Estreou, na semana passada, "Cazuza - O Tempo Não Pára", de Sandra Werneck e Walter Carvalho.
O desfecho trágico da história é conhecido por todo mundo. Apesar disso, ela me proporcionou momentos de grande alegria. Mas não é só isso, não é só uma questão de momentos.
O filme me deixou numa espécie de felicidade pensativa. Tento explicar por quê.
Cazuza mordeu a vida com todos os dentes. A doença e a morte parecem ter-se vingado de sua paixão exagerada de viver. É impossível sair da sala de cinema sem se perguntar mais uma vez: o que vale mais, a preservação de nossas forças, que nos garantiria uma vida mais longa, ou a livre procura da máxima intensidade e variedade da experiência? Melhor viver a mil (e menos tempo) ou viver com moderação (e mais tempo)?
Digo que a pergunta se apresenta "mais uma vez" porque a questão é hoje trivial e, ao mesmo tempo, persecutória. É melhor ficarmos acordados até tarde pelo prazer da companhia ou voltar logo para casa e para a cama, já que, de manhã cedo, será a hora da esteira e da bicicleta? Vamos transar no domingo à noite ou será que a segunda é um dia muito pesado?
Obedecemos a uma proliferação de regras que são ditadas pelos progressos da prevenção. Ninguém imagina que comer banha, fumar, tomar pinga, transar sem camisinha e combinar, sei lá, nitratos com Viagra seja uma boa idéia. De fato, não é.
À primeira vista, em suma, parece lógico que concordemos sem hesitação sobre o seguinte: não há ou não deveria haver prazeres que valham um risco de vida ou, simplesmente, que valham o risco de encurtar a vida. De que adiantaria um prazer que, por assim dizer, cortasse o galho sobre o qual está sentado?
Mas, por trás dessa obviedade, esconde-se um estranho momento na história da moralidade. Durante muitos séculos, constatamos que a carne era fraca e que o espírito tinha sérias dificuldades em conter seus ímpetos. Ultimamente, encontramos uma solução elegante: delegamos à carne a tarefa de controlar a carne. A experiência dos prazeres deveria ser contida porque é anti-higiênica, biologicamente nociva, ruim para o corpo.
Por mais que a coisa faça sentido, ela não deixa de ser curiosa. No fundo, se admitirmos por um instante que nossa escolha moral nos define, chegaremos à conclusão de que homem bom é aquele que se resguarda; o mérito humano não dependeria das coisas e causas pelas quais arriscamos a vida, o mérito seria preservar a vida de qualquer forma.
Navegamos entre os mal-encarados que nos intimam "A bolsa ou a vida!" e os bem-encarados (bem demais) que nos intimam "O prazer ou a vida!". Ambos prefeririam que escolhêssemos ficar com vida. Eles têm razão, pois quem perde a vida perde também a bolsa ou o prazer. Mas acontece que, ao responder a essa intimações, dizemos sobretudo o que caracteriza nossa vida, o que faz que ela, aos nossos olhos, valha a pena: por exemplo, a bolsa, o prazer ou um tempo suplementar.
Os jovens têm uma razão básica para desconfiar de uma moral prudente e um pouco avara que sugere que escolhamos sempre os tempos suplementares. É que a morte lhes parece distante, uma coisa com a qual a gente se preocupará mais tarde, muito mais tarde. Mas sua vontade de caminhar na corda bamba e sem rede não é apenas a inconsciência de quem pode esquecer que "o tempo não pára". É também (e talvez sobretudo) um questionamento que nos desafia: para disciplinar a experiência, será que temos outras razões que não sejam só a decisão de durar um pouco mais?
Cuidado: o filme não é uma diatribe contra a "vida louca" ou a favor dela. Tampouco ele faz desse dilema uma tragédia. Ao contrário, ele contempla nosso desamparo moral com uma ternura parecida com a dos pais do próprio Cazuza (admiráveis Marieta Severo e Reginaldo Faria). É esse carinho que mantém nosso sorriso.
O amor dos pais de Cazuza pelo filho, aliás, constitui uma das tramas mais tocantes da história. Haverá alguém para achar que Cazuza ainda estaria entre nós, se eles tivessem controlado seu filho com rigor. Outros observarão que, se isso tivesse acontecido, Cazuza nunca teria existido. Provavelmente ambos têm razão. O que significa querer que nossos filhos vinguem? É justo deixar que, pela intensidade de seus desejos, queimem a vida como um cigarro? É certo forçá-los a respeitar nosso desejo de morrermos antes deles acima das paixões que podem consumi-los? Não conheço um pai que, alguma vez, não tenha se colocado essas perguntas.
