hábito de Dom Quixote, Madame Bovary, dois terços dos adolescentes, quase todos os autores de novelas e romances etc. Transformar esse hábito, tão humano, em "transtorno", é uma tentativa de regular nossas vidas com a desculpa higienista: tudo nos é imposto para nossa "saúde" e nosso bem. Pararemos de sonhar porque é mais "saudável" prestar atenção só no que está na agenda de hoje?
No fundo, nada disso me estranha. Desde o século 19, as regras para uma vida saudável (física e psíquica) são nossa nova moral. E esse ataque contra o devaneio era previsível: qualquer forma de poder prefere limitar os sonhos de seus sujeitos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O fim da infância?

Quando as notícias comunicam o número de mortos e feridos num atentado, numa catástrofe ou numa chacina, nunca falta o número de crianças.

Podemos não saber se morreram mais homens ou mulheres, mas, se houve crianças entre as vítimas, seremos informados. E, das imagens que a reportagem nos mostrará, a mais tocante será a de um pai ou de uma mãe, carregando o corpo inerte do filho ou da filha. Menos de dois séculos atrás, a frase "houve 12 vítimas, entre as quais quatro crianças" produziria provavelmente um pequeno alívio, como se a perda das crianças fosse menos deplorável do que a dos adultos. Hoje, é o inverso. Da mesma forma, hoje, se a imprensa escrevesse que houve, entre as vítimas, cinco idosos, reagiríamos pensando que é uma pena, claro, mas, menos mal: eles já estavam de saída.

Ora, um hipotético leitor de dois séculos atrás pensaria que os idosos são a perda irreparável: afinal, uma criança, ninguém sabe no que ela vai dar, enquanto um idoso é patrimônio consolidado. Num incêndio, você prefere que queime um caderno quase virgem ou o outro, no qual você anota seu diário há décadas? A mostra "The Century of the Child" (o século da criança), no Museum of Modern Art, de Nova York, fechou em 5 de novembro. Mas o catálogo (com o mesmo título, publicado pelo próprio museu) é melhor que a mostra: os documentos que foram expostos são todos reproduzidos e acompanhados por uma coletânea de ensaios excelentes.

 A tese geral é que, de 1900 a 2000, foi inventado e construído um mundo especificamente destinado às crianças e a suas necessidades presumidas, na sala de aula e na casa, na hora de aprender, de brincar e de se divertir. Ao longo desse século, as crianças deixaram de ser consideradas como adultos em miniatura ou incompletos para se tornar uma espécie autônoma e, supostamente, melhor do que a nossa --em tese, sem as más influências dos adultos, elas poderiam ser geniais, inocentes e puras como o bom selvagem. Pouco importa se perguntar o que é realmente uma criança e de qual barbárie ela seria capaz sem a ajuda dos adultos.

A invenção da especificidade da infância não diz nada sobre as crianças em si, mas revela algo sobre os adultos. Pois essas crianças, tão diferentes de nós, encarnam o que gostaríamos de ser. Dois exemplos. 1) O quarto de criança de classe média (o habitat infantil idealizado) é dominado pela estética do fofo. Os adultos se livram do desconforto da arte e das incertezas do gosto para "apreciar' sem culpa patinhos de madeira, bonecos, florzinhas e estrelinhas no teto. Eles também se livram da história: nenhum móvel e nenhum objeto antigos (a higiene é a desculpa).

Com esse interior atemporal, de conto de fada, o adulto moderno, atormentado por um irremediável desamparo existencial (falta de pátria, de classe, de tradição, se não de família), inventa, para a criança, a caricatura do amparo que ele deseja para si. 2) Quase no meio do século da criança, em 1938, Johan Huizinga publicou "Homo Ludens" (o homem que joga - ed. Perspectiva) --o clássico, que, como se sabe, situa o jogo como atividade humana por excelência.

Vale a pena lê-lo ou relê-lo pelo prazer, e também para entender quanto e como a proposta de Huizinga foi, por assim dizer, extraviada --resultando numa massa de escritos em favor do divertimento, do ócio, das férias, do brincar e do infantil como atividades muito mais humanas, produtivas e interessantes do que o trabalho, a concentração, a reflexão e a maturidade. Entende-se que crescer tenha se tornado difícil para as crianças, pois elas não podem parar de brincar, ou seja, de encenar a "virtude" do jogo, que nós, supostamente, perdemos. No começo do catálogo que citei, Juliet Kinchin, curadora, escreve: "Falando solenemente para a câmera em 1995, como parte do documentário ficcionalizado 'Children´s Video Collective', um menino faz a predição seguinte: 'No futuro, as crianças não existirão mais.

Minha geração é provavelmente a última geração de crianças. Ou melhor, a última geração a ter a experiência da infância. Isso não significa necessariamente que chegou o momento de guardar as coisas da infância. Ao contrário, isso pode significar que o uso das coisas da infância talvez acabe sendo prolongado indefinidamente, até a morte'". Ou seja, a infância não vai acabar, mas os adultos já estão em extinção.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Decisões morais



Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois assaltantes; você vai acelerar?

É uma da tarde, e você dirige uma caminhonete pelas ruas de São Paulo. De repente, você esbarra num carro parado; ao lado dele, dois motoqueiros; um dos dois enfia seu braço armado pelo vidro do motorista do carro; o assaltante ameaça e grita, ele pode atirar a qualquer momento, quer seja porque não estão lhe entregando o que ele pediu, quer seja porque não gostou do que lhe foi entregue, quer seja porque, simplesmente, ele está nervoso e a fim de matar.

Atrás de você e da cena do assalto, só buzinam os mais afastados, que não enxergam o que está acontecendo. Os mais próximos ficam paralisados, divididos entre o medo e a vergonha por não reagirem e por serem cidadãos de um lugar onde isso é possível e corriqueiro.

