quinta-feira, 30 de outubro de 2003

Dramas e tragédias

No fim de semana passado, em São Paulo, fui ao teatro duas vezes.

No sábado, assisti a "4.48 Psicose" de Sarah Kane. É o monólogo final da escritora e dramaturga inglesa, que, após tê-lo escrito em 1998, suicidou-se com determinação (primeiro as pílulas, logo, tendo sido salva a tempo, a forca definitiva). Nelson de Sá montou o texto como uma peça a duas vozes (quase três), nos subterrâneos do Sesc Belenzinho, dentro de um enorme tanque cilíndrico que desce no chão. O quadro é perfeito: o fundo do poço.

A fala de Sarah é impactante por ser exata. Tem as duas caraterísticas essenciais de qualquer drama subjetivo: irredutível e cruelmente trivial.

Enquanto Sarah articula sua demanda de amor impossível, na parede circular do tanque aparecem rostos, bulas de remédios e imagens do mundo lá fora. Para quem se engaja (e quem não se engaja?) no caminho do drama subjetivo, a realidade é moída e aspirada na direção de um ralo que é o próprio umbigo do sujeito. Não há história que valha, nem coletividade; nada além de uma contabilidade de dores e remédios, na qual a gente sempre sai perdendo.

Não seria mal se Sarah, tomada por uma repentina paixão montanhesca, pudesse escalar as paredes do cilindro bem na hora em que elas mostram as piores convulsões de nosso mundo. Quem sabe, ela conseguiria, com unhas e dentes, inserir seu drama na tragédia humana. E, assim, salvar-se.

Entre drama e tragédia oscilamos o tempo inteiro. Pedimos que a tragédia (o destino que nos quer frágeis e mortais, a natureza que nos castiga, a história que nos atropela) não apague nossos pequenos dramas (e eu, nisso tudo, ninguém dirá o que eu passei?). E pedimos também que a tragédia dê a nossa vida uma dignidade e um sentido que se perdem nos dramas. É o que deseja, caricaturalmente, um pai, quando, perplexo diante da dor amorosa de um filho ou de uma filha adolescente, exclama: "E a Somália? E o câncer?".

Mas o balanço normal de nossa época é: drama 3, tragédia 0. Pior: em regra, quando tentamos atenuar a miséria subjetiva fazendo apelo à história e à coletividade, que a afogariam em valores e sentidos mais amplos, esquecemos a tragédia. Preferimos acreditar em ficções gloriosas e amanhãs que cantarão: corra atrás de uma bandeira e esqueça.

Estava com essas reflexões quando, no domingo, fui assistir (mas por que esperei tanto?), no Teatro Oficina, a "Os Sertões - O Homem 1ª Parte - Do Pré-Homem à Revolta". É o segundo dos quatro momentos que Zé Celso decidiu consagrar a uma encenação de "Os Sertões". Corresponde à parte do livro em que Euclydes da Cunha apresenta as origens do homem americano e brasileiro, especialmente do sertanejo.

Foi uma das experiências teatrais mais fortes e comovedoras de minha vida. Na lembrança, se compara a uma noite de 1969, quando Luca Ronconi montou o "Orlando Furioso" de Ariosto na praça do "duomo" de Milão.

A analogia é sentimental. Não sei se eram mesmo anos difíceis para a Itália, mas sei que eu vivia num furor abstrato, inconformado com o país que não mudava. Olhava ao redor de mim e não reconhecia uma nação à qual valesse a pena pertencer. Apenas conseguia falar com quem pensasse exatamente como eu: estava a fim de ir embora. Naquela noite de 69, estava encerrado na massa que enchia a praça, todos olhando para o céu: no ar, acima de nós, máquinas e atores transformavam o texto mais bonito da Renascença numa extraordinária festa popular. De repente, ser italiano parecia ter sentido. Não pela festa, mas pela dignidade de uma história e de uma cultura compartilhadas.