O filme é imperdível para quem é ou já foi adolescente um dia, para quem é (ou será) pai de adolescente e, em geral, para quem se pergunta ou se perguntou um dia qual é o critério do bem ou do mal quando a paixão de viver é tamanha que ela ameaça nossa própria vida.
Resta agradecer a Daniel de Oliveira por sua performance no papel de Cazuza, assim como a Fernando Bonassi e Victor Navas pelos diálogos.
quinta-feira, 24 de junho de 2004
quinta-feira, 17 de junho de 2004
Guerras íntimas
Trégua de política nacional e internacional. E volta às guerras íntimas.
A ocasião surgiu na semana passada, quando eu estava atendendo um casal briguento e, como de costume, tentava propor uma mediação.
Em regra, nas brigas, a gente age como aquele jogador que está perdendo e dobra raivosamente as apostas até, num último gesto, colocar em cima da mesa sua camisa, seu cachorro e sua aliança: a perspectiva de uma catástrofe conclusiva nos fascina com uma falsa promessa de paz no fim do túnel.
É banal, portanto, que, ao ser consultado por um casal em crise, o terapeuta tente acalmar o jogo.
Era o que eu estava fazendo, quando, de repente, o marido me interrompeu com uma certa irritação: "Mas quando você considera que um casamento não vale mais a pena?".
A pergunta me pegou. E gostaria de tentar responder.
Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas.
Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.
A indústria farmacêutica conhece bem esse conflito básico; seus maiores sucessos comerciais são remédios que tentam balancear as duas vertentes. A Ritalina para quem não consegue focalizar os esforços, de tanto que seus desejos proliferam; os antidepressivos para quem não deseja o suficiente, de tanto escutar as vozes que aconselham a abstenção, a espera, a prudência e a preguiça.
É irônico, aliás, que, depois de alguns séculos de modernidade (de dois a cinco, segundo a data que a gente escolha para começar a contar), sejamos reduzidos a delegar à química a tarefa de disciplinar o desejo. Mas esse é outro assunto.
Recursos químicos à parte, o conflito em questão produz quase sempre projeções. Ou seja, é freqüente que, para evitar os tormentos da contradição interna, atribuamos aos outros (em particular, aos que nos são mais próximos, mas também ao mundo em geral) a função de nos impedir de desejar além da conta.
São aquelas lamúrias: queria mesmo ser trompetista, mas não deu porque é uma carreira incerta e é preciso pagar a mensalidade da escola das crianças; queria passar as noites nas casas de suingue, mas não ficaria bem para minha mulher se encontrássemos alguém que a conhece; queria passar o dia como uma amélia, cozinhando geléias naturais e bolos de chocolate, mas meu marido quer uma boneca de luxo.
É claro que nós mesmos preferimos a família ao trompete, a respeitabilidade ao suingue e a vida urbana à geléia. Mas é mais fácil encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo: "Foi por causa deles".
É banal, portanto, que, num casal, cada um considere que o parceiro e o casamento são responsáveis pelas renúncias. "Se não tivesse casado tão cedo, hoje seria atriz", e fica pudicamente esquecido que a futura atriz preferiu casar a encarar filas, testes, provas e fracassos.
Essas acusações, triviais numa crise, não constituem uma boa razão para descartar a relação. Ao contrário, é graças a essas acusações recíprocas que cada um poderia encontrar (e, eventualmente, confirmar ou amenizar) as defesas que ele mesmo inventou para evitar um de seus desejos. Brigando com o outro, que quis um filho logo e, "portanto, acabou com minha carreira de cantora lírica", ganho uma chance de descobrir que, de fato, eu mesma quis ter um filho e que ainda me debato com o preço que esse desejo me custou (a carreira de cantora lírica, que, aliás, talvez eu não tivesse a coragem de peitar). Em suma, acusando o outro, consigo brigar com minhas próprias contradições, preguiças, inibições ou covardias.
