quinta-feira, 5 de maio de 2005

Um circo de rins, fígados e informações confidenciais

Estreou sábado, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, "Um Circo de Rins e Fígados", peça que Gerald Thomas escreveu especialmente para Marco Nanini (em cartaz até o fim de junho).

Na abertura da peça, Nanini recebe um monte de caixas que contêm documentos secretos e pedaços de corpo (rins, fígados e -aprendemos mais tarde- destroços de sua musa inspiradora). Tudo isso foi enviado por João Paradeiro, que planeja instalar uma maqueta de Brasília no meio da sala de Nanini. Com isso, talvez seja possível os caminhos pelos quais o governo nacional sempre dá errado.

Gerald Thomas foi muito próximo de Samuel Beckett, que numerosas histórias literárias insistem em definir como o mestre do teatro do absurdo. Nunca entendi o porquê desse apelido. Tome "Esperando Godot", a peça mais conhecida de Beckett: qualquer um que tenha freqüentado uma roda de padaria sabe que a peça (seus diálogos e sua história de espera não se sabe de quê) é absolutamente realista.

O mesmo vale para o "Circo", de Gerald Thomas. À primeira vista, talvez você ache fantasioso ou estranho o começo que acabo de descrever. Mas eu me senti imediatamente em casa, pois recebo, a cada dia, exatamente os mesmos pacotes que chegam à casa de Nanini.

Pedaços de corpo? Escrevo no domingo; acordei tranqüilo, abri a porta com o café na mão e eis que a Folha me entregou os corpos torturados dos guerrilheiros do Araguaia, 1.500 esqueletos de iraquianos exterminados por Sadam Hussein e nove turistas feridos ou mutilados no Egito.

Sábado, para variar, eu tinha recebido o e-mail de uma amiga antropóloga que participa de uma investigação internacional sobre comércio de órgãos para transplante. Quer mais?

Quanto aos documentos, Nanini tem sorte. João Paradeiro lhe manda apenas as provas do envolvimento americano no golpe de 64. Eu costumo receber, ao mesmo tempo, documentos segundo os quais as provas desse envolvimento foram divulgadas e fabricadas não por João Paradeiro, mas pela KGB, o que, obviamente, confunde meus pensamentos.

Tudo bem, você dirá, mas e os destroços da musa? Por que o corpo da musa que nos inspira (na peça, a maravilhosa Fabiana Guglielmetti) chegaria aos pedaços pelo correio? Georges Bataille (citado na peça) nos lembraria que o erotismo e o horror são companheiros. Mas podemos ser mais específicos. Na modernidade, o poder não é mais um atributo de nascença; não é preciso ser marquês para tornar-se presidente. Com isso, a distribuição do poder pára de ser um dado da natureza e se torna um vasto campo de fantasias. Passamos a sonhar com o poder como sonhamos com conquistas amorosas, e os sonhos se confundem: o poder se torna erótico e o erotismo é invadido por devaneios de domínio e de crueldades sofridas ou infligidas. As fantasias sexuais do protagonista da peça (não as explicitarei para preservar o suspense) são a expressão lógica de nossa confusão de poder com sexo.

Acréscimo de segunda-feira: alguém me diz, com espanto e vergonha, que as descrições de tortura do jornal de domingo produziram nele uma estranha excitação. Pois é, o amor é aos pedaços.

Quanto à maqueta de Brasília para entender o que deu errado, todos recebemos propostas análogas a cada dia. E a maqueta cresce quando descobrimos que as coisas começaram a dar errado muito antes de Brasília...

Em suma, desde o início, a peça de Gerald Thomas é realista demais. Dica para as histórias literárias: Gerald Thomas é um dramaturgo do teatro da lucidez.

Agora, esse retrato do desamparo moderno poderia ser triunfalista, no estilo "somos os últimos arautos de um mundo melhor", ou lamuriante, no estilo "somos os últimos representantes de uma espécie extinta".

Ora, Gerald Thomas escolhe nos fazer rir. É possível que a alegria e o riso sejam jeitos de transformar o mundo tão eficazes quanto a indignação e, às vezes, menos hipócritas do que ela. Exemplo: "Se fosse hoje, eu pegaria em armas e seguiria o Che pelas cordilheiras alpinas atrás de Emmentaler, Gruyère, Appenzeller ou qualquer outro queijo suíço".

O cômico está no texto e, obviamente, na arte de um ator portentoso. Mas a função de Nanini na peça não é só a de dar prova de seu imenso talento. Gerald Thomas escreveu para um protagonista que é um ator porque o homem moderno é um ator. A vulnerabilidade narcisista do ator é a nossa. Além de recebermos a cada dia pacotes de João Paradeiro, somos todos atores. Como diz o texto, nossa "existência inteira é validada, ou não, através do aplauso ou do amor de uma platéia", sempre.

No final da peça, é tocado um arranjo de samba do hino nacional (feito por Ivo Meirelles) e Nanini veste a bandeira. O texto da peça diz que o Brasil é um problema sem solução, mas que é (console-se) um problema maravilhoso. O momento é comovedor porque o Brasil se torna assim o símbolo de uma época feita de problemas sem solução. Talvez essa seja a única razão tolerável e legítima para qualquer patriotismo.

Acréscimo de terça-feira: a peça cresce na lembrança, e ainda agora me surpreendo rindo sozinho, pensando em Nanini e no "nosso" circo.

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