Em agosto de 1792, Maria Antonieta devia achar que os que se juntavam na frente das Tuileries eram baderneiros ignorantes.
Em dezembro de 1773, o governador inglês da província de Massachusetts devia pensar a mesma coisa dos "filhos da liberdade", que se disfarçavam de índios, subiam nos navios, jogavam o chá no mar e não queriam pagar os impostos.
Na época, Samuel Adams explicou que, mesmo se esses homens fossem apenas vândalos descontrolados, eles seriam, de fato, os defensores dos direitos básicos do povo das colônias.
A maioria dos paulistanos (e, suponho, dos brasileiros) pensa como Samuel Adams e deseja que as manifestações continuem, por uma razão que está muito além da tarifa dos ônibus: a relação do poder público com os cidadãos do Brasil é, sistematicamente, há muito tempo, de descaso e desrespeito, se não de abuso.
A escola e a saúde públicas são o destino resignado dos desfavorecidos. A insegurança se tornou uma condição existencial, tanto no espaço público quanto dentro da própria casa de cada um. O atraso da Justiça garante impunidades iníquas.
Claro, nossa arrecadação per capita é menos de um terço da dos EUA, por exemplo. Ou seja, talvez tenhamos os serviços públicos que podemos nos permitir.
Convenhamos, seria mais fácil aceitar essa triste realidade 1) se a corrupção não fosse endêmica e capilar, especialmente na administração pública, 2) se os governantes baixassem o tom ufanista de nossos supostos progressos e sucessos, 3) se a administração pública não fosse cronicamente abusiva e desrespeitosa dos cidadãos e de seus direitos.
Além disso, o dinheiro no Brasil compra uma cidadania VIP, na qual não só escola, saúde e segurança são serviços particulares, mas a própria relação com a administração pública é filtrada por um exército de facilitadores e despachantes.
A sensação de injustiça é exacerbada pela constatação de que muitos representantes procuram ser eleitos para ganhar acesso à dita cidadania VIP.
Por isso, hoje, circulam aos borbotões, na internet, propostas de reforma política em que, por exemplo, 1) os membros do Legislativo e do Executivo seriam obrigados a recorrer, para eles mesmos e para seus filhos, aos serviços da educação e da saúde públicas, 2) os congressistas não teriam nenhum regime privilegiado de aposentadoria, 3) os congressistas não poderiam votar o aumento de seus próprios salários etc.
Para piorar, os representantes parecem se preocupar pouco com os compromissos de seu mandato e muito com sua própria permanência nos privilégios do poder. Por isso, por exemplo, eles compõem alianças que desrespeitam e humilham seus próprios eleitores.
Nesse contexto espantoso, é patética a indignação com os "baderneiros" e mesmo com a margem de delinquentes comuns que se agregaram às manifestações.
O poder, quando não é efeito de graça divina, vem dos próprios cidadãos e é condicional: só posso reconhecer e respeitar a autoridade que me reconhece e me respeita. Uma autoridade que me desrespeita merece uma violência equivalente à que ela exerce contra mim.
Além disso, é bom não perder o senso das proporções. "Olhe, olhe!", grita um repórter, enquanto a tela mostra alguém que foge de uma loja saqueada levando algo no ombro.
Tudo bem, estou olhando e não estou gostando, mas minha indignação é mais antiga e por saques muito maiores.
Outro repórter pensa nos coitados que perderão o avião, em Cumbica, por causa dos manifestantes que bloqueiam o acesso ao aeroporto. Mas o verdadeiro desrespeito é o de nunca ter construído uma linha de trem entre São Paulo e o maior aeroporto do país.
O ministro Antonio Patriota se declarou indignado com o vandalismo contra o Palácio do Itamaraty. Com um pouco de humor negro, eu poderia suspeitar que os apedrejadores talvez tenham precisado um dia dos serviços de um consulado no exterior. Mas, deixemos.
Apenas pergunto: se esses forem vândalos, então o que são, por exemplo, os latifundiários desmatadores da Amazônia?
Enfim, à presidenta Dilma gostaria de dizer: não acredito que os "baderneiros" das últimas semanas tenham envergonhado o Brasil --nem mesmo quando alguns depredaram o patrimônio público.
Presidenta, você sabe isto mais e melhor do que muitos de nós: o que envergonha o Brasil é uma outra baderna, bem mais violenta, que dura há 500 anos e que gostaríamos que parasse.
sexta-feira, 28 de junho de 2013
sábado, 22 de junho de 2013
Sonhos de calor humano
Na sexta-feira passada, estreou o último filme de Richard Linklater, "Antes da Meia-Noite", que eu estava aguardando. Mas, enquanto as ruas pegam fogo, é difícil escrever sobre o amor.