Em geral, quando as separações acontecem porque acusamos nosso parceiro de ser um obstáculo em nossa vida, o prognóstico é péssimo. Se o outro era a tela na qual eu projetava impedimentos que eu mesmo invento, é quase garantido que projetarei os mesmos impedimentos no parceiro de minha próxima relação. Em vez de separar-se, seria melhor se dar o tempo e a coragem de aproveitar o dissídio e lidar com aquela parte de mim que me incomoda e que meu parceiro me faz o favor de encarnar.
Então, como responder à pergunta do marido? Será que nenhuma separação se justifica?
Não é bem assim, pois acontece, às vezes, que um dos parceiros vista com gosto a camisa que lhe é oferecida, ou seja, acontece que ele ou ela achem graça em colocar limites ao desejo do outro.
A diferença é pequena, mas decisiva e fácil de ser constatada: tudo depende de quem fala. Se eu me queixo de que o outro me impede de ser rei da China, muito bem, é minha projeção; melhor perseverar e, quem sabe, descobrir, na briga, por que eu mesmo não me mudei para Pequim. Mas, se meu parceiro se queixa de que tenho o extravagante desejo de ser rei da China, o casal está próximo de sua falência.
Pois, afinal, um casal existe para ampliar, não para limitar o campo do que cada um é capaz de sonhar.
A união, como prega o ditado, deveria fazer a força.
A ocasião surgiu na semana passada, quando eu estava atendendo um casal briguento e, como de costume, tentava propor uma mediação.
Em regra, nas brigas, a gente age como aquele jogador que está perdendo e dobra raivosamente as apostas até, num último gesto, colocar em cima da mesa sua camisa, seu cachorro e sua aliança: a perspectiva de uma catástrofe conclusiva nos fascina com uma falsa promessa de paz no fim do túnel.
É banal, portanto, que, ao ser consultado por um casal em crise, o terapeuta tente acalmar o jogo.
Era o que eu estava fazendo, quando, de repente, o marido me interrompeu com uma certa irritação: "Mas quando você considera que um casamento não vale mais a pena?".
A pergunta me pegou. E gostaria de tentar responder.
Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar. E é bom que seja assim. Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas.
Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões) e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.
A indústria farmacêutica conhece bem esse conflito básico; seus maiores sucessos comerciais são remédios que tentam balancear as duas vertentes. A Ritalina para quem não consegue focalizar os esforços, de tanto que seus desejos proliferam; os antidepressivos para quem não deseja o suficiente, de tanto escutar as vozes que aconselham a abstenção, a espera, a prudência e a preguiça.
É irônico, aliás, que, depois de alguns séculos de modernidade (de dois a cinco, segundo a data que a gente escolha para começar a contar), sejamos reduzidos a delegar à química a tarefa de disciplinar o desejo. Mas esse é outro assunto.
Recursos químicos à parte, o conflito em questão produz quase sempre projeções. Ou seja, é freqüente que, para evitar os tormentos da contradição interna, atribuamos aos outros (em particular, aos que nos são mais próximos, mas também ao mundo em geral) a função de nos impedir de desejar além da conta.
São aquelas lamúrias: queria mesmo ser trompetista, mas não deu porque é uma carreira incerta e é preciso pagar a mensalidade da escola das crianças; queria passar as noites nas casas de suingue, mas não ficaria bem para minha mulher se encontrássemos alguém que a conhece; queria passar o dia como uma amélia, cozinhando geléias naturais e bolos de chocolate, mas meu marido quer uma boneca de luxo.
É claro que nós mesmos preferimos a família ao trompete, a respeitabilidade ao suingue e a vida urbana à geléia. Mas é mais fácil encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo: "Foi por causa deles".
É banal, portanto, que, num casal, cada um considere que o parceiro e o casamento são responsáveis pelas renúncias. "Se não tivesse casado tão cedo, hoje seria atriz", e fica pudicamente esquecido que a futura atriz preferiu casar a encarar filas, testes, provas e fracassos.
Essas acusações, triviais numa crise, não constituem uma boa razão para descartar a relação. Ao contrário, é graças a essas acusações recíprocas que cada um poderia encontrar (e, eventualmente, confirmar ou amenizar) as defesas que ele mesmo inventou para evitar um de seus desejos. Brigando com o outro, que quis um filho logo e, "portanto, acabou com minha carreira de cantora lírica", ganho uma chance de descobrir que, de fato, eu mesma quis ter um filho e que ainda me debato com o preço que esse desejo me custou (a carreira de cantora lírica, que, aliás, talvez eu não tivesse a coragem de peitar). Em suma, acusando o outro, consigo brigar com minhas próprias contradições, preguiças, inibições ou covardias.