Ao assistir à peça do teatro Oficina, a emoção foi a mesma. Mais forte, na verdade. A construção do brasileiro segundo Zé Celso é uma aventura feroz, carnal e amorosa. Pesa sobre ela o prognóstico ameaçador das teorias raciais nas quais Euclydes da Cunha acreditava: que futuro nos reserva a "inferioridade" do mestiço? Pesa a diversidade extrema: como conviverão mulato, cafuzo, sertanejo, português, gaúcho, bandeirante paulista e por aí vai? Pesa o passivo das violências sobre os corpos e as almas, da escravidão, dos estupros e dos extermínios. Mas a própria qualidade trágica da história faz a grandeza e a alegria selvagem desta improvável comunidade de destino.

Sem ficções gloriosas ou promessas de amanhãs cantantes, o "O Homem - 1ª Parte" proclama a dignidade do ser brasileiro. É a tragédia que redime os dramas subjetivos que nos chamam para o fundo do poço.

No fim, paramos na calçada para tomar uma cerveja e medir a relação entre a história que acabávamos de reviver e, lá em frente, o começo do Minhocão, símbolo da dureza urbana do Brasil de hoje. Enquanto conversávamos com um dos atores, Ricardo Bittencourt, um jovem aproximou-se para elogiá-lo. Carioca, estava de passagem por São Paulo, pois acabava de chegar ao país depois de dois anos trabalhando no exterior. Com os olhos molhados de lágrimas, batia a mão no coração: "Obrigado, obrigado, entrei no teatro meio por acaso, que loucura, logo hoje acabo entendendo por que voltei ao Brasil". Ganhou um abraço.

"O Homem - 1ª Parte" fica em cartaz, no teatro Oficina, aos sábados e domingos, só mais duas semanas, até 9 de novembro.

"4.48 Psicose" está em cartaz aos sábados e domingos, no Sesc Belenzinho, até 7 de dezembro.

quinta-feira, 23 de outubro de 2003

Solidões voluntárias

Muitos anos atrás, em Paris, um amigo, jovem psiquiatra, trabalhava nos serviços de assistência pública. Ele fazia visitas domiciliares a alcoólatras severamente marginalizados. O propósito não era curá-los de seu alcoolismo (o otimismo tem limites). Tratava-se sobretudo de verificar e melhorar, se possível, as condições de higiene e saúde dos sujeitos visitados.

É preciso lembrar que os edifícios parisienses de classe média que foram construídos no fim do século 19 comportavam, em regra, um sótão, dividido em cubículos de mais ou menos dez metros quadrados. Havia uma privada comum para o andar, nunca um banheiro completo. Eventualmente, em cada cubículo, havia um lavabo. Esses espaços eram os quartos de serviço dos apartamentos do prédio.

A partir dos anos 50, o trabalho doméstico mudou: sumiram, ou quase, os empregados que residiam no trabalho. Os quartinhos tornaram-se habitações para estudantes ou para pessoas de baixíssima renda. Hoje, juntados e reformados drasticamente, eles compõem apartamentos procurados por charme e vista.

Um dia, na lista das visitas que ele deveria efetuar, meu amigo encontrou dois endereços no último andar, o sótão, do mesmo prédio.

No primeiro cubículo, ele se deparou com um colchão infecto, garrafas vazias ou quebradas no chão, um cheiro miasmático e uma mesa encostada na parede. Um homem estava sentado à mesa, bebendo.

No segundo cubículo, a cena era idêntica. Só que, à mesa encostada na parede, estava sentada, e bebendo, uma mulher.

Os cubículos eram contíguos, e as duas mesas situavam-se cada uma de um lado da mesma divisória. De forma que, se não fosse pela parede, o homem e a mulher pareceriam estar sentados frente a frente, na mesma mesa.