As manifestações que se espalharam (e seguem se espalhando) por São Paulo e por outras cidades do país me impressionaram pela rapidez com a qual o protesto, supostamente motivado pelo aumento das passagens de ônibus, tornou-se expressão de outras insatisfações, profundas e cruciais --contra a má qualidade e a má gestão do que é público, contra a insegurança de nossas ruas, contra a corrupção, contra o mistério nacional que resulta em produtos caros e salários baixos, contra os políticos com sua falta de competência e seu excesso de promessas, contra o desperdício da Copa que vem aí, contra a lentidão e a ineficácia da Justiça, que parece que late e nunca morde etc.Domingo, num café de família, verifiquei, aliás, que as passeatas da semana passada não eram mais (se é que foram no começo) a manifestação de uma geração ou de uma classe social (e ainda menos de um partido).
Todos parecem cansados de uma cantilena ufanista que quase nos adormeceu: o discurso do Brasil que dá certo, que cresce (?), que está no caminho, que resistiu à crise enquanto os outros se deram pior, que acabou com a miséria (?) etc.
Levantando a cabeça atordoada pela propaganda, a gente pergunta: isso aqui é mesmo tudo o que conseguimos ser, como sociedade?
As manifestações da semana são frutos de um descontentamento bem justamente brasileiro. Ao mesmo tempo, elas pertencem a uma voz popular que se expressa, mundo afora, há tempo --e não só desde Seattle, em 1999.
Paradoxalmente, foi assistindo ao filme de Linklater que me pareceu entender por que somos (e não estamos) insatisfeitos com as sociedades nas quais vivemos.
Linklater filmou uma trilogia: no primeiro filme, "Antes do Amanhecer" (1995), Jesse e Céline descem do trem onde se encontraram para passear por Viena, até eles terem que voltar, no dia seguinte, cada um para seu lugar. No segundo, "Antes do Pôr do Sol" (2004), Jesse está promovendo, em Paris, o livro que ele escreveu sobre seu encontro em Viena com Céline; Céline vai ao lançamento, e eles se reencontram.
Em "Antes da Meia-Noite", agora em cartaz, Jesse e Céline se juntaram no fim do filme anterior, tiveram duas filhas e estão de férias na Grécia: o charme das conversas passadas se transformou num pesadelo, em que uma oposição estéril, abstrata e inexplicável parece ser o destino a longo prazo de qualquer conversa de casal.
Ou seja, o amor é o encanto de um encontro, um sonho: quando ele se realiza como convivência, ele pode durar, mas será facilmente cômico e sempre insuficiente.
Ora, essa verdade do amor talvez valha para qualquer projeto de convivência social. A sociedade que nos parece certa, que desejamos, existe na mágica do encontro e do sonho (o momento da manifestação, da militância). Como acontece com o amor, a realização dessa sociedade é sempre insatisfatória --claro, às vezes ela é um pesadelo absoluto e totalitário, outras vezes ela é parecida com aqueles casamentos que continuam porque ninguém acredita que a coisa possa melhorar e porque ninguém está a fim de ficar sozinho.
Ao longo de alguns séculos, o indivíduo se tornou para nós mais importante do que a comunidade. Esse período teve seu ápice no começo da modernidade. Paradoxalmente, logo quando o indivíduo passou a encabeçar nossos valores, a gente começou a idealizar o amor romântico como doação perfeita de cada um ao outro.
Da mesma forma, quando começamos a inventar as regras e as formas de uma sociedade de indivíduos separados e autônomos, logo naquele momento começamos a sonhar com o abraço de comunidades unidas e fraternas.
Ou seja, quanto mais prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário.
Esse paradoxo nos define. Estamos em conflito permanente entre nossa aspiração individual e nossos sonhos amoroso e comunitário. Em matéria de amor, a consequência parece chata (nunca dá certo).
Mas em matéria de sociedade, sorte nossa: de vez em quando, podemos nos acomodar, mas nunca somos satisfeitos com a sociedade que conseguimos construir.
Melhor assim.
quinta-feira, 13 de junho de 2013
Sex and the city
O extraordinário não é que um casal transe na escadaria, mas que tantos transem só em suas camas
Dois guardas notaram que o carro subia e descia com movimentos "suspeitos". Eles gritaram "Polícia!" e mandaram abrir. O casal, intimidado, obedeceu, revelando seus corpos nus ainda enroscados. Os guardas atuaram a ambos por atentado ao pudor.