Em geral, quando as separações acontecem porque acusamos nosso parceiro de ser um obstáculo em nossa vida, o prognóstico é péssimo. Se o outro era a tela na qual eu projetava impedimentos que eu mesmo invento, é quase garantido que projetarei os mesmos impedimentos no parceiro de minha próxima relação. Em vez de separar-se, seria melhor se dar o tempo e a coragem de aproveitar o dissídio e lidar com aquela parte de mim que me incomoda e que meu parceiro me faz o favor de encarnar.
Então, como responder à pergunta do marido? Será que nenhuma separação se justifica?
Não é bem assim, pois acontece, às vezes, que um dos parceiros vista com gosto a camisa que lhe é oferecida, ou seja, acontece que ele ou ela achem graça em colocar limites ao desejo do outro.
A diferença é pequena, mas decisiva e fácil de ser constatada: tudo depende de quem fala. Se eu me queixo de que o outro me impede de ser rei da China, muito bem, é minha projeção; melhor perseverar e, quem sabe, descobrir, na briga, por que eu mesmo não me mudei para Pequim. Mas, se meu parceiro se queixa de que tenho o extravagante desejo de ser rei da China, o casal está próximo de sua falência.
Pois, afinal, um casal existe para ampliar, não para limitar o campo do que cada um é capaz de sonhar.
A união, como prega o ditado, deveria fazer a força.
quinta-feira, 10 de junho de 2004
Benfica e a Funai da marginalidade
Entre os mortos do motim da Casa de Custódia de Benfica, no Rio de Janeiro, havia dois presos condenados "só" por dano e furto. É óbvio que eles deveriam estar cumprindo sua pena num outro lugar ou, se esse outro lugar não existe, em regime aberto. É triste que a Justiça funcione de maneira abstrata, fingindo ignorar as condições e os riscos objetivos do cárcere onde ela encerra os condenados.
Mas será que é sempre desejável que a administração da Justiça se dobre a exigências práticas?
A matança de Benfica começou quando um grupo de rebelados do Comando Vermelho invadiu o andar onde cumpriam sua pena os membros do Terceiro Comando. Provavelmente, o horror teria sido evitado se os condenados fossem divididos em cárceres diferentes, segundo a organização criminosa à qual eles declaram pertencer (Amigo dos Amigos, Terceiro Comando, Comando Vermelho etc.). É uma consideração prática: o Estado é responsável pela vida de quem está sob sua custódia, portanto (já que nossos recursos são limitados) adotemos disposições que tornem menos custoso garantir a segurança dos presos. Faz sentido.
No entanto, sou sensível ao argumento de Astério Pereira dos Santos, secretário da Administração Penitenciária do Rio: quem manda na prisão deve ser o governo, não as organizações criminosas.
Aceitar o princípio da divisão dos presos segundo suas facções é uma maneira de considerá-los estrangeiros à nossa comunidade. Como é isso?
Um exemplo: na hora de instituir reservas indígenas, ninguém propõe um mesmo espaço para tribos que tradicionalmente se odeiam e se matam com gosto. Essa escolha se impõe porque pensamos que é nosso dever respeitar o que sobrou das culturas indígenas, ou seja, porque o projeto de nossa comunidade, no que concerne aos índios, não é sua integração como cidadãos quaisquer. Por paixão etnográfica ou pela culpa da conquista e do extermínio passados, os índios são, para nós, um mundo separado, com regras próprias, que queremos preservar.
Ora, será que os criminosos, em nosso país, são afastados do projeto de uma cidadania nacional a ponto de que a Administração Penitenciária deveria se tornar uma espécie de Funai da marginalidade?
A comparação é aproximativa. Uma verdadeira Funai da marginalidade operaria antes do encarceramento; erigiria muros entre as favelas, delimitando espaços autônomos, cada um dominado e administrado por uma facção. A divisão nos cárceres é mais parecida com a organização de um zoológico, em que animais inimigos são guardados em jaulas distintas e afastadas (para seu próprio bem, naturalmente).
O pressuposto, em ambos os casos, é o mesmo: marginais e criminosos não fazem parte de nosso mundo. É preciso, de uma maneira ou de outra, mantê-los em seu hábitat natural, que pode ser diferente segundo as "espécies" (os ursos brancos não convivem com os ursos negros).
Quais são os argumentos que se opõem à idéia de um mesmo cárcere para todos?