Você está na posição ideal para pisar fundo e atropelar os dois meliantes, antes que atirem ou que fujam, ganhando, mais uma vez, dos assaltados e de todos nós.

Você não vai acelerar. É por medo de que o assaltante evite seu carro e acerte você com um tiro? É por preguiça de se envolver com polícia e investigação? Ou receia que cúmplices e familiares dos criminosos se vinguem?

Tudo bem, imaginemos que seja noite funda: não há ninguém, só os assaltantes, os assaltados e você. Ninguém verá nada. Ainda assim, você não vai acelerar?

Talvez prevaleça em você a inibição que paralisa a muitos na hora de machucar um semelhante, mesmo odioso. Ou talvez você queira agir "segundo a lei". Mas você sabe que a lei contempla e admite a "legítima defesa de terceiro"? Tudo bem, sua única obrigação jurídica é acionar a autoridade competente: fique no seu carro e ligue para a PM, uma viatura chegará a tempo para interromper o assalto e proteger os assaltados -não é verdade?

Ok, você hesitou demais, um dos assaltados acaba de ser baleado. Juridicamente, você não tem responsabilidade por não ter agido. A lei não exige de ninguém que seja herói. Mas será que isso é verdade também da moral? Você vai dormir tranquilo?

Outro dilema. Agora, imagine que, exatamente na mesma cena, você seja o assaltado. A caminhonete do dilema anterior apareceu, atropelou os assaltantes e sumiu. O bandido para quem você entregou sua bolsa está no asfalto, numa poça de sangue. Você faz o quê? Chama uma ambulância e espera para dar depoimento? Ou recupera o que lhe foi roubado e vai embora?

Já escrevi aqui mais de uma vez: admiro a teoria dos estágios do pensamento moral, de Lawrence Kohlberg. Resumindo, com nosso exemplo: é inútil querer decidir se é mais moral jogar a caminhonete para cima dos ladrões ou se esconder atrás do volante.
O que importa é a razão de nossa escolha. Se decidirmos por medo da punição, por conformidade ou mesmo por respeito à lei, nossa conduta será moralmente medíocre. Se decidirmos segundo o que nos parece certo, em nosso foro íntimo, nossa conduta -seja ela qual for- será de uma qualidade moral superior.

Mais uma coisa: Kohlberg também mostrou que a gente não melhora moralmente à força de memorizar valores ou exemplos a seguir, mas destrinchando dilemas e ponderando como e por que agiríamos de uma maneira ou de outra.

Os dois dilemas que acabo de expor são extraídos de um filme excelente, que não me sai da cabeça, "Disparos", de Juliana Reis, em cartaz desde sexta passada.

"Disparos" acontece no Rio, embora seu roteiro seja, hoje, mais paulistano do que carioca. De qualquer forma, não perca o filme e não fuja do debate íntimo sobre o que você faria numa situação parecida (até porque as chances de viver uma situação parecida aumentam a cada dia).

O Senado acaba de incluir disciplinas de ética no currículo do ensino fundamental e médio. Espero que se evite a monumental estupidez de ensinar ética normativa, ou seja, de querer enfiar valores em nossas crianças -goela abaixo, como se fossem partículas consagradas.

Para crianças como para adultos, "aprender" ética significa aprimorar a disposição a pensar moralmente, ou seja, a capacidade de debater, em nosso foro íntimo, os enigmas complexos (e, muitas vezes, insolúveis) que a realidade nos apresenta. Como disse, essa disposição só melhora à força de encarar dilemas.

Sem esperar o mais que provável desastre do novo curso, podemos ir (e levar nossos adolescentes) ao cinema. "Disparos" é um filme perfeito para pesar a complexidade da vida urbana no Brasil, ou seja, para pensar o que significa sermos morais hoje, aqui, no lugar em que estamos vivendo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A menina que se achava 007


 Por que uma menina de 13 anos entende um filme de James Bond, mas não a tragédia de uma família? 

 ASSISTI, NESSES dias, a um documentário bonito e tocante, "Diário de uma Busca", de 2011. 

 A autora, Flavia Castro, investiga a morte misteriosa de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro. Junto com um amigo, também militante de esquerda durante a ditadura, Celso morreu ou foi morto, em 1984, em Porto Alegre, no apartamento de um alemão que teria sido oficial nazista. 

 Na tentativa de entender o que aconteceu, Flavia reconstrói sua própria infância durante a clandestinidade e o exílio dos pais, nos anos 1960 e 1970, por Argentina, Chile, França e Venezuela. 

 Achei que uma menina como S., 13 anos, gostaria do filme, e a deixei em frente à TV, aparentemente interessada. Meia hora mais tarde, S. estava no meio da reprise de "007 - Cassino Royale", o James Bond de 2006, que ela já vira duas ou três vezes. Ela me disse que tinha parado o documentário porque "não entendia o que acontecia na história". 

 Ou seja, uma menina inteligente de 13 anos "entende" sem problema que Bond mate um tal Mollaka, explodindo, no Madagascar, a embaixada do país de Nambuto (?), e logo ele reapareça na casa de M. na Grã-Bretanha -ou talvez ele reapareça (não me lembro mais) nas Bahamas- para seduzir a mulher de Dimitrios. A mesma menina não entende a fuga de um militante de 40 anos atrás -aliás, nem estou certo que ela entenda o que era um militante de 40 anos atrás. 

 Tudo bem, lamento a mediocridade do ensino e, em geral, a futilidade da conversa dos adultos. Mas há uma outra razão, talvez mais importante, que faz que, para S., seja mais fácil entender as aventuras fantásticas de Bond do que a tragédia real da família Castro. 

 É aqui que a leitura de "O Homem que se Achava Napoleão - Por uma História Política da Loucura", de Laure Murat (Três Estrelas), torna-se indispensável. 

