quarta-feira, 25 de abril de 2012
Delírio e mau caráter
Cada um é moralmente responsável pela qualidade da religião que escolhe ou do delírio que ele elabora
1) CONTINUO pensando em Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, o canibal do agreste. Ele tem uma visão do mundo que justifica sua vida e seus atos.
Com suas duas companheiras, ele era encarregado de uma missão divina: devia encontrar mulheres perdidas e purificá-las. Essa purificação passava pelo assassinato e pela ingestão da carne das escolhidas. A visão e a missão de Jorge eram delirantes, mas o que é um delírio?
O senso comum e a psicopatologia concordam: delírio é uma convicção inquestionável, incorrigível e muito pouco plausível. Além disso, um delírio não é apenas um exercício de fantasia, ele preenche a função (crucial) de dar sentido à existência do indivíduo que delira.
São poucas as pessoas saudáveis a ponto de conseguir viver sem se atormentar com a necessidade de resolver, como se diz, o enigma da vida. Ou seja, são poucas as pessoas para quem a experiência concreta se justifica por si só, pela alegria de viver. A maioria precisa recorrer a crenças que digam por que e para o que estamos aqui.
Ora, as crenças que explicam nossa razão de estar no mundo são todas inverossímeis. Claro, a "missão" canibalesca de Jorge nos parece mais estranha do que a crença de um cristão, mas isso pouco tem a ver com a verossimilhança. Como dizer o que é mais provável, que o filho de Deus tenha sido crucificado para nos redimir ou que Deus nos encoraje a redimir os pecadores filtrando-os pela nossa digestão? No fundo, a grande diferença é que as ideias de Jorge são só dele e de suas duas cúmplices, enquanto as ideias de um cristão são compartilhadas por 2 bilhões de pessoas. Por mais que seja pouco plausível, uma crença cessa de ser delírio quando ela se socializa.
A definição de delírio (no "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", DSM-IV) diz que uma pessoa não pode ser diagnosticada como delirante se sua crença é "normalmente aceita por outros membros da cultura ou da subcultura dessa pessoa" -"um artigo de fé religiosa" não pode ser um delírio.
Síntese paradoxal: uma religião individual é um delírio, e um delírio coletivo deixa de ser delírio e se torna uma religião.
É um pouco frustrante dispor só de critérios quantitativos para decidir o que é delirante. Mas talvez a capacidade de compartilhar uma crença com outros já seja o sinal de uma certa "normalidade".
2) Jorge e suas companheiras são loucos e delirantes. Será que a loucura e o delírio dispensam qualquer juízo moral? Será que, moralmente, todo delírio se vale?
Não estou convencido disso. Entendo que a urgência de dar sentido à vida leve alguém a escolher uma religião ou, se ele não conseguir, a elaborar um delírio próprio. Mas cada um é responsável pela qualidade da religião que escolhe ou do delírio que ele elabora.
Comparemos religiões. Posso acreditar que Deus me reconhecerá como seu filho à condição que eu leve uma vida ilibada e, a cada noite, eu me açoite, no silêncio do meu quarto. Ou, então, posso acreditar que ele me reconhecerá como filho à condição que eu desmascare, prenda e execute os pecadores, mundo afora.
Comparemos delírios. Posso acreditar que Deus quer que eu mude de sexo. Ou posso acreditar que Deus me encarregou de andar com pinças e bisturi no bolso, para mudar o sexo dos outros.
Conclusão: uma religião ou um delírio segundo os quais os outros deveriam pagar para que MEU mundo faça sentido são, no mínimo, provas de mau caráter.
3) Dúvida diagnóstica. Os canibais do agreste chamaram a atenção da polícia quando usaram o cartão de crédito de uma das vítimas. Isso era também parte do "ritual de purificação"?
Consideremos ainda uma frase do memorial de Jorge, descrevendo o fim da primeira das três vítimas: "Eu, Bel e Jéssica nos alimentamos com a carne do mal, como se fosse um ritual de purificação, e o resto eu enterro no nosso quintal, cada parte em um lugar diferente".
Em tese, um delírio diria que aquilo ERA, sem sombra de dúvida, o ritual de purificação -nada de "como se fosse".
Se o tribunal me consultasse como perito, talvez eu alegasse o estelionato e essa frase para afirmar que Jorge não é um louco, mas um perverso, que manipulou duas abobadas e deixou alguns escritos, tudo com a intenção de urdir crimes sinistros e de ser reconhecido (e assim "desculpado") como louco.
quinta-feira, 19 de abril de 2012
Canibais no agreste
Os canibais do agreste são três loucos. A partir de que número eles seriam uma seita? E uma religião?