Um ano depois, os jovens foram inocentados: o juiz reconheceu que eles só se mostraram porque os guardas mandaram abrir o carro --ninguém atentara ao pudor de ninguém.
Com amigos e amigas, decidimos zombar da polícia e dos cidadãos bem-pensantes (os quais, em cartas aos jornais, tinham manifestado sua indignação). Era de novo inverno; estacionávamos nossos carros, não de noite em lugares ermos, mas de dia, nas ruas mais frequentadas.
Assim que os vidros estivessem embaçados, era um exagero de sacudidas, de modo que ninguém duvidasse que, lá dentro, a gente fazia a festa. Infelizmente, nenhum guarda nunca bateu nos vidros de nossos carros trêmulos e protestatórios.
Pensei nessa história na sexta passada, quando li a ótima reportagem de Roberto de Oliveira, em "Cotidiano" (Folha, 7 de junho): uma inquilina do edifício Copan, glória de São Paulo, emprestou seus aposentos para um casal de amigos cariocas. Na noite do dia 27, o casal subiu pelo elevador até o último andar e se engajou nas escadas externas. Um segurança viu esse movimento pelas câmeras e foi atrás, até encontrar o casal no ato (sexual, claro).
O síndico do condomínio multou a inquilina (R$ 678) --por escolher "mal" seus amigos?-- e agora esbraveja que se tratou de um atentado ao pudor. Mas ao pudor de quem? Se o segurança (que imagino que seja maior de idade) "foi atrás", é porque estava afim de dar uma espiadinha, suponho"¦
Claro, haverá um carrancudo para perguntar: não podiam ir para seu apartamento e se deitar na cama? Pois é, não, não podiam. Ou melhor, podiam, mas deviam achar que seria muito mais chato do que transar com a vista de São Paulo, o ar frio, a sensação de estar fazendo algo inusitado, a fantasia de serem vistos de alguma janela do Terraço Itália e, enfim, o risco de serem surpreendidos pelo segurança do prédio, como aconteceu.
Somos um pouco diferentes dos outros mamíferos. O cheiro do sexo oposto não é suficiente para nos excitar; precisamos recorrer a fantasias sexuais --sem isso, nada ou pouco acontece. E, se você acha que não recorre a fantasia alguma, isso significa apenas que você não sabe a quais fantasias recorre.
O que é extraordinário não é que um casal transe nas escadas externas do Copan. O extraordinário é que tantas pessoas transem (ou digam que transam) sempre nas suas camas.
Essa é uma opinião excêntrica de psicanalista? Tomemos o caso do risco: dois grupos parecidos atravessam um precipício por pontes diferentes, um passa por uma sólida ponte de alvenaria, e o outro, por uma ponte de cordas. Na chegada do outro lado, quem está mais receptivo para sexo? Pois é, são os da ponte estilo Indiana Jones.
O síndico do Copan declarou inicialmente que o ato era "depreciativo". Que cada um escreva sua lista das coisas que depreciam nossa vida. Na minha lista, há corrupção, violência, insegurança, incompetência, intolerância, estupidez"¦ são as coisas que atentam cada dia ao meu pudor. Um casal transando não está entre as coisas que depreciam meu dia, mas entre as que lhe dão valor.
A vítima do Copan criou uma conta no vakinha.com.br, pedindo ajuda para pagar a multa. Quis contribuir ao pagamento da multa, que me parece injusta. Infelizmente, a conta foi apagada (talvez por causa dos comentários bestas e agressivos que ela recebeu).
O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, tirou do ar uma ação de seu ministério voltada para as prostitutas (e demitiu o responsável pela campanha), porque ele se escandalizou com a frase "Eu sou feliz sendo prostituta", que ele substituiu por "Sem vergonha de usar camisinha" (que ele deve ter complementado mentalmente: "mas com vergonha de ser prostituta"). O ministro poderia ser candidato a síndico do edifício Copan.
Caro ministro Padilha, antes de demitir mais colaboradores competentes, dê uma lida: Gabriela Silva Leite, "Eu Mulher da Vida" (Rosa dos Tempos), "Filha, Mãe, Avó e Puta" (Objetiva) e (um pouco mais complexo) Eliana dos Reis Calligaris, "Prostituição "" O Eterno Feminino" (Escuta).