Há o pragmatismo já mencionado: a gestão da prisão será mais fácil se os presos forem divididos em cárceres diferentes, segundo suas facções.
E há a consideração seguinte. A exclusão social é um processo antigo, pelo qual nossa coletividade é responsável. É irrisório que, logo na hora da prisão, a comunidade nacional se lembre de que seu projeto deveria valer para todos e imponha pelo cárcere comum uma igualdade de direito que é desmentida fora da prisão. Vocês são bichos, tratamos vocês como tais e pouco fazemos para que se tornem gente, mas pretendemos forçá-los a ser cidadãos como nós na hora de enfiá-los numa jaula. Irônico, não é?
Sobre o debate, paira uma reflexão cínica que é freqüente nestes dias: será que o governo carioca não inventou a fórmula certa? Coloque-os todos juntos, feche os olhos e deixe que se matem. Ninguém poderá dizer que houve uma chacina de Estado, tipo Carandiru, e o resultado será o mesmo: a solução para a sobrecarga da população carcerária e uma economia de dinheiro público. Cá entre nós, não dá para dizer que foi uma grande perda para nossa sociedade, não é?
Pois é, o que aconteceu em Benfica constitui ou não uma perda para nossa sociedade?
Não se trata de discutir sobre a promessa e o valor das vidas que foram perdidas. Sei que eram perdidas há tempo; ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o cárcere teria reabilitado os presos que morreram e os teria devolvido à comunidade como cidadãos.
A perda que nos espreita é outra. Se tratarmos os marginais como índios, "respeitando" suas tribos, teremos que admitir que o Brasil não é nem o projeto de uma Belíndia, mas o teatro de uma guerra entre duas nações distintas, Bélgica e Índia.
Se desrespeitarmos as tribos na esperança de que as prisões se tornem assim matadouros da escória social, nossa Justiça será apenas uma arma de extermínio no conflito entre as ditas duas nações.
Para não perder o rumo de um projeto nacional, resta um caminho árduo. Consiste em encarcerar os presos não como membros de uma ou outra facção criminosa, mas como cidadãos. E em fazer (em gastar) o que é preciso para que, mesmo assim, seja garantida a segurança de todos.
Mas será que é sempre desejável que a administração da Justiça se dobre a exigências práticas?
A matança de Benfica começou quando um grupo de rebelados do Comando Vermelho invadiu o andar onde cumpriam sua pena os membros do Terceiro Comando. Provavelmente, o horror teria sido evitado se os condenados fossem divididos em cárceres diferentes, segundo a organização criminosa à qual eles declaram pertencer (Amigo dos Amigos, Terceiro Comando, Comando Vermelho etc.). É uma consideração prática: o Estado é responsável pela vida de quem está sob sua custódia, portanto (já que nossos recursos são limitados) adotemos disposições que tornem menos custoso garantir a segurança dos presos. Faz sentido.
No entanto, sou sensível ao argumento de Astério Pereira dos Santos, secretário da Administração Penitenciária do Rio: quem manda na prisão deve ser o governo, não as organizações criminosas.
Aceitar o princípio da divisão dos presos segundo suas facções é uma maneira de considerá-los estrangeiros à nossa comunidade. Como é isso?
Um exemplo: na hora de instituir reservas indígenas, ninguém propõe um mesmo espaço para tribos que tradicionalmente se odeiam e se matam com gosto. Essa escolha se impõe porque pensamos que é nosso dever respeitar o que sobrou das culturas indígenas, ou seja, porque o projeto de nossa comunidade, no que concerne aos índios, não é sua integração como cidadãos quaisquer. Por paixão etnográfica ou pela culpa da conquista e do extermínio passados, os índios são, para nós, um mundo separado, com regras próprias, que queremos preservar.
Ora, será que os criminosos, em nosso país, são afastados do projeto de uma cidadania nacional a ponto de que a Administração Penitenciária deveria se tornar uma espécie de Funai da marginalidade?
A comparação é aproximativa. Uma verdadeira Funai da marginalidade operaria antes do encarceramento; erigiria muros entre as favelas, delimitando espaços autônomos, cada um dominado e administrado por uma facção. A divisão nos cárceres é mais parecida com a organização de um zoológico, em que animais inimigos são guardados em jaulas distintas e afastadas (para seu próprio bem, naturalmente).