 Murat mostra exaustivamente como, da Revolução Francesa até a Comuna de Paris, os acontecimentos políticos e sociais modelaram a loucura e os delírios. Claro, no meio do Terror, com suas incessantes execuções públicas, era mais fácil do que hoje que alguém acreditasse ter sido decapitado e andar pelo mundo com a cabeça de outro, erroneamente instalada no seu pescoço. 

 Mas as implicações do livro de Murat são mais gerais e radicais. Como mostra Jurandir Freire Costa no breve mas importante prefácio, a questão é: "Em que medida a loucura pode ser dissociada da atmosfera cultural que a cerca?". 

 Como Murat (e como Freire Costa), tendo a pensar que cada cultura (e cada época de cada cultura) dá forma a sofrimentos psíquicos que lhe são próprios. 

 As revoluções do fim do século 18 produzem um homem novo, de quem ainda somos os herdeiros. 

 Esse homem novo é levado a "apreender a ordem do mundo através de sua subjetividade": ele "se identifica com os personagens do romance psicológico", "funda a introspeção como meio de conhecimento" e, sobretudo, ele é obrigado a reconhecer que a autoridade não é mais um atributo dos padres, dos nobres ou dos anciões. Ele mesmo, esse homem novo, deve decidir no que acreditar, seguindo seu foro íntimo e suas convicções. 

 Uma parte dos transtornos modernos derivam da incerteza de quem abandonou sua confiança tranquila nas tradições laicas ou divinas. Mas talvez esses não sejam os transtornos mais graves. 

 Bem na aurora da modernidade, Philippe Pinel, o inventor da psiquiatria, observa que, de todas as formas de mania, duas são incuráveis: "os inchaços do orgulho e o fanatismo religioso". 

 Laure Murat entende que Pinel, aqui, está sendo "político", transformando em doenças incuráveis as paixões dos grandes inimigos da Revolução Francesa (os aristocratas são "orgulhosos", e o clero é "fanático"). 

 Mas eu acho que Pinel, nessa observação, está também descrevendo com propriedade os transtornos mais graves da modernidade, que são reativos. É contra a angústia de ter que inventar e sustentar nossas próprias crenças que adotamos fanatismos religiosos nostálgicos ou fantasias grandiosas e heroicas nas quais imaginamos que somos as pedras angulares do mundo, invencíveis, imortais, extraordinários e únicos. Esse "inchaço do orgulho", aliás, é o que mais gostamos de transmitir a nossas crianças, para que continuem tão grandiosas e heroicas quanto nós somos, em nossas delirantes fantasias. 

 Entende-se por que S., 13 anos, acha que uma história de James Bond é mais compreensível do que a incerteza e a dureza do destino da família Castro.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A fé no progresso


 A ideia de progresso 'natural' é falsa. Na história, nada é garantido: tudo é, sempre, conquistado 

 ASSISTI A "Lincoln", o novo filme de Spielberg, no dia da estreia, na sexta-feira passada, numa lotadíssima sessão da tarde, em Manhattan. No Brasil, "Lincoln" chegará só no fim de janeiro. 

 O filme, que é uma obra-prima imperdível, se concentra sobre o esforço político de Lincoln para que a Câmara dos Representantes ratificasse, em 1865, a 13ª emenda da constituição dos EUA -a que aboliu a escravatura no país. 

 A escravatura era a aposta central da guerra, que durava havia quatro anos, entre o Norte e o Sul escravocrata. Mas, mesmo no Norte, nem todos eram abolicionistas, e muitos temiam que os negros liberados se tornassem um dia cidadãos e, pasme, pudessem votar. 

 Ninguém, naquela sala de cinema, na sexta passada, podia evitar de pensar que, três dias antes, o país reelegera seu primeiro presidente negro. Em menos de 150 anos, foi um progresso e tanto. 

 Falo de progresso só porque essa mudança promove valores nos quais aposto: quando eles avançam, acho que a gente progride. Não acredito na ideia de uma evolução "natural" da civilização (nota para os amigos filósofos: concordo com Voltaire, não com Condorcet, ainda menos com Saint-Simon). 

 Lembro-me de discussões intermináveis, no fim dos anos 1960, com Nicola, um jovem salernitano que fazia uma pós-graduação em geologia do petróleo em Genebra e que era decididamente anticomunista. A cada almoço, eu e meu amigo Enzo tentávamos convencer Nicola de que o futuro do socialismo seria radioso. Não funcionava. 

 Um dia, achei um escrito (filosoficamente duvidoso, mas de uma procedência que pareceu confiável a Nicola) segundo o qual, radioso o não, o futuro socialista era inelutável, previsto pelo marxismo "científico". Nicola acreditava na ciência, era ingênuo, e o texto o abalou. Não sei se ele se converteu, mas sumiu do restaurante universitário durante um tempo, e a gente se perdeu de vista. 

 Bom, Nicola, é um pouco tarde, mas talvez você esteja trabalhando numa plataforma do pré-sal e leia este jornal (o mundo é pequeno, mesmo). Nesse caso, aceite minhas desculpas: o marxismo "científico" é uma ideia calhorda, e o comunismo nunca foi inelutável. Já naquela época, aliás, eu sabia que nada acontece na história sem o engajamento subjetivo dos atores (por isso preferia, por exemplo, Henri Lefebvre a Louis Althusser -e por isso continuo gostando de Alain Badiou, porque ele nunca deixou de pensar que, sem engajamento dos sujeitos, não acontece nada, não há progresso algum). 

 Tudo isso parece óbvio? Vamos devagar: o sonho comunista pode estar morto, mas nossa (cômoda) crença num progresso "natural" e garantido continua bem viva. 

 Por exemplo, na semana passada, na eleição americana, junto com a vitória de Obama, aconteceu a derrota de dois candidatos a senador cuja oposição à legalização do aborto (mesmo em caso de estupro) era de um machismo e de uma estupidez ultrajantes. Na mesma eleição, houve também Estados que aprovaram o casamento de pessoas do mesmo sexo. 

