quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Despedidas virtuais




Você já terminou um relacionamento pela internet ou por uma mensagem de celular?



NO SÁBADO passado, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, Xico Sá, Bebel Bertuccelli e eu comentamos os resultados de uma pesquisa, realizada pela Nokia, sobre a relação dos brasileiros com as ferramentas sociais da era digital.

Uma das perguntas da pesquisa dizia: "Você já terminou ou já terminaram um relacionamento com você via internet ou por mensagem de celular?".

Responderam positivamente 15% dos entrevistados. Já antes do debate, essa história de namoros terminados com uma mensagem virtual fez que eu fosse repetidamente consultado: o que achava desse horror tecnológico, hein?

Pois é, tendo a considerar esse tipo de despedida virtual com uma certa simpatia.

1) Em geral, aceitamos que, para muitos homens e mulheres, seja mais fácil encontrar alguém no mundo virtual do que no mundo real. Entendemos, por exemplo, que, na hora de seduzir, os tímidos, retraídos, acanhados ou inibidos soltem mais facilmente os dedos no teclado do que a palavra num encontro cara a cara.

Nota: seria injusto contrapor os que preferem o virtual aos que preferem o real como se os primeiros fossem mentirosos e, os segundos, honestos e sinceros. Virtual ou real, o encontro inicial é quase sempre um jogo em que se trata de convencer o outro de que somos alguma coisa que nem nós acreditamos ser. Quem prefere teclar talvez se esconda graças à distância, mas quem prefere falar ao vivo não abre sua alma: apenas desprende a lábia.

2) Se aceitamos que o virtual facilite a abordagem e as primeiras trocas, por que não deixaríamos que o virtual facilite também as despedidas? De fato, o virtual permite que os tímidos, os retraídos etc. declarem sua vontade de se separar, e isso sem medo de encarar torneios verbais que eles perderiam e que produziriam tentativas culpadas, penosas e infinitas de "reatar mais uma vez".

3) No começo de uma relação amorosa, o virtual talvez sirva para mentir melhor; no fim de um amor, ele pode ajudar a dizer a verdade, ou seja, a reconhecer, enfim, que uma relação está continuando apenas como mentira compartilhada.

4) Em média, a dificuldade em "encontrar alguém" não é maior do que a dificuldade em se separar quando uma relação não vale mais a pena.

5) Os tempos de solidão, durante a procura frustrada de um parceiro ou de uma parceira, são tão longos quanto os tempos de solidão de parceiros que vivem sem paixão, sem amizade e, às vezes, no rancor.

6) A insatisfação de quem procura um amor é esperançosa, enquanto a vida dos que não conseguem se separar é resignada.

7) Um SMS ou um e-mail de despedida podem surpreender quem os recebe, mas só como a revelação de algo que ele já sabia e, por alguma covardia, não confessava nem a si mesmo: ninguém termina virtualmente um amor que não esteja realmente morto.

8) Às vezes, sobretudo (mas não só) nas mulheres, a reação de quem recebe a mensagem de despedida é um pensamento delirante: o outro se separa de mim por SMS porque, se aparecesse na minha frente, ele teria que se render ao amor que ele ainda sente por mim (ele não sabe, mas eu sei que ele sente). Nesse caso, salve-se quem puder.

9) Toda separação é, no mínimo, a perda de um patrimônio comum de experiências e memórias. A dor dessa perda é frequentemente projetada no outro: digo que não posso ou não ouso me separar por e-mail ou SMS porque não quero machucar o outro, enquanto, de fato, é minha dor que quero evitar -com isso, eternizo o declínio da relação e o sofrimento do casal.

10) A convivência numa relação morta é um limbo confortável: para ambos, uma espécie de trégua do desejo. A separação apavora com a perspectiva de voltar a desejar. Antes de mandar um fatídico SMS, alguém hesita: "Vai ser difícil voltar à ativa com a minha idade" -e vai ser mesmo. Ou, então, pergunta: "E se eu ficar sozinho?"; resposta: "Mas você já está sozinho, há tempos".

Moral da história. É bom tentar tudo o que der para que uma relação vingue. Quando ela não vinga (mais), é bom ousar se separar. E deveríamos agradecer os parceiros que nos mandam um SMS lacônico e brutal, "Valeu, beijão e sorte". Pois, desprendendo-se, eles nos libertam e encurtam um processo no qual poderíamos perder anos da vida.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1111201030.htm

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Qual divisão do país?




O país me parece muito mais maduro do que mostraram os grupos raivosos das militâncias



SEGUNDA-FEIRA CHUVOSA, no Rio. Leio todos os jornais que encontro, tomando meu café da manhã na Pavelka, padaria merecidamente popular, no Leblon. Não sou o único cliente com mais de um cotidiano nas mãos.

Na mesa do meu lado, dois homens, mais ou menos da minha idade, comentam o resultado da eleição presidencial. Aparentemente, um dos dois votou no Serra, e o outro, na Dilma; mas é óbvio que nenhum dos dois é um fanático.

O tom geral da conversa é de uma certa preguiça, um "ainda bem que terminou", alimentado pela sensação (que os dois parecem compartilhar) de que não havia nada de realmente decisivo que opusesse os candidatos do segundo turno.

Enquanto escuto os dois amigos do Leblon, que comem croquetes de frango e carne, como eu, penso que o país não está dividido e não tem por que estar.

Para começar, contrariamente ao que foi repetido nas queixas de ambas as partes, a campanha não foi especialmente violenta nem sórdida. Tudo bem, voaram balões de água e rolos de fita crepe, e os militantes se chocaram aos berros, de vez em quando. Como é normal que aconteça, cada lado acusou o outro de baixaria e brutalidade. E cada lado zombou das "lamúrias" do outro. Por sorte (mas, na verdade, penso que não foi sorte: foi juízo), os (raros) enfrentamentos nunca tiveram consequências graves, e eu me lembro de uma época, na Europa, em que uma manifestação sem feridos era exceção.

Cá entre nós, a campanha de 2010 foi tranquila. E não acho que isso tenha acontecido só graças ao temperamento naturalmente conciliatório dos brasileiros.

Ainda no primeiro turno, li as propostas e os argumentos de Dilma, Serra e Marina. Pois bem, nunca fiquei com a impressão de que o país estivesse, como se dizia nos meus tempos, diante de uma "escolha de sociedade", tendo que decidir entre futuros radicalmente divergentes. Ao contrário, parece-me que o país teve a sorte de ser chamado a votar em candidatos que todos, atrás das oposições indispensáveis para que as candidaturas e as campanhas fizessem sentido, compartilhavam as mesmas preocupações básicas.

Nesta segunda, vários cotidianos apresentaram, mais uma vez, os planos de governo de Dilma e Serra, frente a frente, para uma última comparação. Reli com cuidado. Claro, há diferenças quanto às prioridades e aos meios e, de qualquer forma, resta se perguntar qual dos dois seria mais eficiente na hora do vamos ver, mas o sentimento inspirador é parecido. Ou seja, nada impediria que José Serra e Dilma estivessem aqui, na Pavelka, discutindo o que seria melhor para o país, entre amigos.

Afinal, eles pertencem a uma mesma geração, a dos que definiram suas aspirações políticas (de fato, suas vidas) na resistência à ditadura militar. Como não compartilhariam um fundo moral comum? Como poderia ser que ambos não desejassem, de um jeito ou de outro, uma sociedade livre e decente, na qual seja mais agradável conviver?

Quem assistiu aos debates presidenciais na televisão afirma que eles foram chatos; aliás, que toda a campanha foi chata. Concordo, mas não estranho: quando existe, entre candidatos, um fundo político comum, só resta debater temas cuja relevância é fictícia ou pretextuosa e, sobretudo, inventar jeitos de demonizar o adversário.

Essa última foi a função das militâncias, oficiais e oficiosas. Sobre esse tema sou suspeito: tenho ojeriza a todas as identidades coletivas. A história de minha geração de europeus e norte-americanos é que passamos por várias identidades coletivas e, no fim, ficamos fundamentalmente anarquistas (ou, numa vertente mais integrada, individualistas).

Peço vênia, mas, recebendo os inúmeros e-mails das militâncias, com desnudamentos extraordinários de última hora, revelações desvendando o grande complô da mídia, e, enfim, agora, com as maldições dos que perderam e os hosanas dos que ganharam, sinto-me um pouco como num jogo de futebol, em que a violência estúpida e cega das torcidas me impede de aproveitar meu domingo no estádio.

Mesmo assim, nesta segunda chuvosa, aqui no Rio de Janeiro, o país me parece infinitamente mais maduro do que suas militâncias -mais parecido com uma mesa da Pavelka com amigos discordando e discutindo do que com o espaço raivoso e vazio da gritaria on-line das últimas semanas.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0411201028.htm

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Cordialidades




Será que pode funcionar uma sociedade em que as razões íntimas do coração dominam a vida pública?



NUMA MANHÃ da semana passada, cancelei meus compromissos e fiquei em casa, esperando a visita do representante de uma companhia de telefonia móvel.

Quinze minutos depois da hora marcada, como ele não aparecia, quis confirmar sua vinda. O celular do representante deu caixa postal; deixei um recado e esperei. Nada aconteceu, e contatei a central de atendimento ao cliente, que tinha agendado a visita. Aprendi assim que o representante não compareceria porque, logo naquela manhã, a mãe dele morrera.

Lembrei-me do jovem Antoine Doinel, o herói de "Os Incompreendidos", de Truffaut, que mata aula e, na hora de justificar sua ausência, inventa que a mãe morreu. Quantas vezes, pensei, ao longo de minha escolaridade, minha avó morreu, renasceu e morreu de novo?

O humor era descabido, visto que o luto do representante tinha toda chance de ser real. Poucos dias depois, aliás, quando o encontrei, ofereci-lhe meus pêsames sinceros. Então, qual era a graça? De onde vinha a inspiração para zombar?

Pois é, eu estava um pouco irritado (e sarcástico) por não ter sido avisado de que o compromisso seria desmarcado. E não era só isso. Havia também algo exótico, para mim, no caráter íntimo, excessivamente emocional da justificação.

Na França, numa situação equivalente, eu seria informado, no máximo, de que o compromisso teria que ser remarcado por causa de um "luto de família". Sem mais.

Nos EUA (ainda mais em Nova York), nada seria dito do motivo pelo qual, "infelizmente", o compromisso não poderia ser honrado.

Em suma, a desculpa dada parecia ser um ótimo exemplo do grande peso que as razões íntimas do coração têm na nossa vida pública -ou seja, um exemplo de "cordialidade" brasileira, no sentido que Sérgio Buarque de Holanda inventa para essa palavra em "Raízes do Brasil" (Companhia das Letras, 1997; a editora está republicando a obra de Sérgio Buarque de Holanda e acaba de sair "Visão do Paraíso", que é meu Sérgio Buarque preferido).

Mas voltemos à cordialidade nacional. Deixemos de lado as consequências políticas, que são obviamente perniciosas (quando o privado invade o público, a vida política só pode ser contaminada por corrupção, nepotismo, procura por vantagens familiares e privilégios pessoais -acima do dever cívico). E consideremos apenas o dilema do compromisso e do luto repentino.

Na hora de desmarcar, é preferível explicitar as razões comovedoras, pedindo a participação afetiva do cliente (a minha, no caso) e assim, talvez, conquistando sua simpatia? Ou, então, discretamente, impedir que os afetos privados entrem no espaço público do comércio e do trabalho?

No primeiro caso, teremos um mundo, certamente, mais humano. No segundo, um mundo mais funcional, em que os afetos privados não atrapalhariam as engrenagens da vida pública.