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Anarquistas, neoliberais e Foucault
Neoliberais e anarquistas têm uma paixão comum: para ambos, a liberdade do indivíduo é o valor supremo
Por definição, os anarquistas não gostam de pertencer a coletividades, comunidades e grupos. Eles têm em comum uma antipatia (se não um ódio) pelos poderes instituídos, do Estado às igrejas, passando pelas torcidas, os partidos, os clubes etc. Fora esse sentimento comum, eles preferem pensar cada um por conta própria.
Mas, embora haja mil maneiras de ser anarquista, existe uma grande distinção que talvez seja legítima.
Há os anarquistas clássicos, que a esquerda gosta de incluir em suas fileiras. Grosso modo, eles acham que o fim do Estado e de todas as igrejas (por exemplo) criará uma nova sociedade de homens livres e pares. Tradicionalmente, esses anarquistas, por serem alérgicos ao poder dos partidos e dos Estados pretensamente "revolucionários", foram usados e, no fim, massacrados por seus supostos "companheiros" comunistas e socialistas (como aconteceu na guerra da Espanha).
E há os anarquistas que são hoje chamados de anarco-capitalistas, que a direita gosta de incorporar. Os anarco-capitalistas não sonham com uma sociedade radicalmente nova, eles apostam que a economia de mercado seja capaz de se contrapor ao Estado e aos poderes instituídos, de forma a substituí-los e torná-los desnecessários.
O que se ganharia com isso? Os anarco-capitalistas acham que, em matéria de liberdade, ser consumidor é um jeito relativamente pouco custoso de ser cidadão. Isso, sobretudo nas últimas décadas, em que o consumo tende a não ser massificado. Ou seja, a ideia anarco-capitalista é que, se deixássemos o mercado regrar nossa sociedade, nossa vida seria menos controlada e regrada do que ela é agora, pelo Estado e outros poderes.
Pergunta: sem o Estado, quem nos protegeria contra os abusos do mercado? É bom não esquecer que os anarquistas, em tese, se protegem sozinhos: se você não gosta de delegar poder a uma instituição, seja ela qual for, deve estar disposto a fazer polícia e justiça com suas mãos (é por isso, aliás, que o movimento libertário dos EUA sempre será fortemente favorável à livre circulação das armas).
Fato curioso, há uma similitude entre os anarco-capitalistas e os neoliberais. Mas é melhor explicar um pouco, porque (sobretudo se formos "progressistas") nossa visão dos neoliberais é distorcida.
Os liberais clássicos, tipo Adam Smith, querem preservar a liberdade do mercado dentro de qualquer sistema político.
Para os neoliberais de hoje, o mercado poderia (ou deveria) substituir qualquer sistema de governo a ponto de torná-lo desnecessário.
Há duas maneiras de entender essa ideia. Uma consiste em pensar que os neoliberais querem nos entregar de mãos atadas às grandes corporações e à sedução de sua propaganda. A outra consiste em pensar que os neoliberais são extremamente próximos dos anarco-capitalistas: querem que o mercado nos liberte, ou melhor, imaginam que o mercado seja a forma de organização social mínima, a que controla menos a nossa vida.
Para quem se deu a pena de ler Friedrich Hayek (que talvez seja o maior pensador do neoliberalismo --vários livros em português, publicados pelo Instituto Ludwig Von Mises), a resposta que faz mais sentido é a segunda.
Ou seja, há uma séria proximidade entre neoliberais e anarco-capitalistas. Essa proximidade consiste numa paixão comum pela liberdade do indivíduo como valor que não pode nem deve ser alienado em favor de entidade coletiva alguma.
Um sociólogo francês, Geoffroy de Lagasnerie, tenta há tempos defender uma leitura atenta dos autores neoliberais (para ter uma ideia da polêmica, um artigo dele de 2011, no "Le Monde", http://migre.me/eSa0S).
Em 2012, De Lagasnerie publicou um livro crucial sobre Michel Foucault, que acaba de ser traduzido, "A Última Lição de Michel Foucault" (Três Estrelas).
O livro mostra o irrefutável: em seu último seminário ("O Nascimento da Biopolítica", Martins Fontes), Foucault (um ícone da esquerda) leu, apresentou e (pasme) levou a sério os pensadores neoliberais (Hayek, em particular). E não foi uma loucura de última hora. Ao contrário, o interesse de Foucault pelos neoliberais não deveria nos escandalizar.
Aliás, qual seria o escândalo? Aparentemente, a ideia de que, para o bem ou para o mal, o neoliberalismo é também uma grandiosa defesa da diversidade e da liberdade do indivíduo --fato que não podia deixar indiferente o maior pensador anarquista do século 20, Michel Foucault.
Assinar:
Postagens (Atom)