Na quarta-feira retrasada, em Garanhuns (PE), a polícia prendeu Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, 51, sua mulher, Isabel Cristina Torreão Pires da Silveira, também 51, e Bruna Cristina Oliveira da Silva, 25, que vivia com o casal e era a amante de Jorge.
Os três são acusados de ter matado no mínimo três jovens mulheres: duas nos últimos meses, em Garanhuns, e outra, em 2008, em Olinda. Eles confessaram ter comido pele, vísceras e carne das vítimas. Isabel declarou ter usado esses ingredientes na preparação de empadas que ela vendia cidade afora. Os restos das vítimas recentes foram encontrados no quintal da casa do trio.
Jorge, formado em educação física e com uma segunda faculdade ao menos começada, deixou um manuscrito de 34 minicapítulos e cinco desenhos registrado em cartório (como se temesse pelos direitos autorais). Também existe um filme, que Jorge e Isabel produziram e no qual eles atuaram, anos atrás. Bruna, ao que parece, escreveu um diário, que acaba de ser encontrado.
Passei a tarde de domingo lendo o manuscrito de Jorge; o memorial se interrompe pouco depois da primeira vítima, Jéssica (a qual, antes de ser morta, pariu uma menina, que passou a viver com o trio e de quem Jorge afirma ser o pai).
No memorial, Jorge também relata o diagnóstico de esquizofrenia paranoide, as tentativas de medicação e a passagem por diversos serviços de saúde mental.
Numa entrevista televisiva (http://migre.me/8GY8q), Jorge conta que as vítimas precisavam ser purificadas, e purificar as almas era a "missão" do trio. As mulheres, atraídas por propostas de trabalho, eram levadas, na conversa, a falar "coisas boas", de maneira a poderem morrer "perdoadas".
Comer a carne era parte do ritual de purificação; talvez os assassinos incorporassem assim a nova "pureza" de suas vítimas -afinal, segundo muitos antropólogos, o canibal assimila as qualidades da pessoa de quem ele se alimenta. De fato, depois do primeiro assassinato, Bruna passou a ser chamada de Jéssica, nome da primeira vítima.
Seja como for, o crime do trio inspirou um horror descomunal. Populares de Garanhuns, não podendo linchar os três, lincharam a casa, que foi saqueada e queimada por duas vezes.
De fato, o autocanibalismo é frequente (as pessoas comem suas unhas e peles sem problema), mas o canibalismo é muito raro. Aparece na ficção (Hannibal Lecter) e em alguns casos em que está ligado a fantasias sexuais extremas (vide o caso de Jeffrey Dahmer e o caso de Armin Meiwes, que, na Alemanha, em 2003, encontrou Bernd Brandes, o qual queria ser devorado e participou da comilança de seu próprio corpo até morrer). Desse canibalismo sexual sobra em nós a vontade de morder o ser amado -além do duplo sentido lusitano de "comer".
Fora isso, o canibal é sobretudo uma construção cultural, que serve para apontar a selvageria no primitivo e no outro em geral (sobre isso, ler o excelente "An Intellectual History of Cannibalism", de Catalin Avramescu, Princeton).
Agora, o canibalismo, para Jorge, não foi um transporte sensual ou sexual, mas o jeito louco de se dar uma identidade e um sentido. Os cristãos sustentam sua força espiritual incorporando simbolicamente o corpo de Cristo na comunhão; Jorge tentou se tornar alguém no mundo devorando realmente suas vítimas purificadas. Ele conseguiu: tornou-se a mão vingadora do arcanjo, com a "clara" missão de purificar o mundo.
Alguém me perguntou: como três pessoas podem compartilhar a mesma loucura?
A psiquiatria francesa do século 19 nomeou a "Folie à deux" (loucura a dois), que o DSM (manual de diagnóstico de transtornos mentais) hoje chama de Transtorno Psicótico Compartilhado. Às vezes, dois ou mais psicóticos podem influenciar reciprocamente a elaboração de seus temas delirantes. Mais frequentemente, a loucura é imposta a outros (não psicóticos) por um personagem dominante (Jorge, no caso), cujo delírio seduz e conquista. Como assim, seduz?
Num mundo em que a maioria sofre de uma tremenda fragilidade narcisista, ou seja, da sensação de ser invisível e desnecessário, os Jorges só podem proliferar, pois eles garantem muito mais do que pão: eles garantem um sentido e uma função no mundo para todos.