Meu amigo não era ingênuo a ponto de imaginar que a solidão fosse a razão do alcoolismo de seus dois "pacientes". Pensou apenas que, retirando a parede, mesmo que eles não desistissem da empresa metódica de beber até desmaiar, ao menos eles beberiam juntos. Não seria melhor?
Essa imagem ficou comigo como um protótipo do enigma da solidão apesar da proximidade. Lembro-me dela cada vez que ouço alguém se queixar da dor de estar sozinho.

Uma mulher, por exemplo, quando o marido se ausenta por uma viagem de negócios, se entrega a orgias de comida e vômito. É um efeito, ela acusa, do abandono, por temporário e justificado que seja.

Um homem, quando a mulher visita a família num outro Estado, vira a noite na frente do computador, oferecendo-se como escravo passivo nos bate-papos gay. Ele se odeia por isso e também culpa o abandono temporário.

Não é difícil constatar que o dito abandono é quase sempre um pretexto. Ou seja, uma maneira de justificar pela ausência do outro a volta insistente de uma fantasia, de uma paixão ou de uma prática da qual o sujeito preferiria se ver livre.

É uma dinâmica que atrapalha e pode destruir um casal. A presença do outro é desejada, de fato, porque freia os impulsos aos quais a solidão nos entregaria. Logo, o outro é secretamente detestado por ser aquele ou aquela que nos impede de gozar como gostaríamos.

O engraçado é que, na maioria dos casos, não seria impossível revelar ao outro nosso "segredo" (que, aliás, provavelmente ele já conhece). Ele talvez aceitasse e mesmo se fizesse cúmplice de nossas pequenas ou grandes loucuras solitárias.

Mas a revelação demora ou não acontece. Nenhum dos dois quer renunciar não tanto a sua fantasia privada, mas a seu segredo, ou melhor, à idéia de preservar um segredo. Calam-se para proteger um espaço íntimo, ao abrigo da relação.

Quando um parceiro não pode aproveitar a viagem do outro, a luta pelo segredo toma outras formas. Não são necessariamente traições, mas pequenas mentiras. Há a mulher que alega um falso horário de expediente para ganhar tempo e tomar um drinque cotidiano de solteira no balcão de um bar do centro. Há o homem que alega sobrecarga de trabalho para passar horas, depois do jantar, trancado no "office" de casa, mesmo que seja para idiotizar-se à força de paciências.

Talvez essas escolhas sejam restos inevitáveis do passado: afinal, a descoberta do prazer foi, para muitos, solitária. E um dos atrativos da masturbação na adolescência é justamente de ser secreta: tempos e pensamentos subtraídos à presença estafante dos pais na vida dos jovens.

Além disso, o óbvio: somos filhos de uma cultura que exalta a autonomia do indivíduo. Na hora de apostar nossas fichas numa relação, como não sucumbir à tentação de guardar uma ou duas no bolso para jogar sozinhos, mais tarde, enquanto o outro dorme?

Moral da história: não basta abater paredes para estar em companhia.

P.S.: Agradeço um leitor, Wander Cortezzi, que me fez prontamente notar que, na coluna da semana passada, o título da edição brasileira do best-seller de Mitch Albom não é "A Última Grande Conversa", mas "A Última Grande Lição". Peço desculpa; devo ter errado por contaminação, pois o livro é composto pelas conversas do autor com Morrie, seu ex-professor que está morrendo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2003

A vida faz sentido? A) Muito B) Nenhum C) Um pouco

Escolha uma resposta. Provavelmente, se você quiser deixar uma boa impressão, marcará a primeira opção. Com razão, pois, ao que dizem, o sentido nos faz bem e a falta de sentido nos deprime e angustia.

Mitch Albom é o autor de um best-seller de auto-ajuda que foi traduzido em 30 línguas e, de 1997 a 2001, ficou no primeiro lugar da lista dos livros mais vendidos nos EUA: "Tuesdays with Morrie" (publicado em português como "A Última Grande Conversa").