 Nasci e cresci numa Itália em que a desigualdade de fato e de direito era sinistra, e o amparo era pouco. Nesse mundo, as mulheres estavam longe de ter direitos comparáveis aos dos homens, não existia divórcio, qualquer aborto era criminoso, o consumidor de droga era igualado ao traficante, e a homossexualidade era uma vergonha que era melhor esconder. 

 Para que essas realidades mudassem, lutei -ou seja, junto com muitos outros, votei, escrevi, desfilei, militei. Mesmo assim, tenho a estranha impressão de que fomos carregados por uma espécie de movimento "natural", ao qual era possível resistir, mas que sempre ganharia no fim -um progresso na direção do grande ideal cristão: a maior liberdade possível dos indivíduos sem renunciar à solidariedade. 

 Essa impressão de progresso "natural" é falsa e perigosa. Na história, nada é garantido: tudo é, sempre, conquistado. 

 O que nos separa de outros mundos possíveis (e horríveis) não é a inelutabilidade do progresso, mas a obstinação de pequenos grandes gestos. Entre nós e as trevas, há o corpo ferido de Malala Yousafzai, 14, baleada na cabeça pelo Talibã paquistanês porque promovia o "secularismo' (ou seja, queria ir para a escola e pensar com a sua cabeça). 

 Ou, a coragem da catarinense Isadora Faber, 13, que continua seu "Diário de Classe" on-line, embora hostilizada por professores, por administradores e talvez por um pintor negligente (Folha, 11 de novembro).

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Notas do diário das eleições nos EUA


 A austeridade é um remédio religioso para a crise: gastamos e pecamos, o perdão virá pela penitência 

 3/11 - Observadores, dentro e fora dos EUA, dizem que o país está dividido, "polarizado" entre dois extremos. Mas de que extremos estão falando?

 À direita, existe, de fato, um extremismo, que hoje é encarnado pelo movimento Tea Party e que conta com representantes eleitos. Por que é um extremismo? Um traço decisivo é o revisionismo histórico: para conferir um selo de nobreza às suas ideias, o pessoal promove qualquer lorota sobre o passado dos EUA -sobre o que teriam pensado os pais fundadores, sobre o "verdadeiro" sentido da constituição etc.

 Outro traço é o fundamentalismo religioso, que se expressa em ideias assustadoras, como as do candidato ao Senado para quem, se uma mulher estuprada ficar grávida, é que, na verdade, ela gostou.

 Mas à esquerda não existe nada equivalente. Ou, se existe, é tão recente e marginal quanto o movimento Ocupe Wall Street.

 Uma consequência dessa disparidade foi notada por E. J. Dionne (no ótimo livro sobre a pretensa polarização dos EUA, "Our Divided Political Heart", nosso coração político dividido, Bloomsbury, 2012).

 Quando Romney promete governar próximo do centro, e não segundo a vontade da maioria de seus eleitores republicanos, sua promessa faz sentido, e podemos esperar que ele seja menos truculento do que muitos parlamentares de seu partido.

 Mas, quando Obama faz uma promessa análoga, ele promete se afastar de qual esquerda "extrema"? Como ele faria concessões para governar o país ao centro, visto que ele já é e sempre foi o centro?

 4/11 - O psicólogo Drew Westen é autor de um livro notável sobre a irracionalidade das escolhas políticas, "O Cérebro Político" (Unianchieta).

 Num artigo no "New York Times" de hoje, ele afirma que, seja qual for o presidente eleito, a guinada será à direita. Eis a argumentação. 1) Se Romney perder, seu partido pensará que foi porque ele não se mostrou suficientemente conservador; 2) se Obama perder ou ganhar por um fio (dá na mesma), seu partido pensará que ele perdeu (ou quase) porque se arriscou à esquerda além da conta ou antes da hora (e, com isso, assustou os americanos, com a reforma da assistência médica e com a política de subsídios à economia).

 Ou seja, é como se todos se preocupassem com o que pensa uma suposta maioria de direita.

 Ora, na campanha eleitoral, Romney ganhou intenções do voto quando ele começou a desmentir tudo o que ele tinha proposto antes, tomando posições mais progressistas. E Obama recuperou sua popularidade quando começou a atacar agressivamente os privilégios fiscais dos mais ricos. Ou seja, talvez o eleitorado seja menos "de direita" do que pensam os candidatos e os políticos.

 5/11 - Eis um exemplo da tese de Westen sobre o importância das emoções nas escolhas políticas. Os republicanos se dizem conservadores fiscais; segundo eles, o governo não deveria estimular a economia, mas praticar a austeridade e reduzir o deficit.

 Em geral, essa "austeridade" se traduz no fato de que o povo se austeriza e alguns lucram com a austeridade dos demais. Mas, fora qualquer consideração econômica, o discurso da austeridade (tanto nos EUA como na Europa) evoca a ideia religiosa de penitência. Gastamos muito, pecamos -e agora só obteremos o perdão divino passando por uma merecida penitência (jejum, autofustigação e austeridade como soluções para a crise).

 6/11 - Hoje, no distrito da rua 48 West, em Nova York, as filas eram longas. Levei duas horas para votar. Bom sinal para os democratas. Mas Nova York significa pouco numa eleição -a cidade sempre foi um reduto democrata. Mais significativos, nos últimos dias, foram os apoios a Obama de dois republicanos, o governador de Nova Jersey, Chris Christie, e o prefeito de Nova York, Michael Bloomberg. Será que a dureza do furacão Sandy, por um momento, aboliu o caráter abstrato das oposições eleitoreiras e permitiu pensar no "bem comum"?

 6/11 - Obama ganhou: alívio. Uma vitória de Romney daria força, inevitavelmente, às ideias da parte pior do partido republicano. Alguns dirão que essas não são as ideias de Romney, por mais que ele as tenha defendido na campanha. Justamente, este teria sido o problema maior de uma presidência Romney: ao longo de toda a campanha, ele me apareceu como um homem sempre pronto a se transformar de maneira a ser exatamente como seus interlocutores do momento desejavam que ele fosse.