Os canibais do agreste são três loucos. A partir de que número eles seriam uma seita? E uma religião?
Na quarta-feira retrasada, em Garanhuns (PE), a polícia prendeu Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, 51, sua mulher, Isabel Cristina Torreão Pires da Silveira, também 51, e Bruna Cristina Oliveira da Silva, 25, que vivia com o casal e era a amante de Jorge.
Os três são acusados de ter matado no mínimo três jovens mulheres: duas nos últimos meses, em Garanhuns, e outra, em 2008, em Olinda. Eles confessaram ter comido pele, vísceras e carne das vítimas. Isabel declarou ter usado esses ingredientes na preparação de empadas que ela vendia cidade afora. Os restos das vítimas recentes foram encontrados no quintal da casa do trio.
Jorge, formado em educação física e com uma segunda faculdade ao menos começada, deixou um manuscrito de 34 minicapítulos e cinco desenhos registrado em cartório (como se temesse pelos direitos autorais). Também existe um filme, que Jorge e Isabel produziram e no qual eles atuaram, anos atrás. Bruna, ao que parece, escreveu um diário, que acaba de ser encontrado.
Passei a tarde de domingo lendo o manuscrito de Jorge; o memorial se interrompe pouco depois da primeira vítima, Jéssica (a qual, antes de ser morta, pariu uma menina, que passou a viver com o trio e de quem Jorge afirma ser o pai).
No memorial, Jorge também relata o diagnóstico de esquizofrenia paranoide, as tentativas de medicação e a passagem por diversos serviços de saúde mental.
Numa entrevista televisiva (http://migre.me/8GY8q), Jorge conta que as vítimas precisavam ser purificadas, e purificar as almas era a "missão" do trio. As mulheres, atraídas por propostas de trabalho, eram levadas, na conversa, a falar "coisas boas", de maneira a poderem morrer "perdoadas".
Comer a carne era parte do ritual de purificação; talvez os assassinos incorporassem assim a nova "pureza" de suas vítimas -afinal, segundo muitos antropólogos, o canibal assimila as qualidades da pessoa de quem ele se alimenta. De fato, depois do primeiro assassinato, Bruna passou a ser chamada de Jéssica, nome da primeira vítima.
Seja como for, o crime do trio inspirou um horror descomunal. Populares de Garanhuns, não podendo linchar os três, lincharam a casa, que foi saqueada e queimada por duas vezes.
De fato, o autocanibalismo é frequente (as pessoas comem suas unhas e peles sem problema), mas o canibalismo é muito raro. Aparece na ficção (Hannibal Lecter) e em alguns casos em que está ligado a fantasias sexuais extremas (vide o caso de Jeffrey Dahmer e o caso de Armin Meiwes, que, na Alemanha, em 2003, encontrou Bernd Brandes, o qual queria ser devorado e participou da comilança de seu próprio corpo até morrer). Desse canibalismo sexual sobra em nós a vontade de morder o ser amado -além do duplo sentido lusitano de "comer".
Fora isso, o canibal é sobretudo uma construção cultural, que serve para apontar a selvageria no primitivo e no outro em geral (sobre isso, ler o excelente "An Intellectual History of Cannibalism", de Catalin Avramescu, Princeton).
Agora, o canibalismo, para Jorge, não foi um transporte sensual ou sexual, mas o jeito louco de se dar uma identidade e um sentido. Os cristãos sustentam sua força espiritual incorporando simbolicamente o corpo de Cristo na comunhão; Jorge tentou se tornar alguém no mundo devorando realmente suas vítimas purificadas. Ele conseguiu: tornou-se a mão vingadora do arcanjo, com a "clara" missão de purificar o mundo.
Alguém me perguntou: como três pessoas podem compartilhar a mesma loucura?
A psiquiatria francesa do século 19 nomeou a "Folie à deux" (loucura a dois), que o DSM (manual de diagnóstico de transtornos mentais) hoje chama de Transtorno Psicótico Compartilhado. Às vezes, dois ou mais psicóticos podem influenciar reciprocamente a elaboração de seus temas delirantes. Mais frequentemente, a loucura é imposta a outros (não psicóticos) por um personagem dominante (Jorge, no caso), cujo delírio seduz e conquista. Como assim, seduz?
Num mundo em que a maioria sofre de uma tremenda fragilidade narcisista, ou seja, da sensação de ser invisível e desnecessário, os Jorges só podem proliferar, pois eles garantem muito mais do que pão: eles garantem um sentido e uma função no mundo para todos.
