A primeira tarefa do crítico é a de permitir que a obra entre na vida do leitor e a transforme |
TEMPOS ATRÁS , neste espaço, eu estranhei que o cinema não fosse matéria escolar: os alunos, pelo mundo afora, devem aprender a ler e a apreciar as artes e a literatura (incluindo o teatro -reduzido ao texto), mas não o cinema.
Talvez seja por alguma sisudez dos pedagogos que escolhem programas e objetos de estudo: "O cinema diverte? Então, divirtam-se; a escola não tem nada a ver com isso", como se o prazer das massas implicasse o escasso valor cultural dos "produtos".
As próprias artes e a literatura parecem estar no "panteão" das matérias escolares à condição que os alunos renunciem ao "barato" de ler e de olhar. Por sorte, sempre há professores que contaminam os alunos com seu próprio prazer na fruição de literatura e arte. Mas eles são exceção: em geral, o prazer é esmagado pelo peso da história literária (frequentemente transmitida sem uma relação viva com a história das ideias e dos homens) e de uma análise, dita "crítica", que teima em excluir o essencial da experiência do leitor, ou seja, o fato de que, lendo, ele transforma sua experiência de si mesmo, dos outros e do mundo. Por exemplo, durante o secundário, meu professor de literatura conseguiu me tornar quase impossível a leitura (obrigatória) de "Os Noivos", de Manzoni, que é (descobri depois) um grande romance. Em compensação, meu professor de grego, embora tivesse de nos ensinar a língua junto com sua literatura, transformou a "Odisseia" em parte do nosso mito pessoal. Com ele, a gente se apropriou de um patrimônio de experiências que mal poderíamos viver numa vida inteira. Quem nunca viajou soube o que é a nostalgia de Ítaca, e quem viajou viveu aquela nostalgia mil vezes mais intensamente.
Foi publicado recentemente, aliás, um pequeno livro de Tzvetan Todorov, "A Literatura em Perigo" (Difel), que recomendo a todos os que ensinam. Todorov, que foi um dos pregoeiros do formalismo na análise literária francesa, constata o fracasso do ensino da literatura e propõe que, antes de formar críticos, a gente forme leitores.
Mas voltemos ao cinema. Uma boa notícia não faz mal: no Estado de São Paulo, começa agora o programa "O Cinema Vai a Escola" para o ensino médio. Os educadores já receberam uma primeira caixa com 20 filmes em DVD (outra virá) e dois volumes do "Caderno de Cinema do Professor" (um terceiro também chegará mais tarde). O primeiro lote inclui o DVD "Luz, Câmera... Educação", que mostra um pouco os artifícios e recursos do cinema, mas o projeto do programa aparece sobretudo no primeiro caderno dos professores. Trata-se de um guia para conversas possíveis com os alunos, depois de cada filme. Sem esquecer completamente a análise da linguagem cinematográfica e a história do cinema, o acento é sobre a relação de cada filme com questões que podem surgir em outras disciplinas ou, simplesmente, na vida dos alunos: problemas, dramas e dilemas que são, no fundo, cotidianos.
Ou seja, a intenção é a de enriquecer a experiência cinematográfica dos alunos, não para que jubilem ao reconhecer, em cada cena, planos abertos e planos fechados, mas para que possam, graças aos filmes aos quais eles assistem, tornar sua existência mais complexa e mais intensa. Talvez alguém se queixe de que não há, no novo ensino, teoria e história suficientes ou que ele não transforma os alunos em críticos. Respondo assim.
Na faculdade, fui aluno de alguns grandes professores de literatura (J. Starobinski, J. Rousset, G. Steiner, R. Dragonetti, R. Barthes). Cada um de seu jeito, eles me ensinaram a analisar um texto, mas a razão de minha gratidão por eles é outra: todos confirmaram meu amor pela ficção, porque todos entendiam que a primeira tarefa do crítico é a de se deixar seduzir pela obra e, com isso, ajudar o leitor a permitir que a obra entre na sua vida e a transforme. Havia, na faculdade, uma exceção: um professor (de novo, de literatura italiana) que parecia medíocre, e talvez fosse mesmo. Ele sabia pouco ou nada de teoria crítica, não analisava os textos, apenas declamava longos trechos das obras e, emocionando-se, contava casos de sua vida nos quais a leitura daquela obra o tinha ajudado a viver.
Ruim? Pode ser. Mas o fato é que ele também nos dava uma vontade danada de ler os livros que trazia para a aula. Desejo que o mesmo aconteça com o cinema nas escolas de São Paulo e, quem sabe, do resto do Brasil.
ccalligari@uol.com.br
Muito bem, sou poeta e estudante de pedagogia, estou tentando entender este mistério, que a escola e a poesia ficam tão afastadas.
ResponderExcluirSeu artigo me ajudou bastante, não deu a solução, mas acrescentou um conhecimento.
Ola Contardo,
ResponderExcluirAdorei este artigo, até porque presto consultoria para algumas franquias e uso muitos filmes para treinamentos,reflexões e debates. Quanto a educação das crianças,já faz parte das nossas vidas, porém adoraria que o cinema fizesse parte do cotidiano deles na escola tb, concordo plenamente...Falando nisso, já viu o filme infantil do Tim Burton "Coraline"? Meio sinistro, rs...Mas é ótimo...
Abraços,
Cris Wagner