Mas, fiquei me perguntando, será que um mundo menos cordial é necessariamente mais funcional? O mesmo dia me trouxe uma resposta, que cada um poderá avaliar.

Enquanto tomava meu café, uma hora antes do dito compromisso com o representante, alguém ligou para a minha casa. Cícera, minha governanta, atendeu e logo interrompeu a ligação por se tratar de um engano (isso eu ouvi ela dizer).

No fim da manhã, depois de ter presenciado as várias ligações (para o representante e para a companhia de telefonia) nas quais eu me queixava de não ter sido avisado, eis que Cícera me revelou que o telefonema que ela atendera no começo da manhã talvez tivesse sido uma tentativa de me avisar e desmarcar o compromisso. Perguntei: Como assim?

Pois bem, realmente, alguém dissera que o representante não poderia comparecer no horário previsto porque a mãe dele tinha morrido.

Mas, então, perguntei para Cícera, o que aconteceu? Será que, na hora, você não entendeu bem o recado? Não, respondeu Cícera, eu entendi, mas a pessoa que ligou falou de morte, e morte aqui eu não vou deixar entrar: "Morte aqui, só pode ser engano".

Sem dúvida, a cordialidade, nesse caso, atrapalhou. Mas como é que eu me queixaria? Vai que Cícera tenha razão. Afinal, talvez a morte, como o vampiro, para poder entrar, precise ser evocada ou convidada, de uma maneira ou de outra. Não é?

A todos, feliz dia das bruxas.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2810201027.htm

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Pensamentos concretos sobre o aborto



Em matéria de aborto, não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo

1) Às vezes, para descobrir o que pensamos, é útil pôr de lado nossos princípios. Pois, em matéria de costumes, os preceitos gerais servem sobretudo para evitar dilemas concretos nos quais nosso pensamento iria revelar-se muito mais complexo do que os princípios que bradamos.

2) Numa situação em que o aborto seja necessário para salvar a mãe, mesmo nos meses finais da gravidez, quase todos dirão que a vida da mãe deve ser preservada (aqui, a lei brasileira, como é normal que aconteça, sanciona o sentimento da maioria).

Agora, imagine que, cinco minutos depois do corte do cordão umbilical, apareça uma condição médica na qual a mãe morrerá sem falta se não receber o transplante de um órgão que só o recém-nascido pode lhe oferecer -sendo que o bebê perderá a vida ao ser privado desse órgão. Para qualquer um de nós, esse transplante mortífero seria uma abominação.

Imagine ainda que, no meio de um parto difícil, a mulher esteja inconsciente e o médico pergunte ao pai: "Devo salvar a mãe ou a criança?". O pai que decidisse salvar a criança (e sacrificar a mãe) seria, aos nossos olhos, acredito, um simples uxoricida.

Parece, em suma, que o direito do feto à vida está subordinado ao da mãe e é inferior ao da criança que já nasceu.

Mas consideremos o caso de alguém que matou uma mulher grávida e, abrindo seu corpo, esfaqueou o feto. No meu foro íntimo, ele é culpado de dois assassinatos.

Da mesma forma, o canalha que, voltando bêbado para casa, produziu o aborto de sua mulher a pontapés e agulha de tricotar enfiada à força no útero, no meu foro íntimo, é um assassino de fato e de direito, não "só" um espancador de mulher.
De repente, a vida do feto parece adquirir uma dignidade comparável à dos adultos.

3) Aceitamos que o aborto seja praticado para preservar a vida da mãe. Mas é curioso que "vida", nesse caso, signifique apenas simples sobrevivência. Viver é muito mais do que prolongar a existência, e o bem-estar não é só o bom funcionamento dos órgãos. Quer comprovar? Tente "consolar" um enlutado com a falsa sabedoria de que "saúde é o que interessa, o resto não tem pressa". Corrijo-me: não tente.

Se a vida não é só sobrevivência abstrata, o que pode significar aceitar o aborto para preservar a vida concreta da mãe?

4) A oposição não é entre os que privilegiam a vida do feto e os que privilegiam a escolha livre da mulher, mas entre abstrato e concreto.

Vamos privilegiar a vida do feto? Ótimo, mas que seja a vida concreta. Para exigir de uma jovem que ela leve a termo uma gravidez involuntária, é preciso oferecer-lhe a garantia de que ela poderá abandonar a criança com dignidade e de que a criança abandonada não ficará para sempre num orfanato. Ou seja, é preciso proteger a vida concreta do nascituro.

Vamos privilegiar a escolha? Nos anos 1970, na Suíça, havia imigrantes italianos que eram autorizados a trabalhar por períodos de 11 meses. Ao fim de cada período, eles tinham que voltar para seu país e lá ficar durante um mês. Era um artifício para que eles não se tornassem residentes e não pudessem levar consigo mulheres e filhos.

Um pouco para compensar a longa frustração, um pouco para que as mulheres, lá na Itália, tivessem de que se ocupar durante a longa ausência do marido, a regra era engravidar a esposa a cada volta para casa. Uma dessas esposas, num vilarejo da Campanha, tinha 30 anos e 11 filhos. Ela tentou abortar o 12º do jeito que dava. Perdeu a vida. Nessa história, onde está a escolha livre?

5) Uma menina de 13 anos transa pela primeira vez com um menino de 17. Ela ouviu dizer que é prudente usar camisinha. Ele explica que a camisinha foi proibida pelo papa. Passei um mês cruzando os dedos e funcionou: a menina não engravidou. É possível criminalizar o aborto e, ao mesmo tempo, desaprovar a contracepção?

6) No corredor de um pronto-socorro lotado, um médico (?) diz a uma enfermeira: "Não se preocupe. Ela abortou, deixe sangrar". Há os que querem criminalizar o aborto para punir a mulher: "Transou? Agora encare as consequências".

Alguém, a esta altura, perguntará: "Afinal, você é contra ou a favor da descriminalização do aborto?". Não sou nem a favor nem contra. Muito pelo contrário. Mas muito mesmo.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2110201023.htm

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A favor ou contra?



É o pior momento para argumentar, porque, numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou ser contra

NO QUE prometia ser um belo dia de primavera de meados dos anos 1970 em Paris, um jovem psicanalista trabalhava no plantão de uma enfermaria psiquiátrica.

Considerando a exiguidade do salário que ele recebia, seria mais correto dizer que ele estagiava. De qualquer forma, ele não estava ali pelo dinheiro, mas para enriquecer sua experiência dos caminhos pelos quais a gente enlouquece e sofre.

O jovem psicanalista estava sempre disposto a topar uma parada que pudesse lhe ensinar algo novo. Naquele dia, embora esta não fosse sua atribuição, ele, com um psiquiatra e dois enfermeiros, embarcou na ambulância que respondia a um chamado da polícia do bairro 13. O comissariado recebera o telefonema angustiadíssimo de um homem que acabava de encontrar sua mulher e sua filha de um jeito que não conseguia descrever, mas que, ele gritava, não era normal.

A ambulância chegou antes dos policiais. O marido, desculpando-se por não ter a coragem de voltar lá dentro, apontou na direção da porta do banheiro do apartamento.

O jovem psicanalista foi o primeiro a entrar e descobriu uma jovem mulher, deitada nua na banheira, cantando feliz enquanto brincava com seu bebê na água. A jovem mulher não pareceu perceber a chegada do estranho e o jovem psicanalista se deu conta de que o bebê era curiosamente inerte, rígido e branco: ele estava morto há tempo.

O jovem psicanalista nunca esqueceria o corpinho que ele apertou contra si, como se houvesse uma chance de esquentá-lo de volta para a vida.
Engravidar e dar à luz (apesar de ser o cotidiano da espécie) são experiências tão extremas que elas podem enlouquecer algumas mulheres, em geral temporariamente, logo após o parto.

A internação da mulher de nossa história durou pouco: ela foi declarada não imputável por razão de insanidade e recuperou a dita sanidade rapidamente.

Durante sua internação, soube-se que, dois anos antes, um irmão do bebê morto na banheira também tinha falecido, aos três meses, de morte súbita e inexplicada. A equipe do hospital se perguntou: não seria legítimo esterilizar compulsoriamente as mulheres que matassem seus bebês numa psicose desencadeada pelo parto? De fato, existe um risco estatístico de recidiva caso elas deem à luz outra vez.

A discussão não chegou a conclusão alguma; ficou suspensa entre o respeito pela esperança de uma mãe que quer tentar uma nova gravidez, a dificuldade de garantir o direito à vida dos nascituros e nossa incapacidade de prever, prevenir e intervir a tempo. Pouco importa, pois nisto eu acredito mesmo: todas as discussões que valem a pena são inconclusas.

Bastante tempo depois, o jovem psicanalista, que não trabalhava mais naquele hospital, recebeu um telefonema do psiquiatra que estivera com ele na ambulância. A jovem mulher da banheira pedira uma consulta na mesma enfermaria onde ela fora internada dois anos antes: ela estava grávida e queria saber se corria o risco de enlouquecer de novo e assassinar seu bebê no berço. Que ela perguntasse era um bom sinal, mas insuficiente para responder com segurança. O que fazer? Encorajá-la a abortar ou a apostar que nada aconteceria? Quem sabe sugerir que levasse a gravidez a termo e se engajasse a entregar o bebê, na hora do parto, para a assistência pública?

Não sei a resposta certa e é por isso que me lembrei dessa história.

Uma eleição é o pior momento para debater qualquer questão que seja. Numa eleição, as pessoas precisam ser a favor ou contra.

Ora, as pretensas discussões entre "a favor" e "contra" me inspiram o mesmo mal-estar que sinto quando assisto a uma cena de violência. Faz sentido porque, nessas discussões, ninguém argumenta, cada um apenas reafirma abstratamente sua identificação: em "eu sou a favor" e "eu sou contra", o que mais importa é reforçar o "eu". Com isso, inevitavelmente essas discussões menosprezam, atropelam e violentam a vida concreta de todos.

Depois desse preâmbulo, talvez eu consiga, numa coluna futura, escrever sobre a questão do aborto. Enquanto isso, eis uma leitura que recomendo a todos os que preferem pensar a gritar: "O Drama do Aborto: Em Busca de um Consenso", de dois médicos, A. Faúndes e J. Barzelatto (Komedi). Sobre o tema, talvez esse seja o escrito mais honesto, menos tendencioso e mais generoso que já li.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1410201024.htm

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"Eu Matei Minha Mãe"



Nos filhos, a vontade de ser autônomo, livre e rebelde convive com a de ser cuidado, amparado


AOS 17 anos, Xavier Dolan, canadense, escreveu o roteiro de "Eu Matei Minha Mãe". Logo, ele produziu, dirigiu e protagonizou o filme.

Apesar do sucesso em Cannes em 2009 (três prêmios na Quinzena de Realizadores) e na Mostra de Internacional de Cinema de São Paulo, "Eu Matei Minha Mãe" acaba de estrear em poucas salas e capitais.

Adolescentes e pais, apressem-se e não percam sob nenhum pretexto. Os pais mais corajosos deveriam assistir ao filme com os filhos, a experiência valerá algumas sessões de terapia de família e talvez resolverá conflitos cruentos e incompreensíveis numa saudável hilaridade coletiva.

O filme é prodigioso: não me lembro de ter lido ou visto um relato tão terno e, ao mesmo tempo, cruel (ou seja, tão autêntico) da mistura explosiva de amor-paixão e ódio letal entre um filho e sua mãe.