Os canibais do agreste são três loucos. A partir de que número eles seriam uma seita? E uma religião?
quinta-feira, 12 de abril de 2012
Estupro de menores
Como diz a turma dos bêbados: com prostituta vale tudo, pois, de qualquer forma, ela se dá para todos
COMO MUITOS, fiquei perplexo diante da recente decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que inocentou um homem acusado de estupro por ter se relacionado com três meninas de 12 anos que se prostituíam.
Os fatos aconteceram antes de 2009, quando o Código Penal passou a considerar como estupro qualquer relação (mesmo aparentemente consensual) com menor de 14 anos, pois, de qualquer forma, o menor não seria capaz de consentir com discernimento.
As leis não sendo retroativas, o STJ julgou no quadro legal de antes de 2009, e o homem foi inocentado porque, as meninas sendo prostitutas, a relação com elas não teria sido propriamente estupro.
Inevitavelmente, o argumento ressuscita o preconceito segundo o qual a condição da vítima faria diferença na hora de decidir se houve crime contra ela ou não. É o ranço das turmas de bêbados frustrados do sábado à noite: com prostituta e travesti de beira de estrada vale tudo, pois, de qualquer forma, eles se dão para todos, não é?
Mas não é só isso: o cliente de uma prostituta de 12 anos é, no mínimo, cúmplice da violência de quem, direta ou indiretamente, levou a menina a se prostituir.
Claro, a prostituição pode ser uma escolha livre, mas essa liberdade, em nossa cultura, só pode ser reconhecida a quem é maior de 18 anos -certamente não a meninas de 12. Essa observação, com a qual todos concordamos (imagino), introduz forçosamente uma pergunta: o que é, para nós, um menor? Como definimos esse ser "provisório", que precisa ser protegido, inclusive de seus próprios impulsos?
Digo logo: a pergunta e a tentativa de responder são interessantes, mas não mudam nada quanto ao fato de que sexo com uma menina de 12 anos, em nossa cultura, só pode ser estupro. Vamos lá.
Se tentarmos definir o menor por seu desenvolvimento inacabado, encontraremos dificuldades insolúveis. Digamos que a criança não tem experiência, saber, estruturas cognitivas ou maturidade suficientes para escolher de maneira responsável. Concordo, mas o problema é que há coortes de adultos que poderiam ser considerados como crianças por falta de experiência, maturidade, saber etc.
Por exemplo, no recente "Incognito - As Vidas Secretas do Cérebro" (Rocco), David Eagleman mostra que muitos criminosos são impulsivos como pré-adolescentes e apresentam um desenvolvimento incompleto do córtex pré-frontal comparável ao das crianças. Se escolhermos esse critério para definir a imaturidade infantil, deveríamos soltar esses indivíduos, considerá-los como crianças (não como criminosos) e mandá-los de volta para a escola, para que se tornem adultos e responsáveis por seus atos. Problema, hein?
De fato, as definições da infância por falta de maturação etc. são incertas. Talvez seja mais fácil defini-la pelo caráter especial de nosso amor: crianças são as que protegemos para que conheçam uma felicidade que nos fugiu e para que continuem nossa breve vida.
Por isso, aliás, preferimos manter as crianças longe das necessidades, dos perigos, das violências e também do sexo, que é, para nós, uma fonte frequente de frustração.
Há tempos (desde o trabalho seminal de Philippe Ariès, "História Social da Criança e da Família", LTC), os historiadores nos mostram que essa maneira de amar as crianças surgiu com a modernidade. Com o desencanto do mundo e a morte de Deus, a vida individual se tornou o único horizonte da existência moderna: as crianças nos consolariam, portanto, de nossa mortalidade, pois, por elas, duraremos um pouco mais.
É bonito e faz sentido. Mas, às vezes, o amor moderno das crianças parece grande demais: por exemplo, fato provavelmente incompreensível por um indivíduo clássico, nós achamos a morte de uma criança infinitamente mais trágica do que a de um adulto. E o mesmo vale para o estupro.
Ora, um excesso de sentimentos ternos, amorosos e protetores é facilmente o sinal de uma formação reativa. Em outras palavras, talvez, para explicar os excessos de nosso amor pelas crianças, seja preciso supor que, de fato, nós as odiamos porque, justamente, 1) elas nunca estão à altura da expectativa de que compensem tudo o que não deu certo em nossa vida e 2) elas estarão aqui quando nós não estivermos mais.