Ele acaba de publicar um novo livro que também se instalou no primeiro lugar dos mais vendidos nos EUA: "The Five People You Meet in Heaven" (as cinco pessoas que você encontra no Paraíso). É a história de Eddie, empregado da manutenção de um parque de diversões, que, aos 83 anos, morre num acidente e descobre que o primeiro estágio do Paraíso consiste em encontrar cinco pessoas que, de perto ou de longe, foram parte de sua vida. Diz a primeira: "Cada um de nós esteve na sua vida por uma razão. Na época, você podia não conhecer essa razão, e, por isso existe o Paraíso, para compreender sua vida na Terra". "É o maior presente que Deus pode lhe oferecer: entender o que aconteceu em sua vida, ter uma explicação. É a paz que você estava procurando." A recompensa por nossas atribulações será descobrir que elas faziam sentido, pois nada aconteceu por acaso, nenhum gesto foi à toa.

Em suma, não só sobreviveremos a nossa morte (o que já é bom), mas nossas vidas, por fajutas que sejam, são necessárias no grande esquema do mundo. Portanto, se você está resfriado e de cama, não é o caso de maldizer sua sorte; de fato, os vírus que infestam seu nariz foram desviados até lá para poupar a vida de uma criança carente e desnutrida que teria sucumbido ao ataque. Vamos ver quem explica por que um relâmpago, no domingo passado, logo em Bikoro, no Congo, matou 11 crianças e deixou 25 em coma.

Peço desculpa; é fácil ironizar. Na verdade, tenho simpatia pelo pequeno livro de Albom. Ele trará a milhões de pessoas um instante de sossego: a sensação de que seu esforço de viver não é fútil e de que o descaso do mundo para com suas existências é apenas aparente. Pois seríamos todos, de alguma forma, necessários aos olhos de uma razão superior: nenhuma vida, por miserável ou triste que seja, é desperdiçada.

Eddie, por exemplo, pensava assim: "Eu não era nada. Não consegui nada. Estava perdido". No encontro final, ele descobre que seu percurso de derrotas e renúncias obedecia a um desenho secreto que lhe é, enfim, revelado.

Em 1933, Arthur O. Lovejoy fundou a história das idéias com uma série de palestras proferidas em Harvard e publicadas sob o título "The Great Chain of Being: A Study in the History of an Idea" (A grande cadeia do ser: um estudo na história de uma idéia). Lovejoy reconstruía, de Platão ao romantismo, as vicissitudes do sonho humano de completude e continuidade, ou seja, de uma ordem racional em que nada seria arbitrário, casual ou contingente, de um mundo em que a questão do "porquê" seria legítima e sempre encontraria, mais cedo ou mais tarde, uma resposta satisfatória.

Ele reconhecia que a fé numa racionalidade do mundo permitiu o nascimento da ciência, mas acrescentava que esse sonho grandioso esbarra numa dificuldade. Por mais que acreditemos que alguma razão governa o mundo, resta que esta história teve um começo: o Big Bang ou a decisão divina de criar, por serem obras do acaso ou da liberdade do criador, escapam à razão que explicaria o Universo.

Do mesmo jeito, podemos aceitar a perspectiva de morrermos um dia, pois nossa morte não é incompatível com a idéia de que tudo tenha sentido. Aqui Ablom ajuda. Mas, em regra, achamos intolerável pensar que, como prometem os astrônomos, daqui a alguns bilhões de anos, o Universo acabará. Dar sentido a uma vida que termina é possível. Dar sentido ao fim de toda vida já é outra história.

Seja como for, o livro de Albom integra a nobre tradição descrita por Lovejoy. Desde Platão acreditamos que, como é dito a Eddie, uma explicação nos dará a paz que estamos procurando. Dar sentido ao mundo e à nossa existência seria, em suma, a condição de uma tranquila e boa saúde mental.