1) Hubert, o protagonista, filho de pais separados, vive com a mãe, enquanto o pai é pior que ausente: ele só aparece na hora de "disciplinar" o garoto. Mas que ninguém se sirva disso como pretexto para tirar o corpo fora: se Hubert vivesse com o pai, sua relação com o genitor seria tão ambivalente quanto o é com a mãe. Mesma coisa se os pais de Hubert não estivessem separados: a funcionalidade de uma família controla e esconde, mas não suprime a virulência dos afetos em jogo.

2) Alguns pais e adolescentes se reconhecerão no filme. Ótimo: eles se sentirão menos sozinhos. Com frequência, encontro uma espécie de vergonha da violência das emoções familiares e da incompreensão entre pais e filhos; muitos fazem de conta, encenam uma família leve e jocosa como uma propaganda de margarina e sofrem em silêncio, convencidos de que seu caso é extremo, patológico, se não único. Pois bem, não é só que as famílias margarina sejam chatas (isso, Tolstói já dizia), é que elas não existem.

3) Os pais e adolescentes que se reconhecerão na história de Hubert não precisam se desesperar. Lembrem-se: o filme é, em grande parte, autobiográfico, ou seja, aquela relação horrorosa entre mãe e filho não impediu que vingasse um jovem como Dolan, que tem sensibilidade e inteligência emocional para vender. Quanto à mãe de Dolan, aposto que, agora, com o filho ocupado em fazer filmes, ela deve estar namorando feliz e comprando casaquinhos, liquidações afora.

4) Alguns dirão: "Nossa família não tem nada a ver com isso, a gente se ama e se respeita, tranquilamente". Outros acrescentarão: "Nunca fui tão desrespeitoso com meus pais, nem em pensamento". Acredito. Mas repare que, em geral, as paixões parricidas da pré-adolescência e da adolescência são esquecidas na idade adulta. O filme de Dolan foi possível, justamente, porque foi escrito e filmado com Dolan ainda adolescente, antes da amnésia adulta.

5) A grande maioria dos adolescentes sente asco do corpo dos pais, acha nojento os pais comendo, bebendo, dormindo, beijando-se, respirando etc. Esse desgosto é bem-vindo: serve para encorajar o adolescente a procurar alhures seus objetos de desejo.

6) Nos pais, a vontade de criar filhos quase sempre convive com a vontade de continuar "aproveitando a vida" (como se criar filhos não fosse um jeito extraordinário de aproveitar a vida). Há pais que deveriam ouvir o que eles mesmos dizem quando um filho lhes pede um cachorro: "Você quer um bichinho que abane o rabo quando você entra em casa, mas você vai ter que levá-lo para fazer xixi, educá-lo, dar-lhe comida a cada dia". Uma menina, que acaba de ganhar um filhote muito desejado, pergunta-me: "Por que ele foge se estiver sem coleira? O que é, ele não gosta de mim?".

7) No filho, a vontade de ser autônomo, livre e rebelde convive com a de ser cuidado, guiado, amparado.

8) Também no filho, a admiração pelos pais nunca dispensa a sensação de que a vida deles é inautêntica, feia, fracassada -kitsch como um abajur de oncinha comparado a uma pintura de Jackson Pollock.

9) Talvez Hubert não fosse feito para ser filho; quase ninguém é.

10) Talvez a mãe de Hubert não fosse feita para ser mãe; quase ninguém é. Ela pode se perguntar, aliás, se não teria sido melhor não ter aquele filho. Na saída do cinema, por um instante, podemos pensar que sim, certamente, para a vida dela, teria sido melhor.

Mas será que teria sido mesmo?

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0710201024.htm

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Lobby cristão e casamento gay



As igrejas gostariam de uma sociedade em que seja crime tudo o que, para elas, é pecado
EM MAIO PASSADO, durante uma visita ao santuário de Fátima, o papa Bento 16 declarou que o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo estão entre os mais "insidiosos e perigosos desafios ao bem comum".

Atualmente, quase todas as igrejas cristãs (curiosamente alinhadas com as posições do papa) negociam seu apoio aos candidatos à presidência cobrando posições contra a descriminalização do aborto e contra o casamento gay.

Em 2000, segundo o censo, havia, no Brasil, 125 milhões de católicos, 26 milhões de evangélicos e 12 milhões de sem religião. É lógico que os principais candidatos inventem jeitos de ficar, quanto mais possível, em cima do muro -tentando satisfazer o lobby cristão, mas sem alienar totalmente as simpatias de laicos, agnósticos e livres pensadores (minoritários, mas bastante presentes entre os formadores de opinião).

Adoraria que as campanhas eleitorais fossem mais corajosas, menos preocupadas em não contrariar quem pensa diferente do candidato. Adoraria também que soubéssemos votar sem exigir que nosso candidato pense exatamente como nós. Mas não é esse meu tema de hoje.

Voltemos à declaração do papa, que junta aborto e casamento gay numa mesma condenação e, claro, tenta pressionar os poderes públicos, mundo afora. Para ele, o que é pecado para a igreja deve ser também crime para o Estado.

No fundo, com poucas exceções, as igrejas almejam um Estado confessional, ou seja, querem que o Estado seja regido por leis conformes às normas da religião que elas professam. De novo, as igrejas gostariam de uma sociedade em que seja crime tudo o que, para elas, é pecado: o sonho escondido de qualquer Roma é Teerã ou a Cabul do Talibã.

Há práticas sexuais que você julga escandalosas? Está difícil reprimir sua própria conduta? Nenhum problema, a polícia dos costumes vigiará para que ninguém se dedique ao sexo oral, ao sexo anal ou a transar com camisinha.

Para se defender contra esse pesadelo (que, ele sim, é um "insidioso e perigoso desafio ao bem comum"), em princípio, o Estado laico evita conceber e promulgar leis só porque elas satisfariam os preceitos de uma confissão qualquer. As leis do Estado laico tentam valer por sua racionalidade própria, sem a ajuda de deus algum e de igreja alguma.

Por exemplo, é proibido roubar e matar, mas essa proibição não é justificada pelo fato de que essas condutas são estigmatizadas nas tábuas dos dez mandamentos bíblicos. Para proibir furtos e assassinatos, não é preciso recorrer a Deus, basta notar que esses atos limitam brutalmente a liberdade do outro (o assaltado ou o assassinado).

Agora, imaginemos que você se oponha ao casamento gay invocando a santidade do matrimônio. Se você acha que o casamento é um sacramento divino que só pode ser selado entre um homem e uma mulher, você tem sorte, pois vive numa democracia laica e sua liberdade é total: você poderá não se casar nunca com uma pessoa do mesmo sexo. Ou seja, você poderá manter quanto quiser a santidade e a sacramentalidade de SEU casamento.

Acha pouca coisa? Pense bem: você poderia ser cidadão de uma teocracia gay, na qual o Estado lhe imporia de casar com alguém do mesmo sexo.

Argumento bizarro? Nem tanto: quem ambiciona impor sua moral privada como legislação pública deveria sempre pensar seriamente na hipótese de a legislação pública ser moldada por uma outra moral privada, diferente da dele.

Parêntese: Se você acha que essa história de casamento gay é sem relevância, visto que a união estável já é permitida etc., leia "Histórias de Amor num País sem Lei. A Homoafetividade Vista pelos Tribunais - Casos Reais", de Sylvia Amaral (editora Scortecci).

PS. Sobre a dobradinha sugerida pela declaração do papa: talvez, para o pontífice, aborto e casamento gay sejam unidos na mesma condenação por serem ambos consequências da fraqueza da carne (que, obstinadamente, quer gozar sem se reproduzir).

Mas, numa perspectiva laica, a questão do aborto e de sua descriminalização não tem como ser resolvida pelas mesmas considerações que acabo de fazer para o casamento gay. Ou seja, não há como dizer: se você for contra, não faça, mas deixe abortar quem for a favor. Vou voltar ao assunto, apresentando alguns dilemas que talvez nos ajudem a pensar.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Felicidade nas telas



A necessidade de mostrar ao mundo um semblante feliz é uma das grandes fontes de infelicidade

UMA AMIGA inventou um jeito de curtir sua fossa. Depois de um dia de trabalho, de volta em casa, ela se enfia na cama, abre seu laptop e entra no Facebook.

Ela não procura amigos e conhecidos para aliviar o clima solitário e deprê do fim do dia. Essa talvez tenha sido a intenção nas primeiras vezes, mas, hoje, experiência feita, ela entra no Facebook, à noite, como disse, para curtir sua fossa. De que forma?

Acontece que, visitando as páginas de amigos e conhecidos, ela descobre que todos estão muito bem: namorando (finalmente), prestes a se casar, renovando o apartamento que sempre desejaram remodelar, comprando a casa de praia que tanto queriam, conseguindo a bolsa para passar dois anos no exterior, sendo promovidos no emprego ou encontrando um novo "job" fantasticamente interessante. E todos vivem essas bem-aventuranças circundados de amigos maravilhosos, afetuosos, alegres, festeiros e sempre presentes, como aparece nas fotografias postadas.

Minha amiga, em suma, sente-se excluída da felicidade geral da nação facebookiana: só ela não foi promovida, não encontrou um namorado fabuloso, não mudou de casa, não ganhou nesta rodada da loto. É mesmo um bom jeito de aprofundar e curtir a fossa: a sensação de um privilégio negativo, pelo qual nós seríamos os únicos a sofrer, enquanto o resto do mundo se diverte.

Numa dessas noites de fossa e curtição, minha amiga, ao voltar para sua própria página no Facebook, deu-se conta de que a página não era diferente das outras. Ou seja, quem a visitasse acharia que minha amiga estava numa época de grandes realizações e contentamentos. Ela comentou: "As fotos das minhas férias, por exemplo, esbanjam alegria; elas não passaram por nenhum photoshop, acontece que são três ou quatro fotos "felizes" entre as mais de 500 que eu tirei".

Logo nestes dias, acabei de ler "Perché Siamo Infelici" (porque somos infelizes, Einaudi 2010, organizado por P. Crepet). São seis textos de psiquiatras e psicanalistas (e um de um geneticista), tentando nos explicar "por que somos infelizes" e, em muitos casos, por que não deveríamos nos queixar disso.

Por exemplo, a infelicidade é uma das motivações essenciais; sem ela nos empurrando, provavelmente, ficaríamos parados no tempo, no espaço e na vida. Ou ainda, a infelicidade é indissociável da razão e da memória, pois a razão nos repete que a significação de nossa existência só pode ser ilusória e a memória não para de fazer comparações desvantajosas entre o que alcançamos e o que desejávamos inicialmente.

Não faltam no livro trivialidades moralistas sobre o caráter insaciável de nosso desejo ou evocações saudosistas do sossego de algum passado rural. Em matéria de infelicidade, é sempre fácil (e um pouco tolo) culpar a sociedade de consumo e sua propaganda, que viveriam às custas de nossa insatisfação.

Anotei na margem: mas quem disse que a infelicidade é a mesma coisa que a insatisfação? E se a infelicidade fosse, ao contrário, o efeito de uma saciedade muito grande, capaz de estancar nosso desejo? Que tal se a infelicidade não tivesse nada a ver com a ansiedade das buscas frustradas, mas fosse uma espécie de preguiça do desejo, mais parecida com o tédio de viver do que com a falta de gratificação? Em suma, você é infeliz porque ainda não conseguiu tudo o que você queria, ou porque parou de querer, e isso torna a vida muito chata?