Em suma, não paramos de proteger as crianças delas mesmas e do mundo, mas as protegemos tanto que fica difícil não imaginar que queiramos sobretudo (ou também) protegê-las de nós mesmos.
COMO MUITOS, fiquei perplexo diante da recente decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que inocentou um homem acusado de estupro por ter se relacionado com três meninas de 12 anos que se prostituíam.
Os fatos aconteceram antes de 2009, quando o Código Penal passou a considerar como estupro qualquer relação (mesmo aparentemente consensual) com menor de 14 anos, pois, de qualquer forma, o menor não seria capaz de consentir com discernimento.
As leis não sendo retroativas, o STJ julgou no quadro legal de antes de 2009, e o homem foi inocentado porque, as meninas sendo prostitutas, a relação com elas não teria sido propriamente estupro.
Inevitavelmente, o argumento ressuscita o preconceito segundo o qual a condição da vítima faria diferença na hora de decidir se houve crime contra ela ou não. É o ranço das turmas de bêbados frustrados do sábado à noite: com prostituta e travesti de beira de estrada vale tudo, pois, de qualquer forma, eles se dão para todos, não é?
Mas não é só isso: o cliente de uma prostituta de 12 anos é, no mínimo, cúmplice da violência de quem, direta ou indiretamente, levou a menina a se prostituir.
Claro, a prostituição pode ser uma escolha livre, mas essa liberdade, em nossa cultura, só pode ser reconhecida a quem é maior de 18 anos -certamente não a meninas de 12. Essa observação, com a qual todos concordamos (imagino), introduz forçosamente uma pergunta: o que é, para nós, um menor? Como definimos esse ser "provisório", que precisa ser protegido, inclusive de seus próprios impulsos?
Digo logo: a pergunta e a tentativa de responder são interessantes, mas não mudam nada quanto ao fato de que sexo com uma menina de 12 anos, em nossa cultura, só pode ser estupro. Vamos lá.
Se tentarmos definir o menor por seu desenvolvimento inacabado, encontraremos dificuldades insolúveis. Digamos que a criança não tem experiência, saber, estruturas cognitivas ou maturidade suficientes para escolher de maneira responsável. Concordo, mas o problema é que há coortes de adultos que poderiam ser considerados como crianças por falta de experiência, maturidade, saber etc.
Por exemplo, no recente "Incognito - As Vidas Secretas do Cérebro" (Rocco), David Eagleman mostra que muitos criminosos são impulsivos como pré-adolescentes e apresentam um desenvolvimento incompleto do córtex pré-frontal comparável ao das crianças. Se escolhermos esse critério para definir a imaturidade infantil, deveríamos soltar esses indivíduos, considerá-los como crianças (não como criminosos) e mandá-los de volta para a escola, para que se tornem adultos e responsáveis por seus atos. Problema, hein?
De fato, as definições da infância por falta de maturação etc. são incertas. Talvez seja mais fácil defini-la pelo caráter especial de nosso amor: crianças são as que protegemos para que conheçam uma felicidade que nos fugiu e para que continuem nossa breve vida.
Por isso, aliás, preferimos manter as crianças longe das necessidades, dos perigos, das violências e também do sexo, que é, para nós, uma fonte frequente de frustração.
Há tempos (desde o trabalho seminal de Philippe Ariès, "História Social da Criança e da Família", LTC), os historiadores nos mostram que essa maneira de amar as crianças surgiu com a modernidade. Com o desencanto do mundo e a morte de Deus, a vida individual se tornou o único horizonte da existência moderna: as crianças nos consolariam, portanto, de nossa mortalidade, pois, por elas, duraremos um pouco mais.
É bonito e faz sentido. Mas, às vezes, o amor moderno das crianças parece grande demais: por exemplo, fato provavelmente incompreensível por um indivíduo clássico, nós achamos a morte de uma criança infinitamente mais trágica do que a de um adulto. E o mesmo vale para o estupro.
Ora, um excesso de sentimentos ternos, amorosos e protetores é facilmente o sinal de uma formação reativa. Em outras palavras, talvez, para explicar os excessos de nosso amor pelas crianças, seja preciso supor que, de fato, nós as odiamos porque, justamente, 1) elas nunca estão à altura da expectativa de que compensem tudo o que não deu certo em nossa vida e 2) elas estarão aqui quando nós não estivermos mais.