Pequeno problema: depois de quase 30 anos de prática clínica, ainda não sei direito se o que produz mais estragos numa vida é a falta ou o excesso de sentido. O que é pior, por exemplo? A convicção de que nossos atos de hoje confirmam inevitavelmente nosso passado, a ponto de configurar um destino, ou a sensação de sermos apenas um encontro fortuito de células, palavras e paixões?

O verdadeiro drama é que permanecemos na alternativa entre uma leveza intolerável e a procura de um sentido global. Como se os gestos e as escolhas de cada dia nunca se justificassem por virtude própria. Como se o sentido não pudesse ser uma invenção limitada, pontual e modesta. Como se apostar numa ordem do mundo fosse mais fácil que acreditar, simplesmente, no que a gente faz.

quinta-feira, 9 de outubro de 2003

Para Diane Arbus


Entre 25 de outubro e 8 de fevereiro de 2004, o Museum of Modern Art de San Francisco oferece "Diane Arbus: Revelations". É a maior retrospectiva realizada até hoje da obra de Diane Arbus, a fotógrafa nova-iorquina que, entre 1959 e 1971, jogou seu olhar inigualável e inquietante sobre a modernidade urbana. O catálogo é publicado pela Random House.

Complemento indispensável, no museu de arte do Mount Holyoke College (Massachusetts) está aberta até 7 de dezembro a exposição: "Diane Arbus: Family Albums" (catálogo pela Yale University Press).

Nota: existe uma boa biografia de Diane Arbus, escrita por Patricia Bosworth, "Diane Arbus: a Biography".

Durante os anos 50, Diane e o marido, Allan Arbus, foram fotógrafos de moda para a "Vogue" e a "Glamour". Era, aparentemente, um pequeno conto de fadas: uma infância privilegiada na Park Avenue, um casamento feliz aos 18 anos, duas filhas adoráveis e o sucesso.

No fim da década, o cartão-postal rachou: o casal separou-se e Diane, lutando contra episódios depressivos, foi fotografar o mundo do outro lado do espelho. Começou a frequentar os circos ambulantes, o show de "freaks" (monstros) que ainda existe no parque de atrações de Coney Island, em Brooklyn, e outro que funcionava na esquina da rua 42 com a Broadway, entre sex shops e prostitutas.

Uma década de retratos começou assim, com Presto, o comedor de fogo, Jack Drácula, o homem tatuado, Gregory Ratoucheff, o anão russo, Moondog, o percussionista de rua cego, Seal-Boy, o menino-foca sem braços. Logo foi a vez de travestis, transexuais, sadomasoquistas e adeptos do suingue: à primeira vista, um catálogo da marginalidade destoante.

Diane, o equipamento pesado a tiracolo, tornou-se uma figura familiar das ruas e dos porões nova-iorquinos.

Entre 1959 e 1967, ela manteve uma amizade telefônica com um grande escritor, Joseph Mitchell. Dele, a Companhia das Letras traduziu recentemente "O Segredo de Joe Gould" (leia assim que puder; também assista ao maravilhoso filme homônimo, de 2000, de e com Stanley Tucci). Mitchell, que escrevia para "The New Yorker", é um extraordinário cronista do cotidiano, um passeante à escuta dos derrotados: desde Joe Gould, o alcoólatra sem-teto decidido a registrar todas as palavras humanas numa "História Oral" do mundo, até Olga, a mulher barbuda que queria ser estenógrafa.

Mitchell e Diane Arbus nunca se encontraram, embora deambulassem pelas mesmas ruas, um com caneta e bloco no bolso e a outra com Rollei e Leica no pescoço. Mas falavam por telefone longa e regularmente.

Numa dessas conversas, Diane explicou seu interesse pelos "freaks": "As pessoas atravessam a vida com medo de ter uma experiência traumática. Os "freaks" já nasceram com seu trauma. Passaram no teste da vida. Eles são aristocratas".