 É uma qualidade? Talvez, num candidato. Num presidente dos EUA, seria catastrófico.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Segurança (uma modesta proposta)


 A certeza de que o socorro será precário, lento ou ausente alimenta a sensação de insegurança 

 A CIDADE de São Paulo está insegura como não estava há tempos. Claro, estão acontecendo ataques mortíferos contra policiais e prováveis execuções dos supostos responsáveis por essas mortes. Mas não é só isso.

 A nova insegurança de nossas ruas é óbvia para qualquer paulistano, no aumento dos crimes contra ele mesmo ou contra seus próximos. No dia 21 último, a morte de Caroline Silva Lee, de 15 anos, confirmou o que já sabíamos: a cidade, absurdamente perigosa, parece voltar aos piores momentos do fim dos 1980 e começo dos 1990.

 Naquela época, as grandes acusadas eram a exclusão social e a desigualdade excessiva de nossa sociedade. Hoje, parece mais provável que alguns jovens da novíssima classe C estejam adotando, como símbolo de status, uma necessidade imperiosa de consumo -e isso sem incorporar hábitos menos tentadores e menos conspícuos da classe média (ética do trabalho, meritocracia etc. Nota: melhorias socioeconômicas não implicam necessariamente melhorias do tecido social da comunidade).

 Hoje, como naquela época, é pífia, se não nula, a confiança dos cidadãos no socorro da força pública.

 A prova disso está nas estatísticas apresentadas pela Folha na sexta, 26, (http://migre.me/bsb4k). Em 2012, os latrocínios (roubo seguido de morte) aumentaram 27% em relação ao mesmo período de 2011 e os roubos de veículos aumentaram 13%, enquanto os roubos simples aumentaram apenas 4%. Nenhum mistério nessa disparidade: o crime é denunciado quando há morte ou roubo de veículo (o seguro pede o boletim de ocorrência). No mais, chamar a polícia e registrar a ocorrência é fora de questão: já pegaram meu relógio, vão querer meu tempo também?

 Silogismo. 1) A certeza de que o socorro será precário, lento ou ausente alimenta a sensação de insegurança; 2) a sensação de insegurança entrega a rua aos criminosos; 3) diminuir a sensação de insegurança seria uma maneira de combater a insegurança efetiva da cidade.

 Um carro de bandidos em fuga capotou na sua frente atropelando duas pessoas, que agora gemem debaixo do carro revirado. Você, escondida, tem como dar um telefonema.

 Qual é o número mesmo? Dos bombeiros, para que levantem o carro acidentado e salvem os atropelados? Seria 193, se não me engano. Da Polícia Militar? Esse, a maioria das pessoas conhecem: 190. Ou da Polícia Civil? Seria 147, é isso? O pronto-socorro médico é 192, mas será que são eles que despacham as ambulâncias?

 O 190 responde, em tese, no primeiro ou segundo toque. Já, se você for atrás de uma ambulância, pode acontecer a situação descrita num tweet de @toledoana (em "Mdrama", SP Escola de Teatro, Gov. do Estado): "Você ligou para Godot. Por favor, aguarde na linha. Sua ligação é muito importante para nós".

 A segurança pública deveria ter um número único, que respondesse obrigatoriamente com a rapidez que constatei no 190. Quem atende deveria 1) decidir qual é o socorro certo e despachá-lo (ambulância, guindaste, polícia) com a urgência adequada, 2) permanecer na linha, assistindo quem ligou até a chegada do socorro, 3) preparar, enquanto isso, o encaminhamento do socorro (encontrar e prevenir o melhor hospital de destino, por exemplo).

 No atendimento, a prioridade deveria ser saber o local e a natureza da urgência (o CPF e o RG de quem chamou não são condições para escutar e assistir).

 A rapidez e a competência desse atendimento unificado seriam uma piada de mau gosto se não houvesse um tempo de resposta decente entre a chamada e a chegada do socorro.

 As unidades móveis de socorro (carros das polícias e dos bombeiros, ambulâncias públicas ou privadas) já dispõem (ou deveriam dispor) de GPS, de maneira que pode ser monitorada constantemente a cobertura do território do município, garantindo que nenhuma área esteja fora de um alcance rápido.

 Em Nova York, o tempo médio é de quatro minutos para os bombeiros e oito minutos para a polícia (esse tempo desce drasticamente se a urgência for uma ação criminosa armada em curso).

 Que tal propor uma meta -um tempo médio de resposta- até o fim do ano? Muitas vezes, de qualquer forma, os socorros chegarão tarde demais, mas 1) será possível medir, em cada caso, onde e por que se originou o atraso e, sobretudo, 2) será bom os cidadãos sentirem que, na hora em que eles pedem socorro, alguém se apressa.

 Como disse, a segurança é, antes de mais nada, uma sensação.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Silêncio e barulho das emoções


 Qual é o transtorno? A falta de emoções dos filhos? Ou o excesso das emoções dos pais "baby boomers"? 

 AS ELEIÇÕES esquentam os ânimos. As promessas duvidosas de tal ou tal outro candidato me irritam, assim como as propostas que são perigosas para minha liberdade ou repugnantes para meu sentimento de justiça. 

 Mas o que me indigna mais é a paixão partidária em si, seja qual for seu conteúdo -mesmo quando ela promove ideias com as quais concordo. Tanto faz que eu prefira melhorar o transporte em São Paulo ampliando o metrô ou a rede de ônibus, de qualquer forma, se alguém ficar na esquina pulando e gritando "Serra!" ou "Haddad!", aquilo vai me deixar perplexo (isso, a não ser que ele seja pago para mostrar seu entusiasmo -nesse caso, entendo, sem problema). 