Seja como for, lendo o livro e me lembrando da fossa de minha amiga no Facebook, ocorreu-me que talvez uma das fontes da infelicidade seja a necessidade de parecermos felizes. Por que precisaríamos mostrar ao mundo uma cara (ou uma careta) de felicidade?

1) A felicidade dá status, como a riqueza. Por isso, os sinais aparentes de felicidade podem ser mais relevantes do que a íntima sensação de bem-estar;

2) além disso, somos cronicamente dependentes do olhar dos outros. Consequência: para ter certeza de que sou feliz, preciso constatar que os outros enxergam minha felicidade. Nada grave, mas isso leva a algo mais chato: a prova de minha felicidade é a inveja dos outros.

O resultado dessa necessidade de parecermos felizes é que a felicidade é este paradoxo: uma grande impostura da qual receamos não fazer parte e que, por isso mesmo, não conseguimos denunciar.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O nosso mal-estar amoroso




Faltam homens ou mulheres? E quem está querendo só pegação: os homens ou as mulheres?
NA SEMANA PASSADA, graças ao IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, migre.me/1hb92), aprendemos que, em média, no país, há 105 homens solteiros por cada cem mulheres com o mesmo estado civil.

Claro, em cada Estado a situação é diferente. No Distrito Federal há mais solteiras do que solteiros, no Rio de Janeiro dá empate e Santa Catarina é o paraíso das mulheres (122 solteiros por cada cem solteiras). De qualquer forma, no Brasil como um todo, é impossível afirmar que "faltam homens no mercado".

A Folha, na última quinta (9/9), entrevistou algumas mulheres; uma delas comentou: pouco importa que haja mais homens do que mulheres, o problema é que os homens, depois de um encontro ou dois, dão "um chá de sumiço". Ou seja, pode haver muitos homens, mas eles só querem pegação.

No domingo passado, um leitor escreveu à ombudsman do jornal para protestar: segundo ele, quem não quer nada sério são as mulheres, que são "fúteis e fáceis", salvo quando o homem começa "a conversar sobre algo sério", aí ELAS dão o tal chá de sumiço.

Em suma, faltam homens ou mulheres? E, sobretudo, números à parte, quem está querendo só pegação: os homens ou as mulheres?

Acredito na queixa dos dois gêneros. Resta entender como é possível que a maioria tanto dos homens quanto das mulheres sonhe com relacionamentos fixos e duradouros, mas encontre quase sempre parceiros que querem apenas brincar por uma noite ou duas. Se homens e mulheres, em sua maioria, querem namorar firme, como é que eles não se encontram?

Haverá alguém (sempre há) para culpar nosso "lastimável" hedonismo -assim: todos esperamos "naturalmente" encontrar uma alma gêmea, mas a carne é fraca.

Homens e mulheres, desistimos da laboriosa construção de afetos nobres e duradouros para satisfazer nossa "vergonhosa" sede de prazeres imediatos.

Os ditos prazeres efêmeros nos frustram, e voltamos de nossas baladas (orgiásticas) lamentando a falta de afetos profundos e eternos.

Obviamente, esses afetos não podem vingar se passamos nosso tempo nas baladas, mas os homens preferem dizer que é por culpa das mulheres e as mulheres, que é por culpa dos homens: são sempre os outros que só querem pegação.

De fato, não acho que sejamos especialmente hedonistas. E o hedonismo não é necessário para entender o que acontece hoje entre homens e mulheres. Tomemos o exemplo de um jovem com quem conversei recentemente:

1) Com toda sinceridade, ele afirma procurar uma mulher com quem casar-se e constituir uma família.

2) Quando encontra uma mulher que ele preze, o jovem sofre os piores tormentos da dúvida: será que ela gostou de mim? Por que não liga, se ontem a gente se beijou? Por que ela leva tanto tempo para responder uma mensagem?

Essa mistura de espera frustrada com desilusão é, em muitos casos, a razão de seu pouco sucesso na procura de um amor, pois, diante das mulheres que lhe importam, ele ocupa, inevitavelmente, a posição humorística da insegurança insaciável: "Tudo bem, você gosta de mim, mas gosta quanto, exatamente?" Se uma mulher se afasta dele por causa desse comportamento, ele pensa que a mulher só queria pegação.

3) Quando, apesar dessa dificuldade, ele começa um namoro com uma mulher de quem ele gostou e que também gostou dele, muito rapidamente ele "descobre" que, de fato, essa nova companheira não é bem a mulher que ele queria.

4) Nessa altura, o jovem interrompe a relação, que nem teve tempo de se transformar num namoro, e a mulher interpreta a ruptura como prova de que ele só queria pegação.

Esse padrão de comportamento amoroso pode ser masculino ou feminino. Ele é típico da cultura urbana moderna, em que cada um precisa, desesperadamente, do apreço e do amor dos outros, mas, ao mesmo tempo, não quer se entregar para esses outros cujo amor ele implora.

Em suma, "ficamos" e "pegamos", mas sempre lamentando os amores assim perdidos, ou seja, procuramos e testamos ansiosamente o desejo dos outros por nós, mas sem lhes dar uma chance de pegar (e prender) nossa mão. Esse é o roteiro padrão de nosso mal-estar amoroso.

Para quem gosta de diagnóstico, é um roteiro que tem mais a ver com uma histeria sofrida do que com o hedonismo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Leia com atenção - ou não




Novas pesquisas valorizam a divagação e o devaneio, ambos hoje considerados indispensáveis para pensar

A SEXTA temporada de "House" está acabando, no Universal Channel, e a sétima é iminente. Quem segue a série sabe que, frequentemente, o achado decisivo do médico House acontece, digamos, por distração.
Durante uma boa metade de cada episódio, House testa todo tipo de hipótese diagnóstica, enquanto o paciente sobrevive a exames e tratamentos inúteis.

Mesmo durante essa primeira fase, House não avança graças a sei lá qual capacidade focada de examinar e interpretar os sintomas do paciente. Ao contrário, ele funciona direito só numa espécie de jogo em que os membros de sua equipe, meio que no chute, levantam hipóteses que ele derruba.

Essa componente lúdica e divagadora de seu funcionamento aparece em outras circunstâncias: o paciente está morrendo e House (para pensar melhor ou para não pensar?) toca guitarra elétrica, ironiza a vida sentimental de um amigo, brinca com uma bola.

Reconhecemos facilmente a hora do diagnóstico final e correto porque 1) faltam 15 minutos ao fim do episódio, 2) repetidamente, esse diagnóstico surge quando House se perde num pensamento que não tem nada a ver com o paciente e sua doença.

Imagine, por exemplo, que o paciente esteja morrendo ou prestes a ser operado por causa de um diagnóstico errado. House entra num bar para assistir a um jogo de futebol. Vergonha: ele deveria estar preocupado com seu paciente, não é? Mas eis que um zagueiro faz um gol contra, e a distração desse momento-futebol permite que House se lembre de que, às vezes, o organismo também faz gol contra: heureca, doença autoimune!

Para os psicanalistas, essa situação é familiar. Freud recomendava que os pacientes fossem escutados com "atenção flutuante". Ele não sugeria que, durante a sessão, os analistas lessem o jornal ou cuidassem de seus e-mails.

Mas acontece que interpretar significa juntar dois pensamentos que, à primeira vista, não parecem ter muito a ver um com o outro. Para que isso aconteça, é preciso manter aberta a porta da divagação, de modo que pensamentos estrangeiros ao contexto não sejam barrados por princípio.

O diagnóstico médico e a escuta psicanalítica são processos que exigem um exercício criativo, se não inventivo. Neles, pode ser bem-vindo, AO MESMO TEMPO, divagar (ou mesmo devanear) e seguir os caminhos focados do pensamento que executa uma tarefa.

Nos anos 60, o metilfenidato (um estimulante) começou a ser usado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em crianças em idade escolar. De 60 a 90, o diagnóstico de TDAH aumentou brutalmente: nos EUA, por exemplo, de 12 crianças em cada mil nos anos 70, chegou-se a 34 em cada mil nos anos 90.

Seja qual for a realidade neurológica e psicológica do TDAH e seja qual for a eficácia do seu tratamento com metilfenidato, é difícil não constatar que a epidemia tem também uma explicação cultural.

Sua história começa logo nos anos 60, uma época em que divagar (perder-se no pensamento e pelo mundo) era um valor positivo da contracultura. Desde então, voltamos a prezar o olhar focado do predador. O ápice dessa reação (e do diagnóstico de TDAH) foi a religião do sucesso dos anos 90.

Ora, começam a aparecer pesquisas que revalorizam a divagação e o devaneio. "Descobrimos" o que já sabíamos: há uma desatenção sem a qual não se consegue pensar nada que valha a pena.

Usando apenas o dito "controle executivo" focado, conseguiremos cumprir tarefas adequadamente (mesmo assim, à condição que não haja imprevistos), mas não inventaremos nada. A própria invenção científica (não só a criação artística) pede um uso simultâneo de controle executivo e divagação.

Duas pesquisas, para quem quiser ler (com atenção, claro): www.migre.me/1aZZu e www.migre.me/1b57h.

A segunda documenta (por ressonância magnética funcional) a cooperação possível de pensamento focado e devaneio (que ainda são, por muitos, considerados como atividades exclusivas uma da outra).

À luz dessas pesquisas, seria bom reavaliar nossa hipervalorização da atenção focada e, sobretudo, nossa medicalização sistemática de crianças que, às vezes, com toda razão, gostam de sonhar de olhos abertos.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Esterilidade das eleições


Campanha eleitoral significa descobrir o que pensam os eleitores e lhes propor o que eles desejam


NUMA DEMOCRACIA ideal, que talvez tenha existido um dia em algum lugar da terra, os candidatos (a qualquer cargo que seja) seriam todos cidadãos comuns. Eles deixariam suas ocupações, temporariamente e a contragosto, aceitando sacrificar alguns anos de vida para defender sua profissão ou sua categoria e para promover projetos nos quais eles acreditam.

Esses cidadãos, impelidos a se candidatar por quem compartilha suas aspirações ou seus interesses, uma vez eleitos, preencheriam seu mandato sabendo que logo voltariam para sua vida anterior, aliás, não desejando nada tão ardentemente quanto essa volta à sua vida anterior.

Na contramão desse ideal, cedo na história da democracia moderna, a política se tornou uma profissão, com esta consequência banal: para o político, ser eleito e reeleito se tornou desejável em si.

De uma situação em que alguém era escolhido por seus pares e por eles era empurrado a representá-los, passamos a uma situação em que alguém quer ser eleito e deve, portanto, seduzir os eleitores.

Para seduzir, os candidatos poderiam elaborar propostas e projetos que cairiam ou não no agrado dos outros cidadãos. Mas esse caminho é, sobretudo, pouco previsível: será que eles gostarão?

Mais seguro é recorrer a um marqueteiro, sondar os cidadãos, descobrir o que eles pensam e propor ao eleitorado logo o que a sua maioria deseja.

Fora as poucas exceções de alguns candidatos outsiders, que se apresentam sem máscara, é difícil saber o que um candidato pensa. Em geral, ele nos apresenta, digamos assim, sua máxima aproximação possível do que, segundo as pesquisas de mercado, é a opinião dos eleitores.

Ou seja, o que escutamos de um candidato é o que ele pode dizer sem contradizer a expectativa da maioria. Evidentemente, essa necessidade de oferecer ao eleitor o que ele deseja ouvir pode ser limitada por vários escrúpulos: o candidato evitará deturpar totalmente a sua história ou contradizer as suas convicções fundamentais.