Numa outra conversa com Mitchell, ela afirmou que fotografar o estranho era uma maneira de administrar sua própria melancolia. Como? Em cada retrato de "freak", contemplamos o mistério da existência de quem carrega consigo, na excentricidade de seu corpo ou de seus desejos, uma promessa de exclusão feroz. O "freak" ergue-se diante da câmara, risonho ou doloroso, num desafio: persiste na vida, embora conheça dos outros sobretudo a curiosidade impiedosa, fascinada ou horrorizada.

Ele é um protótipo de herói moderno porque sabe como ninguém que a insistência dos olhares não é cura para a solidão.

Diane conhecia esse suplício. Dramaticamente insegura quanto à apreciação de sua obra, procurava na promiscuidade das esquinas o exemplo corajoso dos sobreviventes do deserto urbano. Durou um tempo.

No fim, queixava-se: por que Allan e ela, mesmo separados, não continuariam juntos como irmãos, num vínculo que nunca poderia ser rompido? O laço de sangue parecia-lhe ser o último reduto em que, para poucos próximos, não seríamos "freaks".

De fato (é esse o interesse da exposição de Mount Holyoke), no final dos anos 60, Diane começou a fotografar famílias "comuns": instantâneos de papai, mamãe e molecada ao lado da árvore de Natal, na beira da piscina, no sofá da sala. Mas sua própria arte destruía sua esperança: inexplicavelmente, o olhar de Arbus descobre o "freak" em qualquer um. Os álbuns de família revelam que a solidão e o estranhamento assombram o aparente aconchego do lar.

Repetidamente, durante a década de sua produção, Diane fotografou um homem de dois metros e meio que sofria de uma doença óssea, Eddie Carmel, o gigante judeu. Os retratos não a satisfaziam. Enfim, pensou ter "conseguido": é a famosa fotografia do gigante, na sala de casa, ao lado dos pais, ambos de tamanho normal. Anunciou a Mitchell: "Sabe como cada mulher grávida tem o pesadelo de que o filho poderia ser um monstro? Acho que consegui fotografar esse pesadelo na cara da mãe que olha para o filho, lá em cima, e parece pensar: "Meu Deus, isso não!'".

Nem o olhar de uma mãe ampara o "freak" contra sua monstruosidade. E somos todos "freaks".
Em 1971, aos 48 anos, Diane deitou-se na banheira, tomou barbitúricos, cortou os pulsos e nos deixou mais sozinhos do que já éramos.

quinta-feira, 2 de outubro de 2003

Ostentação

Não conseguirei responder a todos os leitores que me escreveram comentando a coluna da semana passada. Peço desculpas e agradeço pelos dissensos, pelas observações e pelos parabéns.

Várias mensagens levantam uma mesma questão. Num país em que tantos batalham com as necessidades básicas, Marta Suplicy organizou uma grande festa e escolheu um vestido de noiva que custou R$ 6.000: não é um tapa na cara do povo?

Alguns acrescentam: conhecemos famílias de pequena classe média que, na hora de uma filha casar, gastam um dinheiro que dotaria o novo casal de um apartamento próprio. Mas, mesmo que, em proporção, Marta e Luis Favre tenham gastado razoavelmente, será que eles não têm um dever de pudor e austeridade?

Só posso fornecer elementos para pensar: que cada um responda.

Vamos com ordem: a riqueza moderna é sempre, de alguma forma, ostentada. A regra é a seguinte: as diferenças sociais não dependem mais do berço em que nascemos. Elas são "só" econômicas. O "só" significa que não é impossível atravessá-las. Imaginemos que, para jantar no Fasano, eu precise gastar meu salário mensal. Em compensação, garantem que não serei barrado na porta nem pelo meu nome nem pela cor da minha pele. Resta-me (dizem) dar duro, ter sorte e "crescer".

Pergunta: uma vez que eu dispusesse do dinheiro, por que não fritaria frugalmente dois ovos em casa? E, se quisesse um risoto com trufas, por que não chegaria ao restaurante pela porta dos fundos, de preferência sem fotógrafo?