 Na verdade, todas as emoções -da paixão partidária ao espírito torcedor, passando pelo amor, a saudade, o ciúme, o ódio etc.-, aos meus olhos, são quase sempre excessivas: transportes descontrolados ou atuações caricatas. Longe de serem reações adequadas a circunstâncias externas, elas me parecem ser teatralizadas (se não produzidas) por nós mesmos. Teatralizadas por quê? 

 Oscar Wilde disse um dia que as aquarelas de Turner inventaram o pôr do sol -pois, se não fosse pela pintura de Turner, nem pararíamos para contemplar as cores do crepúsculo. Algo análogo poderia valer para emoções e sentimentos. 

 Alguém ama do jeito sofrido do jovem Werther com Charlotte? Ou ele imita a paixão de Werther para convencer aos outros e a si mesmo de que ele ama? Alguém enlouquece de ciúme como Otelo ou ele imita a loucura de Otelo para convencer a si mesmo e aos outros de que ele está com ciúme? 

 Além disso, desde os anos 1960, assistimos a uma valorização das emoções, como se sua livre expressão fosse a marca da autenticidade. 

 Sem suspeitar que talvez estejamos expressando emoções muito além do que realmente sentimos, consideramos a ausência de emoções como um defeito, num arco que vai da frieza (considerada dissimuladora) até verdadeiros transtornos, como atimia (falta de emoções) ou alexitimia (incapacidade de expressar emoções). 

 Sem dúvida, há indivíduos que não sentem, não reconhecem nos outros e não expressam emoções. Eles não se confundem com os psicopatas, que precisam reconhecer perfeitamente as emoções dos outros, para manipulá-los. Quem são, então, os atímicos? 

 Estou assistindo a um extraordinário seriado sueco da BBC Four, "The Bridge" (http://www.bbc.co.uk/programmes/b01gxlxj). A policial da história é um exemplo perfeito de atimia e alexitimia. 

 Ela interroga por telefone um homem que está preso dentro de um carro-armadilha, que vai explodir em dois minutos. O homem, desesperado, não consegue pensar nem responder. Nossa policial não entende: qual é o problema? O fim do homem vai ser imediato, sua vida vai parar sem sofrimento. Para que o desespero? 

 Uma noite, a policial está a fim de sexo. Ela vai para uma boate e troca um olhar com um moço, o qual pergunta se ele pode oferecer um drinque. A policial responde "Não". O moço se afasta. A policial o segue e lhe pergunta por que ele foi embora. "Porque você disse não", responde o homem. E a policial explica que ela não queria um drinque, queria sexo. 

 A atimia (que estaria aumentando) é provavelmente uma falha de comunicação entre os hemisférios do cérebro. Alguns dizem que seria causada por pais frios e distantes, que desejam e encorajam muito a autonomia dos filhos. Subtexto: os pais que prezam os valores da modernidade estariam produzindo crianças alexitímicas. 

 Tendo a pensar o contrário. E constato que há adolescentes que fogem para a aparente "frieza" da alexitimia porque, de fato, eles não aguentam o excesso de emoções teatralizadas pelos pais. 

 Nesse caso, qual é o transtorno? A falta de emoções dos filhos? Ou o excesso das emoções dos pais "baby boomers"? 

 "Alexithymia" é uma música de Anberlin, um grupo de rock que aprecio. As letras dizem : "So very hard to breathe. My mask is growing heavy but I've forgotten who's beneath" (difícil respirar, minha máscara se tornou pesada, mas eu me esqueci de quem é que está debaixo dela). O título sugere que a letra é menos óbvia do que parece. 

 A máscara que pesa e nos sufoca talvez não seja (no estilo 1960) a cara impassível que esconderia nossas emoções reprimidas. As máscaras que pesam e nos sufocam talvez sejam as que vestimos para expressar e teatralizar emoções excessivas e obrigatórias, que todos esperam de nós.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Quanto vale uma virgem?

 Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns sonham juntar, por uma vez, amor e desejo 


 Uma catarinense de 20 anos, Catarina Migliorini, está leiloando sua virgindade. Isso acontece no quadro de um programa da televisão australiana, "Virgins Wanted" (procuram-se virgens), "mezzo" documentário "mezzo" reality show (a Folha de 26 de setembro publicou o depoimento da moça, http://acervo.folha.com.br/fsp/2012/09/26/15). Os lances são dados pela internet; quem ganhar o leilão receberá seu lote durante uma hora, dentro de um avião que sobrevoará o Pacífico.

 O leilão devia terminar na segunda passada, mas foi prorrogado até 25 de outubro. Hoje, a virgindade de Catarina está valendo mais de R$ 500 mil. Concordo com Hélio Schwartsman (na Folha de domingo passado): a questão interessante, nessa história, não é a conduta da moça, mas a extraordinária valorização da virgindade.

 Schwartsman foi procurar respostas em Paul Bloom, um psicólogo evolucionista, que eu não levo muito a sério, mas que acho engraçado (o que já é um ponto a favor).

 Segundo Bloom (e outros evolucionistas, mas não todos -por sorte da disciplina), nossa maneira de pensar (no caso, nosso apreço pela virgindade) é um resto da maneira de pensar de nossos antepassados do Pleistoceno (que é quando o homem apareceu na Terra).

 Não sei como Bloom sabe das ações e dos pensamentos do homem pré-histórico, mas, segundo ele, o homem do Pleistoceno queria sobretudo propagar SEUS genes, não os dos outros; portanto, ele preferia mulheres virgens. Aviso prático ao leitor: cuidado, casar com virgem não garante que a dita virgem engravide só da gente -a vida é longa. Fora isso, o homem do Pleistoceno, segundo Bloom, se preocupava muito com a sobrevivência dele mesmo, de seu clã e de sua espécie. Ou seja, por determinação biológica, ele era parecidíssimo com um ocidental do século 19. Por que será?