O pressuposto, em ambos os casos, é o mesmo: marginais e criminosos não fazem parte de nosso mundo. É preciso, de uma maneira ou de outra, mantê-los em seu hábitat natural, que pode ser diferente segundo as "espécies" (os ursos brancos não convivem com os ursos negros).
Quais são os argumentos que se opõem à idéia de um mesmo cárcere para todos?
Há o pragmatismo já mencionado: a gestão da prisão será mais fácil se os presos forem divididos em cárceres diferentes, segundo suas facções.
E há a consideração seguinte. A exclusão social é um processo antigo, pelo qual nossa coletividade é responsável. É irrisório que, logo na hora da prisão, a comunidade nacional se lembre de que seu projeto deveria valer para todos e imponha pelo cárcere comum uma igualdade de direito que é desmentida fora da prisão. Vocês são bichos, tratamos vocês como tais e pouco fazemos para que se tornem gente, mas pretendemos forçá-los a ser cidadãos como nós na hora de enfiá-los numa jaula. Irônico, não é?
Sobre o debate, paira uma reflexão cínica que é freqüente nestes dias: será que o governo carioca não inventou a fórmula certa? Coloque-os todos juntos, feche os olhos e deixe que se matem. Ninguém poderá dizer que houve uma chacina de Estado, tipo Carandiru, e o resultado será o mesmo: a solução para a sobrecarga da população carcerária e uma economia de dinheiro público. Cá entre nós, não dá para dizer que foi uma grande perda para nossa sociedade, não é?
Pois é, o que aconteceu em Benfica constitui ou não uma perda para nossa sociedade?
Não se trata de discutir sobre a promessa e o valor das vidas que foram perdidas. Sei que eram perdidas há tempo; ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o cárcere teria reabilitado os presos que morreram e os teria devolvido à comunidade como cidadãos.
A perda que nos espreita é outra. Se tratarmos os marginais como índios, "respeitando" suas tribos, teremos que admitir que o Brasil não é nem o projeto de uma Belíndia, mas o teatro de uma guerra entre duas nações distintas, Bélgica e Índia.
Se desrespeitarmos as tribos na esperança de que as prisões se tornem assim matadouros da escória social, nossa Justiça será apenas uma arma de extermínio no conflito entre as ditas duas nações.
Para não perder o rumo de um projeto nacional, resta um caminho árduo. Consiste em encarcerar os presos não como membros de uma ou outra facção criminosa, mas como cidadãos. E em fazer (em gastar) o que é preciso para que, mesmo assim, seja garantida a segurança de todos.
quinta-feira, 3 de junho de 2004
Paranóias e conspirações
Ainda bem que, de vez em quando, alguém me "informa" direito (as aspas significam que estou sendo irônico; melhor dizer, nunca se sabe).
Por exemplo, você sabia que, entre o 11 de setembro de 2001 e o dia dos atentados de Madri, passaram-se exatamente 911 dias? Ora, 9-11 (setembro-11) é, nos EUA, a abreviação da data do ataque ao World Trade Center. Mas não pense que se trate apenas de uma "óbvia" assinatura da Al Qaeda. Não, isso é só o começo: 911 é o número telefônico que, em Nova York, serve para chamar a polícia em caso de urgência. Ironia dos terroristas? Fácil demais. Será que não é um criptograma que revela os verdadeiros autores do atentado? Não é a prova de que foi o governo americano que orquestrou o ataque que justifica a guerra em curso?
Você duvida? É porque você não sabe que, de manhã cedo, em 11 de setembro, milhares de judeus que trabalhavam nas torres gêmeas (sempre eles, ah?) receberam telefonemas anônimos exortando-os a não ir para o trabalho naquele dia. Está entendendo?
Outro exemplo. Você não estranhou o momento em que o "New York Times" publicou o artigo de Larry Rohter sobre a "preocupação nacional" brasileira com os hábitos alcoólicos do presidente Lula? Foi logo quando o Brasil acabava de ganhar a guerra dos subsídios agrícolas na Organização Mundial do Comércio. Quem tinha interesse em desacreditar o Brasil pelo mundo afora, ah? E se Larry Rohter fosse um agente da CIA há tempo escondido no Brasil para ser ativado de repente na hora de tamanha necessidade estratégica? Aliás, nem é preciso que ele seja um agente, pois é notório (não é?) que a imprensa americana é escrava do complexo político-militar-midiático do império. Rohter pode ter obedecido ao "New York Times", que, por sua vez, deve ter respondido a um daqueles telefonemas do governo que eles recebem a cada dia na hora de decidir a pauta.