Mesmo assim, quando o candidato discorda radicalmente do que pensa a maioria dos cidadãos, ele se expressa por omissão, cala-se, suspende seu juízo para não afastar os eleitores. O mesmo acontece quando se trata de questões em que é difícil determinar o que os eleitores gostariam de ouvir.

Minha simpatia vai, espontaneamente, para os políticos que não parecem se importar com o que pensam os eleitores. E meu discurso político ideal é a breve fala de Churchill, aceitando o cargo de primeiro ministro, em 13 de maio 1940: "Não tenho nada para lhes propor, se não sangue, esforço, lágrimas e suor".

Claro, não era um discurso para ser eleito; além disso, era o começo da Segunda Guerra Mundial, e, naquela situação, não era preciso seduzir: o consenso era quase garantido. Mesmo assim, a grandeza da alocução, a razão pela qual ela ainda é lembrada, está no fato de que Churchill tratou os cidadãos como gente grande.

Ora, nas campanhas eleitorais atuais (não só nesta e não só no aqui no Brasil), é fácil ter a impressão de que somos tratados como idiotas. Não é surpreendente, pois, muitas vezes, que o que os candidatos propõem à nossa apreciação é uma espécie de mínimo denominador comum de nossa própria "inteligência".

A experiência de escutar a propaganda eleitoral é consternadora, não pela suposta "miséria" do discurso dos candidatos, mas porque a propaganda tenta nos seduzir com a miséria de nosso próprio pensamento em seu mínimo denominador comum, que é próximo da idiotice.

No casos piores (mais raros, por sorte), os candidatos competem pelos cantos mais escuros de nossa estupidez coletiva e individual. É o truque do político fascista: ele me permite votar no que eu tinha vergonha de pensar.

De qualquer forma, no jogo eleitoral moderno, ninguém cresce: nem os candidatos (que não precisam pensar nada de novo), nem nós eleitores (que apenas ouvimos o que já estava em nossa "inteligência" mínima comum).

Em suma, o que deveria ser o grande momento da vida democrática dá prova de uma extraordinária esterilidade: nenhuma invenção, mas, ao contrário, uma condenação de todos, eleitores e candidatos, à mediocridade.

Como diz o Tiririca, mestre em nos seduzir com nossa própria estultice, pior que tá não fica.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Para que serve a psicanálise?


A quem luta para se manter adulto, o paternalismo dá calafrios, ou mesmo vontade de sair atirando


A ASSOCIAÇÃO Internacional de Psicanálise (IPA) foi fundada em 1910. Presente em 33 países, com mais de 12 mil membros, ela festeja seu centésimo aniversário. Aos colegas da IPA (embora eu tenha me formado numa de suas dissidências), meus sinceros parabéns.

A festa é uma boa ocasião para perguntar: para que serve, hoje, a psicanálise? A campanha eleitoral em curso me ajuda a escolher uma resposta.

Repetidamente, o presidente Lula e Dilma Rousseff se apresentam como pai e mãe dos brasileiros. Em 17/8, Lula declarou: "A palavra não é governar, a palavra é cuidar: quero ganhar as eleições para cuidar do meu povo, como a mãe cuida de seu filho".

No dia seguinte, Marina Silva comentou: "Querem infantilizar o Brasil com essa história de pai e mãe". Várias vozes (por exemplo, o editorial da Folha de 19/8) manifestaram um mal-estar; Gilberto Dimenstein resumiu perfeitamente: "Trazer a lógica familiar para a política significa colocar a criança recebendo a proteção de um pai em vez de um governante atendendo a um cidadão que paga imposto".

Entendo que um presidente ou uma candidata se apresentem como pai ou mãe do povo. Embora haja precedentes péssimos (de Vargas a Stálin, ao ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-il), estou mais que disposto a acreditar que Lula e Dilma se expressem dessa forma com as melhores intenções.

O que me choca é que eleitores possam ser seduzidos pela ideia de serem cuidados como crianças e preferi-la à de serem governados como adultos.

Se o governo for paternal ou maternal, o que o cidadão espera nunca será exigível, mas sempre outorgado como um presente concedido por generosidade amorosa; o vínculo entre cidadão e governo se parecerá com o tragipastelão afetivo da vida de família: dívidas impagáveis, culpas, ciúme passional etc. Alguém gosta disso?

Numa psicanálise, descobre-se que a vida adulta é sempre menos adulta do que parece: ela é pilotada por restos e rastos da infância. Ao longo da cura, espera-se que essa descoberta nos liberte e nos permita, por exemplo, renunciar à tutela dos pais e ao prazer (duvidoso) de encarnarmos para sempre a criança "maravilhosa" com a qual eles sonhavam e talvez ainda sonhem.

Tornar-se adulto (por uma psicanálise ou não) é um processo árduo e sempre inacabado. Por isso mesmo, a quem luta para se manter adulto, qualquer paternalismo dá calafrios -ou vontade de sair atirando, como Roberto Zucco.

Roberto Succo (com "s"), veneziano, em 1981, matou a mãe e o pai; logo, fugiu do manicômio onde fora internado e, durante anos, matou, estuprou e sequestrou pela Europa afora. Em 1989, Bernard-Marie Koltès inspirou-se na história de Succo para escrever "Roberto Zucco", peça admiravelmente encenada, hoje, em São Paulo, na praça Roosevelt, pelos Satyros.

Na peça, Zucco perpetra realmente aqueles crimes que todos perpetramos simbolicamente, para nos tornarmos adultos: "matar" o pai, a mãe e, dentro de nós, a criança que devemos deixar de ser.

O diretor da peça, Rodolfo García Vázquez, disse que Zucco é um Hamlet moderno. Claro, para Hamlet, como para Zucco, o parricídio é uma espécie de provação no caminho que leva à "maioridade". Além disso, pai, padrasto e mãe de Hamlet eram reis, e o pai de Succo era policial. Para ambos, o Estado se confundia com a família.

Se o Estado é um pai ou uma mãe para mim, eu não tenho deveres, só dívidas amorosas, e, se esse Estado me desrespeita, é que ele me rejeita, que ele trai meu amor. Por esse caminho, amado ou traído pelo Estado, nunca me considerarei como um entre outros (o que é uma condição básica da vida em sociedade), mas sempre como a menina dos olhos do poder.

Agora, se eu me sentir traído, não me contentarei em mudar meu voto, mas procurarei vingança no corpo a corpo, quem sabe arma na mão; pois essa é a linguagem da paixão e de suas decepções. O paternalismo, em suma, semeia violência.

Enfim, se é verdade que muitos prefeririam ser objeto de cuidados maternos ou paternos a serem "friamente" governados, pois bem, nesse caso, a psicanálise ainda tem várias boas décadas de utilidade pública entre nós.

É uma boa notícia para a psicanálise. Não é uma boa notícia para o mundo fora dos consultórios.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O domínio do trivial




Hoje, cada vez mais, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos as mesmas trivialidades

AOS VINTE anos, leitor de Gramsci, eu entendia que o poder das classes dominantes se exercia de duas maneiras.

Havia a exploração econômica, com repressão eventualmente brutal das reivindicações dos trabalhadores (sem contar as guerras imperialistas).
 E havia a outra face do domínio: o controle das idéias e das mentes, oculto e insidioso. Esse era o terreno de luta dos intelectuais: podíamos colaborar com a classe dominante ou, então, fazer o quê? Sermos porta-vozes de uma nova classe?

Não éramos totalmente ingênuos. Reconhecíamos os horrores do dito "socialismo real" e percebíamos que ele substituíra uma classe dominante por outra. A ditadura do proletariado não tinha por que ser melhor do que a ditadura da burguesia; talvez, aliás, ela fosse pior. Nosso sonho era outro: uma sociedade sem classes.
Pois bem, um espectador apressado poderia pensar que, enfim, realizamos a famosa sociedade sem classes -ao menos em parte.

Claro, desigualdades e exploração continuam; no entanto, é difícil distinguir a cultura da classe dominante das outras que lhe seriam opostas, porque, no fundo, mesmo quando parecemos discordar, pensamos todos igual.

Acabo de ler "L'Egemonia Sottoculturale", de Massimiliano Panarari (Einaudi, 2010). O autor, um intelectual de minha geração, faz uma crítica hilária da "subcultura da fofoca", que seria, segundo ele, a cultura dominante na Itália de hoje. Infelizmente, é difícil entender os exemplos no texto de Panarari sem ter sido espectador da televisão aberta italiana durante um bom tempo (e para isso é necessário dar prova de um certo heroismo). Mas o que Panarari diz não se aplica só ao caso da Itália.

Mundo afora, é cada vez mais difícil dizer algo que não faça parte de um senso comum que é feito de referências, ideias e, sobretudo, maneiras de pensar compartilhadas graças ao uso generalizado da mesma mídia.

Nesse quadro, pensar criticamente é árduo. Quem deseja convencer seus leitores ou espectadores de que ele pensa fora da trivialidade dominante tende a parecer-se com aquelas crianças que, de vez em quando, gritam "xixi e cocô" e, com isso, gabam-se de ter quebrado um grande tabú.

Nesse sentido, nos EUA, são cada vez mais populares radialistas, apresentadores e jornalistas supostamente "conservadores", que devem seu sucesso a uma vulgaridade e a uma truculência que parecem satisfazer a espera de todos por um pensamento novo, diferente. Um exemplo: um dos aspectos do senso comum é um respeito forçado das regras do politicamente correto. Diante disso, os ditos comentadores não inventam visões mais complexas e produtivas da diversidade social, mas, para criar a ilusão de que eles pensariam fora do senso comum, permitem-se, de vez em quando, dizer ou gritar "negro" ou "viado". Sua "ousadia" é tão inovadora quanto a das crianças do "xixi e cocô".

No Brasil, o debate eleitoral em curso poderia também servir para mostrar que nosso senso comum compartilhado é, no caso, uma espécie de razoabilidade, resignada a evitar temas excessivamente conflitivos (o aborto, por exemplo) e a aceitar alianças duvidosas e supostamente "necessárias".

Como chegamos a essa perda de contraste na vida pública e cultural?

Segundo Panarari, a burguesia ganhou a luta pela egemonia jogando a carta do prazer: "Na década do hedonismo reaganiano, todos se convenceram, de repente, que estava na hora de divertir-se. Palavra de ordem: "Queremos folgar" e, por favor, evite-se empestar a existência, de qualquer maneira que seja, com política, cultura, economia e todas essas "coisas" assimiláveis a preocupações e aborrecimentos". Conclusão: a subcultura hedonista da fofoca é o novo ópio do povo.

Concordo (um pouco) com essa visão apocalíptica da cultura dominante. Mas discordo da ideia de que a subcultura da fofoca seja a invenção vitoriosa de uma classe específica.

Ela é, ao meu ver, uma consequência dos nossos tempos, pela razão que segue. Quando a midia é de massa, não há mais diferença entre manipuladores e manipulados, pois os próprios manipuladores, expostos à mídia, são manipulados por suas produções. Ou seja, progressivamente, todo o mundo pensa as mesmas trivialidades.

É o feitiço que enfeitiça o feiticeiro.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"A Origem"



Vagamos pelo mundo esbarrando em nossas projeções: assombrações do passado e do desejo



SABIA PELA imprensa que, no novo filme de Christopher Nolan, "A Origem", os heróis (ou vilões, que sejam) invadem o mundo onírico de alguém, transformam, ou mesmo fabricam seu sonho e, com isso, manipulam o próprio sonhador.

Confesso que fui ao cinema com um certo preconceito. A pintura (Salvador Dalí, De Chirico), a literatura (Breton) e o cinema (de Fritz Lang a Hitchcock) inventaram uma estética do sonho que é sedutora, mas não tem muito a ver com nossa experiência de sonhadores.