 Enfim, meus informantes do Pleistoceno (diferentes dos de Bloom), além de não saberem o que é um gene, tampouco sabem que é transando que se engravida uma mulher. Os poucos com os quais conversei confessaram, aliás, que eles preferiam mulheres que não fossem virgens, pois, percebendo que corticoides e antibióticos levariam tempo para serem inventados, eles estavam com muito medo de esfolar seu membro.

 Bom, trégua de ficção científica e vamos para a experiência concreta.

 A virgindade feminina era um bem apetível no interior da Itália central, quando eu era criança, e o código de honra mandava pendurar na janela o lençol manchado de sangue depois da primeira noite de núpcias. Havia desonra na ideia de que a mulher, tendo amado outro homem, fosse a aliada de um grupo diferente do clã do marido e do dela (traição mais séria do que qualquer brincadeira carnal ou amorosa); e havia desonra na suposição de que o marido não tivesse sido capaz de deflorar sua esposa. O lençol resolvia a questão.

 O código de honra é aquela coisa pela qual é preciso estar disposto a morrer. Ele não é do Pleistoceno, mas é muito mais antigo do que o século 19, onde floresceu a ideia de que os indivíduos, os grupos e mesmo as espécies só querem evitar a extinção e onde parecem viver os homens do Pleistoceno de Paul Bloom.

 Código à parte, a virgem tem uma série de atrativos. 1) Para ela, por mais que sejamos medíocres, seremos inesquecíveis. 2) Diante dela, em tese, seremos sem rivais (doce ilusão e mais um conselho prático: em matéria de amor, melhor rivalizar com um outro real do que com a idealização de outros apenas sonhados). 3) A ignorância sexual da virgem alimenta a ilusão de que podemos lhe ensinar alguma coisa e que, portanto, sabemos algo sobre o sexo.

 Mas os atrativos da virgem empalidecem diante dos atrativos da virgem prostituta -requisitadíssima: há leilões de virgens prostitutas pelas zonas do Brasil inteiro. Por quê?

 Muitos homens vivem divididos entre dois tipos de mulher: a "puta", que eles desejam, mas que não conseguem amar, e a virgem, que eles amam perdidamente, mas que eles não conseguem desejar (ela é linda, pura e intocável, como a mãe).

 A figura da virgem prostituta carrega em si essa contradição: como virgem, ela é parecida com a mãe, intocável e apenas amável, mas, por ser prostituta, ela é desejável e acessível. Comprando uma hora com a virgem prostituta, alguns talvez sonhem juntar, por uma vez, amor e concupiscência; é uma fantasia poderosa: a de conseguir, enfim, reverenciar amorosamente um corpo ilibado, mas sem renunciar a sujá-lo com seu desejo. A esses alguns, boa sorte no leilão!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Eleições e debates


 Quem vota em alguém por um jingle? Pois é, numa campanha, os candidatos não passam de jingles 

 Na quarta da semana passada, assisti ao primeiro debate entre Barack Obama, presidente dos EUA, e Mitt Romney, o republicano que disputa com ele a Presidência.

 A atitude quase deprimida de Obama contrastava com a performance de Romney, que, inesperadamente (para quem o viu anteriormente), parecia confiante, bem-humorado e até capaz de compaixão.

 Não há quem discorde: Romney ganhou o debate. Mas cuidado: isso não significa que ele demonstrou a superioridade de suas propostas. Um debate eleitoral não compara as diferentes soluções aos problemas do país -até porque, nele, para uma maioria na qual me incluo, muito do que os candidatos dizem é imponderável.

 Obama e Romney travaram, no debate, uma guerra de argumentos e números impossíveis de serem verificados. Tanto faz, pois o que é esperado não é que o espectador adote um plano ou uma ideia, mas que ele escolha um candidato.

 Alguns acharam que o debate presidencial dos EUA, por mais chato que fosse, era muito "melhor" do que nossos debates políticos, supostamente dominados por argumentos genéricos e apenas "sedutores". Penso diferente: o debate presidencial dos EUA, por mais aparentemente racional que fosse, era um duelo de charmes e não de argumentos (ainda menos de números).

 O único componente mais ou menos racional da escolha vem da tradição política do eleitor (prefiro Obama porque sou democrata). Mas o que acontece na ausência dessas preferências políticas preestabelecidas? Pergunte aos marqueteiros, que, cá entre nós, não são misteriosos "persuasores ocultos" (como dizia o título de num livro clássico de Vance Packard), mas apenas conhecedores dos diferentes caminhos pelos quais um produto nos seduz.

 Tanto faz que seja o tom, o sorriso confiante, a familiaridade ou, às vezes, seu contrário, a distância: de qualquer forma, nossa preferência será o efeito de retóricas pela quais, em tese, devemos ser conquistados.

 Durante a campanha paulistana, por duas vezes, um caminhão com alto-falantes e bandeiras ao vento se instalou na av. 9 de julho, a duas quadras de meu escritório e, durante horas, não tive como escapar à idiotice de um jingle "O meu prefeito é Fulano...". Pensei: se estivesse nos EUA, poderia folhear um catálogo de rifles de longa distância. E depois, mais seriamente: mas por que fazem isso? Quem vota em alguém por um jingle?

 Pois é, esse segundo pensamento não percebe algo essencial: numa campanha, seja ela paulistana ou norte-americana, todos os candidatos não passam de jingles. Os argumentos numéricos e aparentemente racionais do debate presidencial dos EUA eram pretextos para trejeitos retóricos "à la Tiririca". Desses, se espera que eles nos conquistem -isso, sem nenhuma crítica ao deputado Tiririca, pois, ao contrário, o que estou afirmando é que, no fundo, todas as campanhas são equivalentes à que ele fez.

 Nesse contexto, alguns candidatos pedem que a coisa mude e todos discutam seriamente os problemas e as propostas. O que resulta disso é apenas mais um trejeito, que diz "Olhem para mim, sou sério, e é disso que vocês vão gostar".