Em suma, não paramos de proteger as crianças delas mesmas e do mundo, mas as protegemos tanto que fica difícil não imaginar que queiramos sobretudo (ou também) protegê-las de nós mesmos.
quinta-feira, 5 de abril de 2012
American dream
Republicanos como Santorum são iguais ao Talibã: querem que a lei de seu deus valha para todos
Os Estados Unidos parecem estar divididos como nunca. No entanto, todos concordam: para ganhar as eleições presidenciais, é preciso conquistar o centro moderado -sem ele, não há vitória possível. Mas o que é, nos EUA, o centro político?
Em geral, a gente entende assim: os democratas são socialistas "rosas", indulgentes em matéria de costumes e convencidos de que o governo precisa intervir na vida econômica (por exemplo, para compensar as diferenças excessivas à força de impostos e programas assistenciais), e os republicanos são caretas em matéria de costumes, mas contrários a todo tipo de tutela governamental.
Essa descrição sumária omite um pano de fundo que é comum a democratas e republicanos, simplesmente por eles serem norte-americanos, e esse pano de fundo é feito de antigovernismo e valorização da liberdade individual.
Por exemplo, quando um democrata é indulgente em matéria de costumes, não é necessariamente por inclinação libertina, mas por ele colocar a liberdade dos indivíduos acima da moral comum.
Ou, então, quando um republicano defende um capitalismo desregrado, que garanta ao empreendedor a mesma liberdade que permitiu a expansão do país para o Oeste, não é por convicção econômica, mas porque ele acha que o governo deveria colocar obstáculos nas rodas dos indivíduos só se eles forem absolutamente necessários para a vida em comunidade.
Esse espírito libertário é o do centro americano, sem o qual ninguém é eleito. Dos dois lados desse centro, há extremos que o ameaçam e dos quais os moderados não gostam.
Por exemplo, as aspirações de justiça social dos democratas "extremistas" podem parecer perigosas aos olhos do centro moderado: ainda hoje, discute-se seriamente para saber se o seguro médico universal, por ser obrigatório, não ameaça a liberdade do indivíduo.
Quanto ao "extremismo" republicano, que também faz o desgosto dos moderados, ele mostrou sua cara especialmente no último ano.
Para não perder as simpatias do centro, o partido republicano obviamente prefere candidatos nada "extremos" -hoje, Mitt Romney, em 2008, John McCain.
Mas o sucesso da campanha do maior concorrente de Romney, o senador Rick Santorum, mostra que a tentação extremista republicana é forte. De que se trata?
Santorum, por exemplo, declarou que ele teve vontade de vomitar quando ouviu o presidente Kennedy defender a separação da igreja e do Estado. É óbvio que a união de Estado e igreja leva qualquer governo a atropelar a liberdade privada de seus cidadãos, ou seja, é óbvio que a frase de Santorum é oposta aos ideais libertários do centro americano.
Por que ele se engajou neste caminho? De onde lhe veio essa ideia? Costuma-se pensar (e dizer) que o sonho americano começa com os puritanos, que saíram da Inglaterra a procura de liberdade religiosa. Mas os puritanos estavam interessados só na sua própria liberdade religiosa, não na dos outros.
Como projetava John Winthrop em 1630, ainda no barco que o levava para a nova terra, eles construiriam "uma cidade que brilharia nas alturas", exemplo para mundo, mas uma cidade fechada (na qual quem não concordasse seria enforcado como as bruxas de Salem e a mulher que pecasse por adultério seria marcada com uma letra escarlate).
Por sorte, em 1631, Roger Williams começou a pregar a separação de Estado e igreja e o direito de qualquer um de venerar o deus que bem entendesse.
Williams foi expulso e fundou Providence, outra cidade "nas alturas", mas aberta, onde ele inventou a liberdade de professar sua fé sem impô-la aos outros -ao contrário, com a ideia de que defender a liberdade dos outros é a melhor maneira de proteger a nossa própria liberdade.
Pois bem, o centro moderado norte-americano acredita em Roger Williams. Mas é preciso constatar que Rick Santorum e os republicanos extremistas não são uma invenção recente: como John Winthrop, eles sonham com a paz simplória de um vilarejo onde não se leia nada além da Bíblia e onde sempre seja possível dizer o que é certo e errado -e, claro, proibir o que seria "errado".
É curioso que ninguém repare no óbvio: os sonhos deles não são diferentes dos sonhos do Talibã de qualquer vilarejo do Afeganistão.
Os fundamentalistas são todos iguais: "apenas" querem que a lei de seu deus seja mandatória para todos os demais.
Por sorte nossa, não é esse o sonho daquele centro moderado norte-americano que, em geral, escolhe os presidentes.
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