Acontece que a organização social moderna não consiste apenas em substituir a nobreza do sangue pelo volume da carteira. Nosso status não é uma qualidade intrínseca nem de nosso ser nem de nossas posses: ele depende do olhar dos outros.

Portanto guardar riqueza no silêncio de um cofre não basta mais: integrar uma classe social implica exibir o padrão de consumo esperado. Uma extravagância narcisista toma conta de nossa subjetividade por ser necessária ao nosso funcionamento social: é preciso alimentar um crescimento econômico infinito, fomentando a inveja que dá fôlego à corrida de todos. Sem extravagância, acaba a sociedade de consumo.

Vontade de dizer: e daí? Que acabe. Infelizmente, a sociedade de consumo é preferível a um regime tradicional de castas, que manteria todo o mundo cravado no lugar em que viu a luz. Em suma, console-se: folheando "Caras", estaríamos no melhor dos mundos possíveis.

Há dois argumentos contra o bom funcionamento desse sistema no Brasil.

O primeiro constata que as diferenças sociais são grandes demais. Para quem está na miséria, a riqueza ostentada não é uma promessa. Ela funciona como a pompa que, na antiguidade, era a marca distintiva das castas superiores. Em vez de olhar para trono e cetro para se lembrar de quem é o rei, olhe para meu carro e minhas quatro suítes, saiba quem manda aqui e não espere chegar perto. A diferença excessiva produz exclusão: os ricos são tão distantes de mim que não reconheço, entre nós, comunidade nenhuma. Sou de outra tribo; os privilegiados são uma força estrangeira de ocupação. Sobra aos vira-latas procurar restos no lixo ou ir à luta; não na vida, mas com um berro na mão.

O segundo argumento completa o primeiro. Apesar da mobilidade social efetiva, a sociedade brasileira sofre de arcaísmo: pouco mais de um século de modernidade não foi suficiente para eliminar o espírito da escravatura. De novo: olhe para o luxo dos donos e aprenda que você é de outra raça.

Os tempos mudam. Pobre e negro já pode usar o elevador social. Um dia, milhões de brasileiros sairão da miséria que os exclui. Aos poucos, o sentimento de uma comunidade de destino prevalecerá sobre os restos da escravatura. Pode ser. Mas, por enquanto, vivemos uma época de transição. Somos modernos e consumimos ostentando, mas, pela ostentação, mantemos diferenças sociais arcaicas.

Nesse ínterim, qual é o "bom uso" dos prazeres? Qual é a ostentação que não produz exclusão?
A resposta não está nos números. Se R$ 6.000 para um vestido de noiva é demais, quanto seria o certo: R$ 2.000? Vá saber.

Há dois critérios frágeis.

O primeiro é a intenção: quem consome está aproveitando a vida e ostentando por acidente (aceitável) ou está gozando da ostentação que impõe aos outros o espetáculo de seu poder (inaceitável)?

O segundo é o bom gosto: numa sociedade organizada pelas aparências, critérios estéticos podem regrar as escolhas morais.

Na Inglaterra do começo do século 19 (também época de transição), surgiu o movimento dândi. Os dândis são lembrados como desvairados obcecados por sua aparência, mas tiveram uma função modernizadora crucial: substituíram o privilégio do sangue pelo privilégio da elegância (acessível a qualquer um que a ela se dedicasse). Se um judeu, como Disraeli, pôde se tornar ministro da rainha Vitória, foi também por ele ser um dândi.

Ora, Beau Brummel, supremo árbitro do dandismo, perdia horas na frente do espelho, cuidando de sua aparência. Mas, antes de se aventurar pelas ruas de Londres, submetia-se a um teste. Ficava um tempo na esquina. Se ninguém o notasse, se ele passasse despercebido, considerava que estava pronto e bem vestido.