quinta-feira, 12 de junho de 2003

O trauma está na moda

Claro, existem experiências que causam estresse em qualquer um. A lista é intuitiva: sofrer abuso, ser estuprado, torturado, bombardeado, atropelado, abandonado ou, simplesmente, maltratado.

Acreditamos firmemente que as feridas produzidas em nosso espírito por experiências desse tipo continuem doendo e supurando durante um bom tempo, se não para sempre.

Essa convicção alimenta indulgências e pretextos duvidosos. Vai ver que a mãe de Fernandinho Beira-Mar batia nele três vezes por dia; portanto, pedimos a clemência da corte. Uma moça não consegue dormir e é consumida pela angústia; acontece que, no escritório, ela é constantemente exposta a observações devassas que a traumatizam: será que pode exigir danos materiais e morais? A fé no trauma alimenta uma indústria jurídica e terapêutica.

Excessos à parte, ninguém nega, hoje, que os traumas existam e tenham consequências nefastas. Mas é notável que a categoria clínica de "transtorno de estresse pós-traumático" tenha sido reconhecida oficialmente só em 1980. Acontece que somos cada vez mais modernos: veneramos o futuro e perdemos a capacidade de integrar o passado na narrativa de nossas vidas. Com isso, os eventos marcantes aparecem facilmente como traumas, restos enigmáticos aos quais atribuímos poderes quase mágicos porque não conseguimos incorporá-los à nossa história.

Richard McNally acaba de publicar "Remembering Trauma" (Lembrando-se do Trauma), editora Belknap/Harvard. O livro apresenta de maneira magistral e exaustiva a literatura científica sobre o tema e responde a estas perguntas cruciais: 1) O que constitui um trauma? 2) Por que e como o dito trauma tem consequências nefastas?

1) Nenhum evento é traumático por natureza. Uma violência extrema pode deixar meu espírito incólume, enquanto uma palavrinha inofensiva pode me perturbar para sempre. O valor traumático de um evento não depende de sua brutalidade, mas de como eu integro esse evento no sentido que atribuo à minha existência.

Uma pesquisa demonstra que presos políticos torturados sofrem muito menos de transtornos pós-traumáticos do que presos que foram torturados, digamos assim, "por engano". Ou seja, a violência marca para a vida só aqueles que não dispõem de recursos para lhe atribuir um sentido.
Outras pesquisas mostram que, contrariamente à opinião recebida, a percentagem de militares americanos que sofreram um "colapso nervoso" durante a Guerra do Vietnã é muito menor do que nas outras guerras do século passado. Mas a proporção muda ao levar em conta os soldados que manifestaram transtornos pós-traumáticos depois da volta para casa. Ou seja, os horrores da guerra se tornaram traumas quando os veteranos aprenderam que suas vivências não eram valorizadas pela maioria do povo americano. Eles se depararam, assim, com a impossibilidade de dar sentido às experiências pelas quais tinham passado. O filme que trata dos efeitos traumáticos da Guerra do Vietnã nos soldados americanos não é "Apocalypse Now", mas "Rambo" (o primeiro da série).

2) Sobre a razão pela qual um evento perturbador pode nos afetar duravelmente, temos opiniões contraditórias. Pensamos que ele nos afeta porque não conseguimos esquecê-lo. Ou, ao contrário, que o esquecemos, e agora ele nos atormenta de seu esconderijo nos bastidores da memória. Coerente, a sabedoria popular propõe dois remédios opostos: "Pare de pensar nisso que vai se sentir melhor" ou, então, "Tente se lembrar detalhadamente, pois os pensamentos que a gente evita voltam sob forma de pesadelos". Qual é a atitude certa?

Para McNally, a questão é descabida, pois, de qualquer forma, segundo as pesquisas, os eventos perturbadores são quase sempre vividamente lembrados. E nada prova que exista algum tipo de amnésia seletiva dos acontecimentos desagradáveis. Se você não se lembra de ter sofrido abuso quando criança, você não sofreu. É possível ter calafrios pensando nas fantasias escusas que, por alguma razão, você supôs nos outros e em si mesmo. Mas, quanto aos fatos, fique sossegado: o que você não lembra não aconteceu.

Em suma, o dilema não é entre esquecer e lembrar, mas entre conseguir ou não dar sentido a fatos dos quais, inevitavelmente, nos lembramos.

A vulgarização da psicanálise foi responsável, em parte, pela idéia de que seríamos todos patologicamente amnésicos. "Doutor, sofro de vertigem e não sei por quê; me ajude." "Pois é", responde o doutor, "está dito em seus sonhos (em linguagem misteriosa) que sua mãe, irritada, um dia deixou cair esse nenê que não parava de chorar". Bingo! Lembre-se e cure-se.

O diálogo dá (e deu mesmo) um bom filme. Mas as verdadeiras questões são outras. Não esqueci que a mãe me deixou cair. Agora será que ela quis me jogar no chão? Foi falta de amor? Foi vontade repentina de agarrar o pai? De agarrar o carteiro? Ou o acidente foi o efeito do excesso de Hipoglós, que me tornou escorregadio como um sabonete?

O fato é sempre bem lembrado. Nossos transtornos (e nossa vida) dependem das respostas que encontramos para as perguntas que acabo de evocar e para outras análogas.

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