Decidir em nosso foro íntimo é quase sempre melhor do que inventar leis e doutrinas |
EM 1870, morreu George Holland, um ator de origem inglesa, que morava em Nova York na pobreza. Naquela época, muitas igrejas se negavam a oferecer ritos religiosos ao corpo dos atores, que eram considerados párias: uma casta de perdidos.
Na hora de enterrar George Holland, portanto, os amigos e os filhos encontraram sérias dificuldades, até que alguém lhes assinalou (com um certo desprezo) uma "igrejinha atrás da esquina, que talvez topasse essas coisas". Era uma igreja anglicana, que ainda existe, em Nova York, na rua 29, entre a Quinta Avenida e a Madison.
Assim, logo antes do Natal de 1870, o reverendo George Hendric Houghton celebrou o funeral de George Holland, e a "igrejinha atrás da esquina" se tornou, desde então, o refúgio preferido dos atores da Broadway -e dos atores em geral.
Depois do Natal (bem nesta época do ano, 136 anos atrás), a imprensa americana levou a questão para a opinião pública, que, em geral, aprovou o ato do reverendo.
Há quem diga que a generosidade de Houghton fosse uma conseqüência de sua paixão pelo teatro. Essa suposição o torna ainda mais simpático, mas tudo indica que sua motivação era mais ampla.
Houghton não era homem de se orientar pela opinião dos demais nem por doutrinas estabelecidas.
Durante a Guerra de Secessão americana, ele tinha abrigado escravos fugitivos. Mais tarde, fundou a primeira escola dominical para negros. Também ele instituiu uma prática (que se popularizou um pouco): na janela de sua paróquia, colocou uma vela que queimava a noite inteira e, na porta, uma campainha, para assinalar que, na necessidade, era sempre possível procurar ajuda na casa de Deus.
Pois bem, para enterrar George Holland, Houghton não pediu a autorização de ninguém. Não se preocupou com a doutrina oficial de sua congregação em matéria de atores.
É verdade que a Igreja Anglicana, em geral, não promove doutrinas de cima para baixo, mas aposto que, mesmo se ele fosse padre católico, Houghton não agiria diferente: decidiria segundo sua consciência.
Seu moto pessoal era uma citação de Terêncio (um autor, que, além de escrever comédias, não podia ser cristão por ter nascido bem antes de Cristo): "homo sum: humani nihil a me alienum puto", sou homem, nada do que é humano me é alheio.
Nestes dias, em Roma, a Igreja Católica recusou o enterro religioso a Piergiorgio Welby, um italiano que sofria de distrofia muscular progressiva, vivia paralisado há dez anos e, quando a doença lhe retirou a própria possibilidade de falar, quis que seu médico desligasse o respirador artificial. Como relatou a reportagem da Folha no dia do Natal, o papa (que não se opôs ao funeral religioso de Pinochet) achou bom se pronunciar nesse caso e declarou que "o nascimento de Cristo nos ajuda a tomar consciência do que vale a vida de todo ser humano, desde seu primeiro instante até seu declínio natural".
É um bom exemplo de como a "autoridade" permite qualquer distorção. É claro que o nascimento de Cristo celebra a vida (como todos os nascimentos), mas é meio capenga escolher o Cristo como exemplo de valorização da vida acima de tudo. Afinal, o Cristo, que eu saiba, não fugiu de Jerusalém para salvar a pele, mas ficou encarando o suplício porque pensava, por exemplo, que sua missão valesse mais do que sua vida.
Fora esse detalhe, não sou "a favor" da eutanásia nem "contra" ela. Assim colocada, a alternativa não me interessa, pois tenho a maior dificuldade em ser "contra" ou "a favor" quando se trata de generalidades. Ou melhor, sou quase sempre contra quem legisla abstratamente: a eutanásia não pode (e o ditador assassino e corrupto pode, porque o caso não está no livro).
Teria preferido que, no caso da morte de Piergiorgio Welby, não houvesse debate, apenas um padre que ouvisse o pedido da mãe, considerasse as circunstâncias da vida de Welby e fizesse seu dever ou, então, se assim ditasse sua consciência, rejeitasse o pedido e encaminhasse os familiares a um outro padre, sem fazer disso um tema de discussão, sem pedir que alguém, de cima, legislasse. Por quê?
Porque nossa capacidade de decidir, em nosso foro íntimo, o que é justo e o que é errado é infinitamente maior que nossa capacidade de inventar leis e doutrinas que respeitem a singularidade das vidas concretas.
Um bom começo de ano a todos.
Contardo, boa noite !
ResponderExcluirAntes de comentar o seu texto, queria exprimir a minha felicidade em estar no lugar certo, na hora certa. Explico. Assistindo a sua entrevista no programa da Maria Gabriela, pude tomar conhecimento sobre o seu livro e sobre a sua coluna semanal em jornal. Desde então, sempre leio o que você vem escrevendo, e aquilo que já escreveu no passado. E por isso resolvi comentar neste texto de mais de um ano, pois apesar da data em que foi escrito, o tema está totalmente atual com o que vem sendo discutido em nosso país (posso dizer nosso, certo? Acho que deve se sentir um pouco brasileiro também). Em fim, concordo com você, e essa sempre foi a minha filosofia.... não generalizar o que pode e o que não pode, devemos sim no nosso íntimo fazer o que achamos certo, sem impor a todos o que para mim é o certo.
Foi e tem sido um enorme prazer refletir com seus textos !!!
Até um próximo comentário...