Ao escutar pacientes paranóicos capazes de delírios organizados, é fácil constatar que um delírio não é necessariamente menos verossímil que outras crenças que não nos parecem delirantes. Por exemplo, a convicção de que Deus exige que os homens se transformem em mulheres para servi-lo melhor é tão verossímil quanto a idéia de que, a cada missa, a hóstia se transforma realmente no corpo de Cristo. A diferença é apenas esta: o projeto de mudar de sexo para servir a Deus não é coletivo, enquanto a transformação da hóstia (a transubstanciação) é uma fé compartilhada.
Os delírios são crenças que não conseguem se socializar.
Hoje essa diferença se tornou incerta. Graças à internet, qualquer delírio pode se tornar público, circular e conquistar adeptos. Logicamente, este é o argumento decisivo de quem delira: está num site na internet. E, olhe lá, é um site que recebe 12 mil visitantes por dia.
Mas a facilidade com a qual os delírios se socializam não explica sua extraordinária proliferação.
Em 11 de maio (de novo, o 11, viu?), chegou às livrarias americanas "The Rule of Four" (A Regra de Quatro), de Ian Caldwell e Dustin Thomason. Em duas semanas, o romance já é número três da lista dos mais vendidos. Conta a história de dois amigos que devem descobrir os arcanos de um texto renascentista (que existe e que é mesmo repleto de enigmas não resolvidos) para entender o que acontece ao redor deles e, enfim, salvar a pele. Em princípio, quem gostou de "O Código da Vinci", de Dan Brown (número um da lista há 60 semanas nos EUA e agora número um no Brasil), vai gostar de "The Rule of Four".
Os comentadores propõem uma genealogia que começa com "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, e continua com esses dois romances recentes. De fato, os três livros têm em comum um gosto pela cultura da Idade Média (no caso de "O Nome da Rosa") ou do Renascimento (para os outros dois), épocas em que o mundo ainda era encantado, ou seja, percebido como um teatro de símbolos e signos que, uma vez decifrados, revelariam que os desenhos da providência divina se estendem, feito vasos capilares, até a periferia da criação. Naquela época, só vivia uma vida sem sentido quem não se desse ao trabalho de resolver as charadas inscritas em cada página do mundo.
Mas "O Nome da Rosa" conta uma história policial acontecida na Idade Média (por mais que ela tenha conseqüências em nossa cultura), enquanto "O Código da Vinci" e "The Rule of Four" nos propõem enigmas cuja solução explica os malogros do presente (para manter a filiação com Umberto Eco, os dois romances são mais comparáveis com "O Pêndulo de Foucault" do que com "O Nome da Rosa"). Em suma, o leitor de hoje gosta de enigmas porque eles confirmam que a bagunça de nosso mundo esconde um sentido.
Depois de dois séculos de individualismo realizado, estamos aparentemente cansados de cruzar os dedos esperando com Adam Smith que, por um acerto do acaso, as peripécias de nossas vidas singulares resultem num mundo minimamente ordenado e compreensível.
Somos animados pela mesma angústia que anima os delírios da internet, pois descobrimos, com razão, que a tragédia não é que poderosos e feiosos tramem e manipulem nas sombras. A tragédia, o intolerável é que os feiosos, exatamente como nós, são um atrapalhado exército de Brancaleone. E nossa história, como dizia o poeta, é um conto cheio de barulho e fúria, que não significa nada.
Por exemplo, você sabia que, entre o 11 de setembro de 2001 e o dia dos atentados de Madri, passaram-se exatamente 911 dias? Ora, 9-11 (setembro-11) é, nos EUA, a abreviação da data do ataque ao World Trade Center. Mas não pense que se trate apenas de uma "óbvia" assinatura da Al Qaeda. Não, isso é só o começo: 911 é o número telefônico que, em Nova York, serve para chamar a polícia em caso de urgência. Ironia dos terroristas? Fácil demais. Será que não é um criptograma que revela os verdadeiros autores do atentado? Não é a prova de que foi o governo americano que orquestrou o ataque que justifica a guerra em curso?
Você duvida? É porque você não sabe que, de manhã cedo, em 11 de setembro, milhares de judeus que trabalhavam nas torres gêmeas (sempre eles, ah?) receberam telefonemas anônimos exortando-os a não ir para o trabalho naquele dia. Está entendendo?