Com isso, eu antevia um filme pouco plausível, laborioso e afastado do meu cotidiano. Surpresa total: o mundo do filme de Nolan me pareceu familiar e absolutamente realista. Só que não foi pela representação do mundo dos sonhos. Ao contrário, "A Origem", para mim, é fiel à realidade na qual vivemos quando NÃO estamos sonhando.

Salvo exceções, exatamente como os personagens de Nolan quando sonham, vagamos pelo mundo aparentemente acordados, mas suficientemente sedados para que possamos esbarrar apenas em nossas próprias projeções: fantasmas do passado, alucinações do desejo e defesas -espécie de seguranças armados que deveriam nos proteger (vai saber de quê) e acabam se virando sempre contra nós mesmos.

Assisti ao filme no cinema Leblon, no Rio de Janeiro, no sábado à tarde. Depois da sessão, voltei a pé até o Arpoador.

Ao longo da Vieira Souto, caminhei na fantasmagoria de um Carnaval do passado, que começara, justamente, com uma saída da Banda de Ipanema e em que tudo dera errado. Os fantasmas riam de mim: se eu os tivesse enxergado à época, teria previsto um fracasso amoroso que, dez anos depois, foi doloroso sobretudo por ser tardio.

No Arpoador, apesar do frio, havia um menino brincando nas ondas; achei que ele corresse perigo, levado pela ressaca. Um jovem avançou no mar para trazê-lo de volta para a praia.

Nos anos 80, três vezes por ano, eu ia de Porto Alegre ao Rio para acompanhar meu filho até o avião que o levaria de volta para a França, onde ele morava com a mãe. Era o fim de suas férias e o momento em que a gente ia se separar, de novo. Chegávamos ao Galeão ao meio-dia e corríamos de táxi até Ipanema para mergulharmos no mar antes de ele embarcar. Pois é, no sábado passado, cruzei o olhar do menino que voltava das ondas: era um olhar de crítica e decepção por eu deixá-lo viajar para longe de mim ou por eu ter viajado para longe dele -era o olhar de meu filho.

Do Leblon ao Arpoador, passei por vários níveis do videogame de minha vida e, embora houvesse gente nas ruas, no fundo, não encontrei ninguém de verdade, só assombrações.

Há mais uma razão pela qual o mundo de "A Origem" me pareceu curiosamente familiar. Disse que, no filme, os heróis acompanham alguém num passeio pelo seu mundo psíquico e, nessa andança, eles extraem e inserem pensamentos. É muito diferente do trabalho de um psicoterapeuta ou psicanalista?

Sem revelar nada que atrapalhe o prazer dos futuros espectadores:

1) Para sair um pouco da assombração, é bom matar alguns fantasmas (o de um antigo amor que nos pede, por exemplo, para morrer com ele, ou o de um pai cujas últimas palavras continuam vivas como uma maldição). Suicidar nosso narcisismo também nos ajuda a voltar para a realidade. Mas é bom não confundir o suicídio de nosso narcisismo com o suicídio de nossa pessoa.

2) No fim do filme, a vítima de nossos heróis descobre algo que muda seu futuro de maneira positiva -qualquer terapeuta concordaria. Essa "verdade" foi plantada por nossos heróis, os quais também arquitetaram o lugar escondido e proibido onde a vítima encontra seu "segredo" (o que faz, obviamente, que ela aceite e preze essa "descoberta", que é, de fato, um engodo).

Qualquer psicanalista ou psicoterapeuta dirá que, numa cura, ele pode extrair pensamentos nocivos e desnecessários, mas ele nunca inseriria nada; isso seria sugestão, coisa de padre e pastor.
Concordo, mas, saindo do cinema, pensei: e se, como os heróis de Nolan, a gente estivesse praticando a arte insidiosa (e, às vezes, benéfica) de plantar no paciente nossas ideias transvestidas de segredos? Foucault adoraria essa dúvida.

Só me resta desejar a todos um bom filme.

domingo, 8 de agosto de 2010

Castigos físicos


O castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é a força


UMA RECENTE pesquisa Datafolha (Folha, 26/7) mostra que, no Brasil, 69% das mães e 44% dos pais admitem ter batido nos filhos.

Parêntese. Os pais são tão violentos quanto as mães: simplesmente, eles passam menos tempo em casa e lidam menos com o "adestramento" dos filhos.

A pesquisa constata também que 72% dos adultos sofreram castigos físicos quando crianças. Como se explica, então, o fato de que 54% dos brasileiros se declaram contrários ao projeto de lei que proíbe os castigos físicos em crianças? Há várias hipóteses possíveis.

1) Talvez quem apanhou quando criança não queira perder o direito de se vingar em cima dos filhos.

2) Talvez não aceitemos a ideia de que os nossos pais tinham sobre nós uma autoridade maior do que a que nós temos ou teremos sobre nossos filhos.

3) Na mesma linha, talvez estejamos dispostos a apanhar dos superiores sob a condição de sermos autorizados a bater nos subalternos.
Nota: aceitar apanhar dos mais poderosos para poder bater nos mais fracos é a caraterística que resume a personalidade burocrático-autoritária do funcionário fascista.

4) A autoridade, dizem alguns com razão, sempre tem um pé na coação e recorre à força quando seu prestígio não for suficiente para ela se impor. Hoje, a autoridade simbólica dos adultos é cada vez menor. É provável que os próprios adultos sejam responsáveis por isso (principalmente, por eles se comportarem cada vez mais como crianças); tanto faz, o que importa é que o prestígio dos adultos não lhes garante mais respeito e obediência. Portanto, a palavra aos tabefes.

É um erro: o castigo físico acaba com a autoridade de quem castiga, pois revela que seu argumento é apenas a força. A reação mais sensata da criança será: tente de novo quando eu estiver com 15 anos e 1,80 m de altura.

Esses e outros argumentos a favor da palmatória não encontram minha simpatia. Até porque verifico que os rastos desses castigos não são bonitos. Mesmo um simples tapa é facilmente traumático tanto para o pai que bateu como para o filho: ele paira na memória de ambos como uma traição amorosa que não pode ser falada por ser demasiado humilhante (para os dois). Há pais violentos que passam a vida na culpa, e há crianças cuja vida erótica adulta será organizada pela tentativa de encontrar algum sinal de amor no sadismo dos pais.

Apesar disso, se tivesse sido consultado na pesquisa, provavelmente eu teria me declarado contra a nova lei, por duas razões.

A primeira (e menos relevante) é que existem violências contra crianças piores do que a violência física, e receio que uma lei reprimindo o castigo físico nos leve a pensar que, por assim dizer, "o que não bate engorda". Infelizmente, não é preciso bater para trucidar uma criança.

A segunda razão (e mais relevante) é que a nova lei não surge num contexto em que os pais teriam poder absoluto sobre o corpo dos filhos. Mesmo sem a nova lei, o professor que visse sinais de violência no corpo de um dos alunos avisaria à polícia e à autoridade judiciária. O mesmo valeria para o pediatra ou para o psicoterapeuta. Inversamente, um pai cujo filho fosse batido na escola processaria o professor e a instituição. Também, com um pouco de sorte, uma criança batida pode denunciar o adulto que a abusa.

Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral?
Essas leis me parecem ter sobretudo a intenção de afirmar, demonstrar e estender o poder do Estado na vida dos cidadãos.

Uma coisa aprendi com Michel Foucault: o poder moderno é raramente extravagante em suas exigências. Como ele não tem conteúdo específico, mas gosta apenas de se expandir, ele escolhe o caminho mais fácil, conquistando a adesão "espontânea" de seus sujeitos. Como? Simples: operando "obviamente" "pelo bem dos cidadãos" -no caso, pelo bem das crianças.
Resumindo:

1) sou absolutamente contra qualquer castigo físico; 2) sou também contra a extensão do poder do Estado no campo da vida privada, por temperamento anárquico e porque sou convencido que, neste campo, as famílias erram muito, mas o Estado, quase sempre, erra mais.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Eu sou atriz pornô, e daí?


É uma ideia antiga: uma mulher, se ousa desejar, só pode ser "a puta", com a qual tudo é permitido


RESISTI A pedidos e pressões para que comentasse o caso do goleiro Bruno. Não gosto de especular sobre investigações inacabadas ou acusações ainda não julgadas.

No entanto, especialmente nos crimes midiáticos, sempre há fatos e atos que merecem comentário e que não dependem da culpa ou da inocência de suspeitos ou acusados.

Por exemplo, durante a investigação sobre a morte de Isabella Nardoni, o fato mais interessante era a agitação da turba: diante da delegacia de polícia, os linchadores pulavam e gritavam indignados só quando aparecia, nas câmeras de TV, a luz vermelha da gravação.

Há turbas parecidas no caso do goleiro Bruno. E, além das turbas, também alguns delegados de polícia parecem se agitar especialmente quando as câmeras estão ligadas, o que, provavelmente, não contribui ao progresso das investigações.

Mas o que me tocou, nestes dias, foi outra coisa. Segundo o advogado Ércio Quaresma Firpe, que defende o goleiro Bruno, a polícia estaria investigando um crime inexistente, pois Eliza Samudio estaria viva e se manteria em silêncio e escondida pelo prazer de ver o Bruno acusado e preso. Para perpetrar essa vingança, aliás, Eliza não hesitaria em abandonar o próprio filho de cinco meses.

É uma linha de defesa que faz sentido, visto que, até aqui, o corpo de Eliza não apareceu. Mas o advogado Firpe, para melhor transformar a vítima presumida em acusada, tentou apontar supostas falhas no caráter de Eliza soltando uma pérola: "Essa moça", ele disse, "é atriz pornô".

Posso imaginar a expressão que acompanhou essa declaração: o tom maroto que procura a cumplicidade de quem escuta, uma levantadinha de sobrancelhas para que a alusão confira um valor especialmente escuso à letra do que é dito.

Estou romanceando? Acho que não. De mesa de restaurante em balcão de bar, já faz semanas que ouço comentários parecidos, de homens e mulheres, mas sobretudo de homens: Eliza Samudio era "uma maria chuteira", uma mulher fácil.

Será que essas "características" de Eliza absolvem seus eventuais assassinos? Claro que não, protestariam imediatamente os autores desses comentários. Mas o fato é que suas palavras deixam pairar no ar a ideia de que, de alguma forma, a vítima (se é que é vítima mesmo, acrescentaria o advogado Firpe) fez por merecer.
Pense nos inúmeros comentários sobre o caso de Geisy Arruda, aluna da Uniban: tudo bem, os colegas queriam estuprá-la, isso não se faz, mas, também, como é que ela vai para a faculdade com aquele vestidinho curto e tal?

No processo contra um estuprador, por exemplo, é usual que a defesa remexa na vida sexual da vítima tentando provar sua facilidade e sua promiscuidade, como se isso diminuísse a responsabilidade do estuprador. Isso acontece até quando a vítima é menor: estuprou uma menina de 12 anos? Cadeia nele; mas, se a menina se prostituía nas ruas da cidade, é diferente, não é?

Diante de um júri popular, essas considerações funcionam, de fato, como circunstâncias atenuantes: talvez estuprar "uma puta" não seja bem estupro.

