quinta-feira, 9 de abril de 2009

Chávez com nhoque



Para o "discurso de nhoque", nada de bom pode acontecer sem uma renúncia penosa


NUM DOMINGO ITALIANO do fim dos anos 50, minha família estava reunida para o almoço. Minha avó materna servia nhoque feito em casa. Detalhe: nos anos 30 e sobretudo durante a guerra, meu avô materno não tinha sido fascista militante, mas tampouco ele tinha resistido. Ele fora passivo e um tanto gregário, enquanto meu pai, liberal e social-democrata, tinha encarado o inimigo.

Essa diferença, em geral, não produzia faíscas, mas, naquela ocasião, meu avô, descontente com o governo da época, esboçou uma pequena lista dos "benefícios" do fascismo: vantagens trabalhistas, sindicatos corporativos, grandes obras, saneamento da planície do sul do Lazio (a região de Roma). Pena, ele acrescentou, que isso tivesse nos levado à guerra e à aliança com a Alemanha nazista. Houve um silêncio consternado dos meus pais, que forçou meu avô a continuar a enumeração dos custos de tamanhos "benefícios".

Mastigando nhoque, ele resmungou alguma coisa sobre a aventura africana, a censura, a prisão e o confinamento dos opositores, as leis raciais etc.. Meu pai perguntou: "E, para sanear pântanos e instituir sindicatos, era preciso tudo isso?". A pergunta pairou no ar, sem resposta. O nhoque, ao se desfazer em nossa boca, ficou pastoso e chocho. Desde então, em meu vocabulário íntimo, a expressão "discurso de nhoque" designa toda conversa que salienta os benefícios de um regime e silencia ou minimiza seu lado sinistro, com o pressuposto de que o lado sinistro seja um custo "necessário".

Nos anos 60, pratiquei bastante o discurso de nhoque. Militante de esquerda, assolado pelas notícias sobre a falta de liberdade do outro lado da "Cortina de Ferro", eu geralmente respondia: "Liberdade de quê? De morrer de fome?" -como se a liberdade fosse o preço que se paga normalmente para poder comer. À força de viajar pelos países do bloco socialista, percebi que, quase sempre, o discurso de nhoque é a fala do turista, que vai voltar sem problemas para seu país. Quem paga seu pão com a renúncia a poder viajar, expressar-se, reunir-se etc., em geral, perde a fome. Gostei cada vez menos do discurso de nhoque.

Chego a um almoço de alguns dias atrás. Por fatalidade, um amigo trouxera uma iguaria: nhoque recheado. Nhoque vai nhoque vem, dois comensais começaram a falar de Hugo Chávez e dos "benefícios" de seu regime. Como era de esperar (considerando o que estava na mesa), foi em tom de nhoque: claro que há o que dizer sobre a truculência de Chávez, mas olhem para os benefícios! Mais uma vez, como se fosse "normal" que os benefícios se pagassem pela truculência.
Ora, vivemos dias interessantes: pelo mundo afora, discute-se sobre a sociedade que queremos. E talvez, à força de errar, a gente tenha aprendido a pensar além da alternativa simplista entre, de um lado, a liberdade absoluta dos agentes econômicos e, do outro lado, o "Estado forte". Hoje, em tese, sabemos que, para evitar a maracutaia financeira, não é necessário que os agricultores sejam impedidos de vender livremente suas batatas no mercado da vila (estou exagerando? Pergunte aos pequenos produtores cubanos). Reciprocamente, para evitar a opressão do Estado e dos "partidos únicos", não é necessário recusar assistências e garantias coletivas (estou exagerando? Pergunte aos milhões de norte-americanos sem seguro médico).

Mas continua grande a tentação do discurso de nhoque, pelo qual nada do que queremos pode acontecer sem a contrapartida de uma renúncia penosa. Daqui a pouco, um economista da Goldman Sachs nos explicará que, para sair da crise, precisamos aceitar um partido único de tipo chinês. De onde vem a força do discurso de nhoque? Freud observou que, quando se trata de reprimir nosso próprio querer, sempre tendemos a reprimir muito mais do que é preciso.

Por exemplo, estou a fim de transar com todo o mundo, mas também quero ser um marido ou uma esposa fiel? Pois é, desisto do sexo de vez, entrando num convento. Ou, então, estou cansado da insegurança nas nossas ruas; para facilitar e garantir o policiamento, topo que todos sejamos presos e vivamos numa prisão. O que fazer contra o discurso de nhoque? A receita é dos anos 60.

Não acredite nas alternativas excludentes (pão OU liberdade) e peça alegremente o "impossível": pão COM liberdade. Não se preocupe: na maioria dos casos, entre os dois, não há contradição alguma.

Um comentário:

  1. O discurso excludente remonta aos tempos bíblicos quando as bênçãos e as maldições foram proferidas sobre dois montes. Hoje, o viés não é religioso mas vem carregado de significado emocional. Não é de se admirar que a carga atávica acabe por atingir todos os setores ideológicos. Afinal, parece que o "nhoque" está em nosso DNA. Um abraço!

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