Outro exemplo. Você não estranhou o momento em que o "New York Times" publicou o artigo de Larry Rohter sobre a "preocupação nacional" brasileira com os hábitos alcoólicos do presidente Lula? Foi logo quando o Brasil acabava de ganhar a guerra dos subsídios agrícolas na Organização Mundial do Comércio. Quem tinha interesse em desacreditar o Brasil pelo mundo afora, ah? E se Larry Rohter fosse um agente da CIA há tempo escondido no Brasil para ser ativado de repente na hora de tamanha necessidade estratégica? Aliás, nem é preciso que ele seja um agente, pois é notório (não é?) que a imprensa americana é escrava do complexo político-militar-midiático do império. Rohter pode ter obedecido ao "New York Times", que, por sua vez, deve ter respondido a um daqueles telefonemas do governo que eles recebem a cada dia na hora de decidir a pauta.
Ao escutar pacientes paranóicos capazes de delírios organizados, é fácil constatar que um delírio não é necessariamente menos verossímil que outras crenças que não nos parecem delirantes. Por exemplo, a convicção de que Deus exige que os homens se transformem em mulheres para servi-lo melhor é tão verossímil quanto a idéia de que, a cada missa, a hóstia se transforma realmente no corpo de Cristo. A diferença é apenas esta: o projeto de mudar de sexo para servir a Deus não é coletivo, enquanto a transformação da hóstia (a transubstanciação) é uma fé compartilhada.
Os delírios são crenças que não conseguem se socializar.
Hoje essa diferença se tornou incerta. Graças à internet, qualquer delírio pode se tornar público, circular e conquistar adeptos. Logicamente, este é o argumento decisivo de quem delira: está num site na internet. E, olhe lá, é um site que recebe 12 mil visitantes por dia.
Mas a facilidade com a qual os delírios se socializam não explica sua extraordinária proliferação.
Em 11 de maio (de novo, o 11, viu?), chegou às livrarias americanas "The Rule of Four" (A Regra de Quatro), de Ian Caldwell e Dustin Thomason. Em duas semanas, o romance já é número três da lista dos mais vendidos. Conta a história de dois amigos que devem descobrir os arcanos de um texto renascentista (que existe e que é mesmo repleto de enigmas não resolvidos) para entender o que acontece ao redor deles e, enfim, salvar a pele. Em princípio, quem gostou de "O Código da Vinci", de Dan Brown (número um da lista há 60 semanas nos EUA e agora número um no Brasil), vai gostar de "The Rule of Four".
Os comentadores propõem uma genealogia que começa com "O Nome da Rosa", de Umberto Eco, e continua com esses dois romances recentes. De fato, os três livros têm em comum um gosto pela cultura da Idade Média (no caso de "O Nome da Rosa") ou do Renascimento (para os outros dois), épocas em que o mundo ainda era encantado, ou seja, percebido como um teatro de símbolos e signos que, uma vez decifrados, revelariam que os desenhos da providência divina se estendem, feito vasos capilares, até a periferia da criação. Naquela época, só vivia uma vida sem sentido quem não se desse ao trabalho de resolver as charadas inscritas em cada página do mundo.
Mas "O Nome da Rosa" conta uma história policial acontecida na Idade Média (por mais que ela tenha conseqüências em nossa cultura), enquanto "O Código da Vinci" e "The Rule of Four" nos propõem enigmas cuja solução explica os malogros do presente (para manter a filiação com Umberto Eco, os dois romances são mais comparáveis com "O Pêndulo de Foucault" do que com "O Nome da Rosa"). Em suma, o leitor de hoje gosta de enigmas porque eles confirmam que a bagunça de nosso mundo esconde um sentido.
Depois de dois séculos de individualismo realizado, estamos aparentemente cansados de cruzar os dedos esperando com Adam Smith que, por um acerto do acaso, as peripécias de nossas vidas singulares resultem num mundo minimamente ordenado e compreensível.
Somos animados pela mesma angústia que anima os delírios da internet, pois descobrimos, com razão, que a tragédia não é que poderosos e feiosos tramem e manipulem nas sombras. A tragédia, o intolerável é que os feiosos, exatamente como nós, são um atrapalhado exército de Brancaleone. E nossa história, como dizia o poeta, é um conto cheio de barulho e fúria, que não significa nada.
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