Em suma, quando a vítima é uma mulher e seu algoz é um homem, é muito frequente (e bem-vindo pela defesa) que surja a dúvida: será que o assassino ou o estuprador não foi "provocado" pela sua vítima?
Atrás dessa dúvida recorrente há uma ideia antiga: o desejo feminino, quando ele ousa se mostrar, merece punição. Para muitos homens, o corpo feminino é o da mãe, que deve permanecer puro, ou, então, o da puta, ao qual nenhum respeito é devido: uma mulher, se ela deseja, só pode ser a puta com a qual tudo é permitido (estuprá-la, estropiá-la).

Além disso, se as mulheres tiverem desejo sexual próprio, elas terão expectativas quanto à performance dos homens; só o que faltava, não é? Também, se as mulheres tiverem desejo próprio, por que não desejariam outros homens melhores do que nós?

Seja como for, para protestar contra a observação brejeira do advogado Firpe, mandei fazer uma camiseta com a escrita que está no título desta coluna. Mas o ideal seria que ela fosse adotada pelas mulheres. Podem mandar fazer, sem problema; o advogado Firpe não tem "copyright" da frase.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Dois jeitos de viajar


Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos


NO FIM da adolescência, eu não queria mais viajar com meu pai, pois gostávamos de viajar de jeitos diferentes. Eu entendia essa diferença pensando nos estilos opostos de George Byron e John Ruskin, dois grandes amantes de Veneza.

Byron dedicou a Veneza o quarto canto de "Childe Harold's Pilgrimage" (a peregrinação do cadete Harold), cujos primeiros versos, "Parei em Veneza, sobre a Ponte dos Suspiros etc.", ainda são declamados por hordas de jovens românticos, quando olham para a dita ponte.

O curioso é que, em "Childe Harold", Veneza é apresentada como uma ruína solene e grandiosa. De fato, Byron não tinha interesse algum pela arquitetura e pelas artes. Ele gostava de acumular experiências e tolerava os monumentos apenas se eles fossem animados por uma boa história.

Byron ficou em Veneza de 1816 a 1819, primeiro nas Frezzerie, no apartamento de um alfaiate de cuja mulher ele era o amante, logo, a partir de 1818, num palácio, onde acumulou bichos exóticos, carnavais e gonorreias. Mais próximo de sua real experiência veneziana, Byron escreveu "Beppo" (Nova Fronteira), que é um extraordinário e divertido poema narrativo.

Ruskin, 30 anos mais tarde, encontrou uma Veneza totalmente desertada pelos restos da festa do século 18. De qualquer forma, já por índole, Ruskin amava as pedras e as lia como livros, Byron amava a aventura e preferia ler os corpos.

Todos nós, quando viajamos, somos um pouco Ruskin e um pouco Byron. Mas meu pai era mais Ruskin, e eu, mais Byron.

Ora, acabo de voltar de Veneza e, no último dia, tive um encontro do qual Byron teria gostado (Ruskin também, só que menos).

Sou um leitor das aventuras de Corto Maltês, os quadrinhos de Hugo Pratt (em português, pela Pixel). No fim de "Favola di Venezia", Pratt, perdido num emaranhado de personagens e situações, declara que existem, em Veneza, "três lugares mágicos e escondidos: um está na calle do Amor dos Amigos; outro, perto da Ponte das Maravilhas; o terceiro, na calle dos Marranos, perto de San Geremia no Gueto".

Quando os venezianos estão em apuros, eles procuram esses lugares secretos e, "abrindo as portas que estão no fundo dos pátios, vão-se embora para lugares lindíssimos e para outras histórias". Corto Maltês bate numa porta e diz: "Sou Corto Maltês, deixo esta história e peço para entrar numa outra, num outro lugar". Pronto, ele começa uma nova aventura.

Um propósito de minha estadia veneziana era de encontrar os três lugares. Deixando de lado a calle dos Marranos (que não consigo identificar), entrei em todos os pátios nos arredores da Ponte das Maravilhas e do Ramo do Amor dos Amigos. Mas como saber quais eram as portas mágicas?

O livro "La Guida di Corto Maltese alla Venezia Nascosta" (o guia de C. M. à Veneza escondida), de G. Fuga e L. Vianello (Rizzoli, existe também em inglês), é perfeito para passear por Veneza num estilo mais Byron que Ruskin. Mas a leitura não me ajudou a encontrar as portas.

Finalmente, na tarde de sábado passado, na livraria AcquaAlta, na Longa Santa Maria Formosa, conversei com um senhor de barba branca, que estava folheando uma aventura de Corto Maltês. Imaginei que ele pudesse ter sido um amigo de Pratt, dos anos 1970, companheiro das noites no restaurante Graspo de Uva.

O fato é que ele se lembrava da história dos três lugares de Veneza e, quando lhe perguntei se ele saberia indicar as famosas portas, ele me respondeu: "A mim me parece" (é assim que fala um veneziano) "que, se você as procura, é que você já as encontrou". E logo ele se foi.

Como interpretar essa frase a la Pascal? Entendi assim: se eu acreditava numa ficção a ponto de procurar os lugares que ela inventa, eu não precisava de mais nada para passar de uma história a outra. Pois o segredo é inventar.

Pensei que Ruskin teria gostado da ideia de procurar os lugares mencionados por Pratt, mas só Byron teria aberto as portas. Ele, aliás, não parava de abrir portas e fugir para novas histórias. Vai ver que, em Missolonghi, quando sumiu, aos 36 anos, combatendo pela independência da Grécia, ele não morreu, apenas abriu mais uma porta. E foi para outra.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Preços e valores



O que vale mais: um acessório produzido em série ou uma edição do "Orlando Furioso" de 1565?
QUANDO PASSO por Veneza, sempre visito a livraria antiquária Linea d'Acqua, na calle della Mandola, uma das últimas que sobram na cidade.

Não sou mais colecionador (vendi minha biblioteca quando deixei os EUA, em 2004), mas os livros antigos continuam sendo, para mim, uma fonte de prazeres sensoriais e intelectuais. Gosto de manuseá-los e gosto de conversar sobre edições, encadernações etc.

Passei um tempo com Luca Zentilini, o livreiro de Linea d'Acqua, examinando dois livros.
Um era a primeira edição de "The Stones of Venice", de Ruskin: três volumes, publicados entre 1851 e 1853, in-oitavo, na encadernação original da editora. Não faltava nenhuma das numerosas pranchas (muitas aquareladas) que reproduzem os desenhos arquitetônicos originais de Ruskin.

"As Pedras de Veneza" (Martins Fontes) tornou-se e continua popular (em todas as línguas) numa versão reduzida, que permite levar o volume consigo na mala. Mas, cuidado, o livro não é apenas um extraordinário guia de viagem, é também das grandes obras do século 19.

A edição original, nunca reimpressa, foi de menos de mil exemplares. Quantos desses conjuntos de três volumes ainda existem?

O outro livro que Zentilini me mostrou era a edição de Francesco Franceschi do "Orlando Furioso", de Ludovico Ariosto. Quem não conhece essa maravilhosa edição, de 1565, veja uma página em http://migre.me/Ue6o. O exemplar era perfeito, com todas as gravuras.

O livro de Ruskin custava 2.000 (R$ 4.450). A edição de 1565 do Ariosto custava o dobro.

Caros? Sim, certo. Só que, não muito longe de Linea d'Acqua, na calle Larga 22 Marzo, não faltam clientes para vestidos ou acessórios produzidos em série, que custam tanto quanto um Ariosto de 1565, se não mais.
Justamente, foi no começo do século passado que as bibliotecas começaram a ser dizimadas por seus próprios donos. Arrancar páginas de um livro antigo acaba com a integridade da obra (e também com seu valor de revenda), mas, convenhamos: páginas emolduradas podem ser mostradas, ostentadas. Ou seja, uma gravura na parede vale mais que um livro com todas suas gravuras, fechado, na estante.

Em Verona, na via Dietro San Sebastiano, há uma alfaiataria e camisaria napolitana (na Itália, isso é um pleonasmo: em alfaiataria, napolitano significa tradicional).

O alfaiate me explicou que propõe dois tipos de camisa, ambas nos mesmos algodões "doppio ritorto". O tipo mais barato é confeccionado a máquina, salvo, "obviamente", para a costura que segura a manga à camisa e que deve sempre, imperativamente, ele explicou, ser feita a mão, sob pena de uma "desconfortável rigidez".

O outro tipo de camisa é inteiramente costurado a mão, o que garante uma mobilidade e um caimento que uma camisa costurada a máquina nunca terá. Pois bem, o preço de uma camisa costurada a mão é de 100 (R$ 222).

Enquanto o alfaiate napolitano e eu levávamos essa conversa na alfaiataria deserta, a via Mazzini, a poucos metros de lá, estava abarrotada de turistas comprando camisas mais caras, fabricadas nos quatro cantos do Oriente e, às vezes, em tecidos sintéticos duvidosos.

Perguntei ao alfaiate por que, ao seu ver, os clientes preferiam as lojas da via Mazzini ao seu ateliê. Ele respondeu, com sabedoria certa.

Primeiro, há a necessidade da satisfação imediata: o consumidor quer pagar e levar para casa (nada de encomendar, tirar as medidas do corpo, esperar a primeira e a segunda prova etc.).

Segundo, e mais importante, os produtos das lojas da via Mazzini têm algo que suas camisas e seus ternos não têm. Imaginei que ele fosse me confessar alguma inferioridade de seus artefatos, mas ele acrescentou apenas: "Os produtos da via Mazzini têm uma marca, uma marca que todas as pessoas reconhecem".

P.S.: Para Clóvis Rossi e os amigos que pediram que comentasse a derrota de seleção. Depois do jogo contra a Holanda, postei isto no meu Twitter (@ccalligaris): 1) às vezes a gente ganha, às vezes não; 2) ganhar não é um direito natural nem adquirido; 3) o Brasil é mais do que uma seleção de futebol.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

"Toy Story"



O filme me deixou com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança

Assisti a "Toy Story 3" na quinta passada. Era noite, e, na sala, só havia adultos, que saíram todos comovidos, sorrindo e fungando. Talvez nosso envelhecimento se pareça um pouco com o destino dos brinquedos abandonados pelas crianças que se tornam grandes.

Por exemplo, quando os filhos não brincam mais conosco, antes de tomar o caminho do sótão-asilo ou o do lixão-cemitério, sonhamos com a possibilidade de sermos, durante um tempo, brinquedos para nossos netos. Bem como os protagonistas de "Toy Story 3".

O filme me deixou também com saudade da fantasia livre e maluca que organizava meus jogos de criança. Inevitavelmente, acabei pensando nas gerações de brinquedos que me acompanharam na infância.
Quando meus pais morreram, eu morava longe, e meu irmão se ocupou de esvaziar o apartamento de nossa infância.

Foi assim que ele adentrou sozinho pelos dois imensos closets da sala, que nós chamávamos de "cavernas de Ali Babá" e que continham, entre inúmeras outras coisas, nossos brinquedos aposentados.

Meu irmão decidiu transferir esses sobreviventes para sua casa e, ao pedir meu consentimento, mencionou os mais valiosos, o trem elétrico, os soldadinhos de Fort Apache. Quanto aos outros, eu imaginava que ele os doaria ou descartaria.

Nada disso. Nestes dias, passando duas semanas na Itália, com "Toy Story" na lembrança, explorei, pela primeira vez, um armário de três portas que está no corredor do apartamento veneziano que divido com meu irmão.

Encontrei nossos velhos jogos de sociedade, quebra-cabeças, um "Pequeno Químico", um porta-aviões sem aviões, caminhões, robôs etc. Enfim, atrás desse amontoado, esbarrei num helicóptero, bem guardado em sua caixa original, com um ar de novo. Desse brinquedo me lembrei perfeitamente.