 Enquanto essas divagações me distraiam do debate, pensei num título para um livro sobre Obama (copiado de Peter Handke, "O Medo do Goleiro na Hora do Pênalti"): a tristeza do candidato na hora de debate.

 Mais tarde, Obama disse ter sido desconcertado pelas mentiras de Romney (o qual, no debate, mais de uma vez, disse o contrário do que ele e seu partido tinham proposto até então, durante a campanha).

 Imagino que essas mentiras tenham desvendado, aos olhos de Obama, a vaidade do processo. Obama é um racionalista, centrista por ser um defensor quixotesco das virtudes do diálogo, como se não existissem inimigos, apenas mal-entendidos. Parece que, debatendo com Romney, ele sentiu a quanta distância ele estava da racionalidade discursiva. Talvez ele tenha encarado, de repente, a essência inevitavelmente irracional do processo eleitoral democrático. E tenha se perguntado: mas o que estou fazendo aqui?

 Durante minha graduação, na Suíça, fui bolsista pelo boxe. Perdi uma final nacional, em São Galo, porque, no meio da luta, não entendi mais por que eu estava lá e porque eu estava batendo naquele estudante de Berna. Não foi uma reflexão pacifista. Apenas pensei: que palhaçada, eu não preciso disso, vamos acabar logo e voltar para casa. Perdi. Espero que Obama se recupere a tempo.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

De volta para o passado


Os remorsos são injustos: esquecemos as razões que nos fizeram decidir nas circunstâncias passadas

ADORARIA QUE fosse possível viajar no tempo e voltar para épocas anteriores de minha vida.

Ingenuamente, imagino que, em vários momentos do passado, eu teria me beneficiado de algo que sei só agora. Quem melhor do que eu aos 50 ou 60 anos para aconselhar uma versão mais jovem de mim, a de dez, 20, 30 anos atrás?

Hoje, enfim, meço as consequências de algumas escolhas antigas. Sei (ou imagino) que teria sido melhor me separar logo daquela pessoa e nunca me afastar de outra, que era insubstituível e que eu perdi; sei (ou imagino) que poderia ter evitado riscos inúteis e me exposto a outros dos quais fugi; sei (ou imagino) que deveria ter insistido quando desisti e desistido quando insisti. E, para quem pode viajar no tempo, nunca é tarde para salvar Inês.

Voltar ao passado para nos dar conselhos em momentos cruciais parece ser uma maneira racional de endireitar nossa vida, a única que leve em conta as consequências confirmadas de nossos atos. 

Mas um ditado italiano ("del senno di poi son piene le fosse" -da sabedoria do depois as valas estão cheias) sugere que esse saber das consequências, além de chegar atrasado, talvez seja inútil.

Concordo: as escolhas da gente são quase sempre as melhores, se não as únicas possíveis na hora em que tivemos que decidir. E os remorsos são quase sempre fajutos: quando reavaliamos e censuramos nossas decisões passadas à luz de suas consequências presentes, estamos esquecendo as razões que nos fizeram decidir naquele momento e naquelas circunstâncias. Mesmo assim, a vontade é grande de voltar atrás e alterar o passado.

Quando era mais jovem, depois de qualquer crise (embate, briga, acidente), revivia mil vezes o que acabava de acontecer, corrigindo ou aperfeiçoando imaginariamente minha reação (o que eu "deveria ter feito").
Hoje, mais velho, quando volto a lugares do passado, sempre os encontro assombrados, como se minha história ainda estivesse por lá, suspensa, na espera de uma solução alternativa à que se realizou na época.

Me dei conta disso quando, pela primeira vez, morreu alguém que tinha sido minha companheira. O luto foi violento, igual ao que seria se minha história com ela nunca tivesse acabado.

Como podia ser? Se passaram tantos anos sem eu pensar nela... Por que esta dor agora? Era como se, com a morte dela, acabassem as chances de dar àquela história um desfecho outro, como se só com a morte dela o passado se tornasse realmente passado.

Seja como for, por ser um fã das viagens no tempo, não podia perder "Looper - Assassinos do Futuro", de Rian Johnson, que estreou na sexta passada. No filme, daqui a 30 anos, as viagens no tempo serão possíveis e proibidas. A máfia instalará seus assassinos, os "loopers", no passado (ou seja, numa época mais permissiva); e para esses assassinos ela despachará as pessoas que deseja eliminar, para que sejam mortas.

Um dia, um assassino descobre que o condenado, que ele recebe do futuro, é a versão mais velha dele mesmo. Será que o jovem "looper" vai querer poupar sua própria vida? Não é óbvio: afinal, matar a nós mesmos daqui a 30 anos é parecido com fumar e comer toucinho.

Esse cara, 30 anos mais velho do que eu, será que ainda sou eu? E será que alguém aos 20 ou aos 30 escutaria o que sua versão de 60 anos tentasse lhe dizer? Ou será que, para mim aos 20, eu seria hoje apenas mais um velho chato qualquer? Questão antiga: fora nossa identidade jurídica, que permanece igual, será que, ao longo da vida, somos a mesma pessoa?

Nesse fim de semana, no festival de cinema do Rio, assisti a "Camille Outra Vez", de Noémie Lvovsky, título original "Camille Redouble" (não sei quando o filme será distribuído no Brasil, mas conto com o cinema Reserva Cultural, que, em São Paulo, para quem aprecia cinema francês, é uma dádiva).

No filme, Eric e Camille ficaram juntos a vida toda. Mas Eric acaba de deixar Camille por uma mulher mais jovem (e talvez menos beberrona). No Réveillon, Camille desmaia e acorda aos 16 anos. Ela reencontra seus pais, as amigas da escola e, sobretudo, Eric, pois é bem naquela época que eles se encontraram.

Claro, Camille quer mudar o curso de sua vida (não namorar Eric) para evitar a dor futura da separação. Mas o fato é que muitos amores são como a vida: eles valem a dor que seu desfecho triste nos dará eventualmente um dia.