quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

"Em Direção ao Sul"

A desigualdade produz, nas elites, a fantasia de estar num harém de corpos escravos

NO FIM de semana passado, São Paulo estava deserta.
Nos faróis, até a turma habitual de pedintes, saltimbancos e vendedores ambulantes era reduzida ao mínimo.

Na sexta à noite, mostrando a cidade a um turista europeu (meu conhecido), parei na esquina da Estados Unidos com a Nove de Julho. Uma moça, muito bonita e habilidosa, fez seus malabarismos só para nós. Dei-lhe alguns reais (merecidos) e lhe desejei feliz Ano Novo.
Meu hóspede fez um comentário que queria ser engraçado: "Poderíamos convidá-la para casa...".

Covardemente, reagi no estilo esperado (o do clube do Bolinha). Resmunguei "pois é...", num tom entre incerto e maroto.

Mais tarde, fui assistir a "Em Direção ao Sul", de Laurent Cantet, que estreava naquele dia. O filme (excelente) é inspirado em uma série de contos do haitiano Dany Laferrière ("Vers le Sud"). O pano de fundo é o Haiti dos anos 70: miséria e poder ilimitado da gangue de papa Doc.
Três mulheres brancas e maduras do hemisfério norte (duas americanas e uma canadense) passam suas férias num hotel na beira da praia; elas procuram o sol e, sobretudo, os garotos negros, que namoram e transam com elas e que elas pagam em dinheiro e presentes.

Numa cena do filme, as mulheres se perguntam por que não gostam tanto dos negros de seus países de origem. A pergunta vale para o turismo sexual em geral: por que ir tão longe? Afinal, nas cidades do primeiro mundo, há uma ampla escolha de amores à venda. A troca é mais barata no Haiti, no Brasil ou nas Filipinas, mas (considerando o custo da viagem) o argumento financeiro não se sustenta sozinho.

Os "tristes trópicos" de quem vive no terceiro mundo são a condição necessária para que existam os trópicos alegres do turista sexual. Mas a razão disso não é só econômica.

Explico. Na vida erótica, funciona uma espécie de proporção: para desejar sexualmente, é como se precisássemos, ao menos por um momento, despojar o outro de sua dignidade subjetiva, considerá-lo apenas como corpo. É por isso que, para alguns, é impossível desejar e amar o mesmo outro. É por isso que a maioria, na hora do sexo, não sussurra palavras de carinho, mas solta "injúrias" que rebaixam a parceira ou o parceiro, ou seja, que o transformam em carne entregue ao desejo. Nada de "meu anjo". Na cama, é "puta" e "cafajeste".

Nos lugares preferidos pelo turismo sexual, essa configuração banal da vida amorosa está, por assim dizer, realizada de antemão: o turista encontra sujeitos que já são reduzidos a seu corpo. Se não bastasse o passado colonial ou escravagista, a desigualdade brutal prepara os corpos tropicais para o festim do turista sexual. Laferrière, num outro livro ("La Chair du Maître", a carne do dono), escreve: "É simples: um pequeno grupo de pessoas possui, neste país, todo o dinheiro disponível.

Como se sabe, com o dinheiro dá para comprar tudo: os seres e as coisas". E os seres, nesse caso, podem se tornar objetos eróticos sem empecilhos: destituídos de cidadania, eles são, se não coisas, carne.

Por exemplo, Legba, o jovem negro que, no filme, é objeto de desejo das senhoras, pode ser uma espécie de felino que elas querem acariciar e mimar porque já foi transformado em bicho pela miséria social e política de seu país.

Com os negros do Norte, não é tão fácil. Certo, eles são descendentes de escravos e ainda assombram os sonhos sexuais das elites brancas do Norte, mas a diminuição da desigualdade e a conquista de direitos políticos efetivos os tornaram cidadãos. Para lidar com seus corpos, é necessário lidar também com suas pessoas.

Saindo do cinema, pensei no comentário de meu conhecido sobre a jovem malabarista de farol. Tanto faz que ele fosse europeu: o Brasil tem dois mundos suficientemente separados para que seja possível praticar turismo sexual sem sair do país. Pela força do passado e pela distribuição de riqueza que o preserva, somos divididos em gente e bichos, sujeitos e vira-latas que talvez seja possível levar para casa, oferecendo um biscoito.

Algo resiste ao fim de uma desigualdade que priva os desfavorecidos de cidadania e os reduz a seu corpo. E não são apenas dificuldades administrativas e econômicas. A desigualdade é também uma fonte, talvez envergonhada, de prazer erótico; ela alimenta, nas elites, a fantasia (apenas e mal reprimida) de estar, o tempo todo, num harém de corpos escravos.

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