No dia de Natal, meu irmão e eu acordávamos pelas quatro da manhã, ansiosos para conhecer, enfim, nossos presentes, todos embrulhados embaixo da árvore. Abríamos os pacotes e brincávamos sozinhos, antes de meus pais acordarem.

Vencidos pelo cansaço, voltávamos para cama levando os brinquedos dos quais mais tínhamos gostado e que dormiriam conosco mais uma hora ou duas.

No Natal dos meus sete ou oito anos, eu ganhei um helicóptero. Não era teleguiado (era o começo dos anos 50), mas voava. Sim senhor, voava mesmo. Ele era ligado por um cabo a um comando mecânico (não elétrico): ao girar (freneticamente) uma manivela, o movimento era multiplicado e transmitido até às pás do rotor, de forma que, efetivamente, o helicóptero se levantava até o braço da gente cansar.

Amei o helicóptero. Amei a sensação de que ele voava não por alguma mágica, mas pelo meu esforço. Brinquei com ele mais ou menos uma hora, até que, inexplicavelmente, ele quebrou; eu acionava a manivela, ouvia um ruído de engrenagens infelizes, e as pás permaneciam paradas.

Não tenho como reconstruir exatamente a cadeia de meus pensamentos; só sei que o que prevaleceu não foi a pena pela perda do brinquedo novo, mas uma espécie de sentimento protetor. Explico.

Eu não sentia culpa (tinha brincado do jeito que era mesmo para brincar com o helicóptero), mas não aguentava a ideia de que meus pais tivessem notícia da morte precoce de seu presente, que, certamente, eles tinham escolhido com carinho e pago com esforço. Em suma, eu precisava proteger os meus pais.

Não disse nada; coloquei o helicóptero de volta na caixa e o levei para a cama comigo. Quando acordei, não sei como, consegui convencer a todos de que aquele era meu presente preferido, por isso eu não queria que outros brincassem com ele, nem meu irmão e ainda menos os sobrinhos convidados para o almoço de Natal.

Milagrosamente, mantive essa ficção durante os dias seguintes: adorava o helicóptero, e ninguém podia tocar nele.

De fato, ninguém nunca mais brincou com ele. Eu tampouco, é claro; brincar com ele quebrado teria sido revelar minha mentira.

E agora o helicóptero está aqui, na sua caixa de origem -símbolo de minha vontade sofrida e um pouco louca de fazer e proteger a felicidade de meus pais.

Tem cara de novo, mas é um pouco tarde para invocar a garantia.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Torcer ou pensar, eis a questão


O torcedor pensa e grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando está sozinho



Pela minha história, sinto-me parte de várias nações e, na Copa do Mundo, torço por todas elas. Quando se enfrentam duas seleções com as quais me identifico, sou privilegiado: seja qual for o desfecho, um de meus times preferidos ganhará.

Embora tenha uma verdadeira repugnância por qualquer forma de nacionalismo, a torcida da Copa do mundo é a única à qual consigo me juntar. É porque, na Copa, os torcedores vibram, festejam ou se desesperam sem transformar os adversários em objetos de ódio e desprezo.

Exemplo. No jogo de domingo entre Brasil e Costa do Marfim, o time africano pegou pesado, a ponto de me inspirar uma certa antipatia. Também, por ufanismo continental, o público sul-africano torceu pela Costa do Marfim e aplaudiu a expulsão de Kaká, cuja única culpa foi de se irritar e manifestar sua irritação.

Pois bem, ninguém, nem o exuberante pessoal na sacada do prédio em frente do meu, gritou impropérios contra o time da Costa do Marfim e ainda menos contra seu povo. Tampouco ouvi insultos contra o público sul-africano.

Na hora da expulsão de Kaká, ecoou, isso sim, um único berro que expressava uma forte dúvida sobre a honra e o recato da mãe do árbitro. Mas aí, também, ninguém é de ferro (estou brincando).

Por que é possível torcer na Copa do Mundo sem ser devorado pela irracionalidade que afeta as torcidas organizadas de nossos clubes?

A Copa acontece só a cada quatro anos, ou seja, as rivalidades são esporádicas, não se cristalizam. Além disso, os adversários da Copa são variados, distantes e diferentes de nós, enquanto, em geral, os humanos gostam de odiar seus vizinhos.

Justamente, quando existe uma rivalidade estabelecida entre duas seleções nacionais, é entre países próximos, com similitude de destino, como Brasil e Argentina.

Mas mesmo esse tipo de rivalidade "tradicional" não se compara com o ódio que opõe as torcidas de clubes da mesma cidade e do mesmo Estado. Essas torcidas são vítimas dos piores efeitos do grupo sobre o pensamento e os critérios morais do indivíduo.

O que é efeito de grupo? Exemplo: UM jovem playboy entediado não colocaria fogo num índio que dorme num abrigo de ônibus. QUATRO playboys entediados são capazes disso; é possível, aliás, que os quatro se reúnam justamente para, juntos, autorizar-se a fazer algo que, separados, eles nunca fariam.

Vamos agora a um jogo entre São Paulo e Corinthians (ou qualquer dupla de rivais da mesma cidade).
 O torcedor corintiano, que está do meu lado, bem antes que a bola role, já roga pragas à torcida do São Paulo, que são "a bicharada" ou "os bambis". Nosso corintiano, uma vez extraído de sua torcida, não imagina, obviamente, que todos os são-paulinos, jogadores e torcedores, sejam "viados".

Tem mais: na grande maioria dos casos, na sua vida "real", fora do estádio, ele tampouco pensa que a opção sexual de alguém possa servir de insulto, ou seja, ele não acredita que os são-paulinos sejam bichas e não acredita que "bicha" seja um insulto.

Meu amigo torcedor, aliás, poderia ser ele mesmo homossexual; tanto faz, não por isso ele deixaria de gritar "bicha-raaaada". O mesmo vale para um são-paulino e seus gritos contra a torcida corintiana.

Resumindo, por fazer parte da torcida e para se integrar nela, o torcedor diz ou grita algo que não tem nada a ver com o que ele pensa quando pensa sozinho (que, cá entre nós, é o único jeito de pensar).
Por isso, só consigo torcer na Copa, e para quatro nações. Isso sem contar os times pelos quais me apaixono "só" porque jogam bem.

 

Começo hoje meu Twitter: ccalligaris, com o "s" final que falta no meu e-mail, www.twitter.com/ccalligaris. Postarei minirelatos de eventos do cotidiano, reflexões (minhas ou lidas, ouvidas e citadas), fotografias, indicações de filmes, peças, livros, exposições (e, por que não, restaurantes, pratos e vinhos). Haverá avisos de atividades (palestras etc.) e crônicas de minhas viagens.

Em outras palavras, será um microdiário -com um pouco de sorte, um novo estilo; de qualquer forma, uma nova experiência. Como se diz, todos estão convidados.

ccalligari@uol.com.br

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Os adolescentes que merecemos




Você prefere sua filha errando de balada em balada ou velejando sozinha ao redor da Terra?


ABBY SUNDERLAND nasceu na Califórnia, em outubro 1993. A família vivia num barco, ao longo da costa do Pacífico.

O irmão mais velho de Abby, Zac, aos 17 anos, tornou-se o mais jovem velejador a circum-navegar a Terra sozinho. O recorde de Zac não resistiu muito tempo: logo, Michael Perham, um adolescente inglês um ano mais jovem que Zac, completou sua volta solitária ao mundo. Note-se que Perham, aos 14 anos, já tinha atravessado o Atlântico sozinho.

Abby também, desde seus 13 anos, sonhava em circum-navegar a Terra. No começo deste ano, aos 16, sozinha, ela largou as amarras de seu veleiro de 12 metros e desceu o Pacífico Sul. Passou o Cabo Horn, atravessou o Atlântico e passou o Cabo de Boa Esperança, lançando-se no Oceano Índico. Entre a África e a Austrália, Abby encontrou uma tempestade à qual o mastro de seu barco não resistiu. No sábado passado, depois de dois dias à deriva num mar infernal, ela foi resgatada.

Pela internet afora e na imprensa dos EUA, os pais de Abby estão sendo criticados por um coro indignado: como vocês puderam deixar uma menina de 16 anos errar sozinha pelo mar e pelos portos? Fora tsunamis e tempestades, o que dizer dos meses insones espreitando o mar e o vento a cada meia hora, da solidão, do trabalho incessante, do frio, do desconforto de uma navegação solitária ao redor do mundo? E os piratas ao sul da Malásia? Por qual permissividade maluca vocês aceitaram que Abby se lançasse numa aventura que seria arriscada para gente grande?

Já a bordo do barco que a resgatou, Abby escreveu no seu blog: "Há uma quantidade de coisas que as pessoas podem estar a fim de culpar pela minha situação: minha idade, a época do ano e muito mais. A verdade é que passei por uma tempestade, e você não navega pelo Oceano Índico sem entrar em, no mínimo, uma tempestade. Não foi a época do ano, foi apenas uma tempestade do Oceano Sul. As tempestades fazem parte do pacote quando você veleja ao redor do mundo. No que concerne à idade, desde quando a mocidade do velejador cria ondas gigantescas?".

Se você duvida que Abby tivesse a maturidade necessária para sua empreitada, leia o diário da viagem (www.soloround.blogspot.com) -sobretudo as notas de Abby durante a interminável navegação no Atlântico Sul.

Os que censuram os pais de Abby afirmam que nunca autorizariam seus rebentos a velejar sozinhos ao redor do mundo porque, aos tais rebentos, falta seriedade e falta experiência. Eles devem ter razão -afinal, eles conhecem seus filhos. Mas cabe perguntar: essa falta de seriedade e experiência é efeito de quê? Da simples juventude? Duvido: La Pérouse, o navegador francês, aos 17 anos, em 1758, já estava combatendo os ingleses ao largo de Terra Nova. Então, efeito de quê?
Pois é, provavelmente, os mesmos pais que se indignam com a "irresponsabilidade" dos genitores de Abby permitem a seus filhos, mais jovens que Abby, de sair em baladas nas quais os únicos adultos são os que vendem drogas e bebidas.

Será que a volta para casa de madrugada, num carro dirigido por amigos exaustos, exaltados ou sonolentos, é menos perigosa do que a circum-navegação do mundo num veleiro pilotado por Abby, animada há anos por um desejo intenso e focado? E, de qualquer forma, qual das duas experiências você prefere para seus filhos?

O fato é que muitos pais preferem que os filhos errem como baratas tontas, de festinha em festinha. Por quê? Simples: assim, os filhos ficam infinitamente mais dependentes.

E os pais modernos, em regra, querem os filhos por perto; eles adoram que os filhos demonstrem que eles não são suficientemente maduros para sair pelo mundo e para correr os riscos que o desejo acarreta.

Não deveríamos nos perguntar qual é a loucura dos pais que empurraram Zac, Abby e Michael mar adentro, mas qual é a loucura dos pais que preferem largar seus filhos nas noites, em que vodca, cerveja, maconha, ecstasy e papo furado servem para convencer os próprios adolescentes de que ainda não começaram a viver e, portanto, vão precisar dos adultos por muito tempo.

Comentando a aventura de Abby, um pai me disse: "Nunca deixaria minha filha navegar sozinha, eu não quero perdê-la". Pois é, "não quero perdê-la" em que sentido?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O direito de buscar a felicidade




Não posso exigir que, para eu ser feliz, todos procurem a mesma felicidade que eu busco



O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".

O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).

É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.

Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.

Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.

A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.

Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.

Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.

Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.

Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.

Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.

Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?

Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?

Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência.