quinta-feira, 19 de junho de 2003

A mídia e as memórias de Hillary Clinton

Na segunda-feira da semana passada, chegou às livrarias "Living History" ("história viva" ou "vivendo a história"), de Hillary Rodham Clinton, ex-primeira-dama dos EUA e senadora pelo Estado de Nova York. No primeiro dia, venderam-se 200 mil exemplares.

Não houve distribuição prévia do livro à imprensa. Apesar disso, no Brasil, alguém escreveu, no meio da semana, que a única coisa interessante nas memórias era a historieta de Bill Clinton e Monica Lewinsky. Felicitações: em três dias, ele conseguiu receber o livro e ler as 500 páginas.
Os profissionais da mídia americana, em sua maioria, não fizeram melhor. No índice analítico, procuraram "Monica Lewinsky" e "Whitewater" (o nome do investimento imobiliário no qual os Clintons perderam suas economias sem cometer ilegalidade nenhuma). Os comentaristas, ao que parece, apostaram que o povo (sempre burro, não é?) gostaria de histórias escabrosas.

Se pensaram assim, erraram. Para ler nos retalhos de tempo, carreguei o livro por todo canto de Nova York. Em seis dias, fui interpelado por dezenas de desconhecidos que planejavam ler o livro ou já estavam lendo: porteiros, caixas de farmácia e de supermercado, garçons, halterofilistas, corredores de esteira, seguranças, bombeiros. Só um deles mencionou o caso Lewinsky, para notar que não entendia que ainda se falasse desse episódio insignificante. Todos perguntavam como foi a juventude de Hillary e, sobretudo, quais eram suas aspirações políticas de hoje: concorreria à Presidência? E seu antigo projeto de assistência médica gratuita?
O dito povo, ao menos em parte, parece estar disposto a acreditar que existam vidas animadas pela paixão cívica do serviço público.

Fora o preconceito segundo o qual o povo gostaria de roupa suja, por que diabo a mídia, em massa, soube apenas associar o nome de Hillary Clinton à escapadela Lewinsky ou a uma pequena maracutaia imobiliária desmentida pela Justiça? Por que comentaram o livro como se a vida de Hillary não fosse uma história política, mas um conto de infidelidades conjugais (do marido) e de interesses escusos?

Será que a urgência e a preguiça de ler produziram o espírito de porco dos comentaristas? Suspeito que haja uma outra razão, como se diz, mais embaixo.

O tratamento reservado ao livro de Hillary é exemplar de uma atitude que conhecemos bem: quando os outros são melhores que nós, tentamos rebaixá-los, por vergonha. Imaginando neles nossos próprios defeitos, afirmamos nossa inocência. Por exemplo, é providencial que muitos políticos sejam corruptos, pois isso nos permite afirmar que todos são. Justificamos, assim, a mediocridade de nossos engajamentos políticos e sociais.

Ora, no livro de Hillary Clinton, há três eixos éticos.

O primeiro orienta seu casamento com Bill Clinton. "Perguntam-me com frequência por que Bill e eu ficamos juntos.(...) O que dizer para explicar um amor que persistiu por décadas e cresceu nas experiências de criar uma filha, de enterrar nossos pais e de nos ocupar de nossos familiares, compartilhando as amizades de uma vida inteira, uma fé comum e uma dedicação persistente ao nosso país? Só sei que ninguém me entende melhor e ninguém me faz rir como Bill. (...) Bill Clinton e eu começamos uma conversa na primavera de 1971; 30 anos depois ainda estamos conversando."

O segundo concerne à vida pública. Hillary nasceu na pequena burguesia, conquistou o acesso às melhores universidades, tornou-se advogada e, em vez de enriquecer tranquila, escolheu o serviço público. Sua vida é uma série de engajamentos políticos: começou aos 12 anos e continuou até o Senado, passando pelo ativismo nas campanhas de Barry Goldwater (na adolescência, ela era republicana como seu pai), de Jimmy Carter e de Clinton. Sem contar a militância feminista e o trabalho incessante em defesa das crianças menos favorecidas.

Terceiro eixo: nesse percurso, Hillary manteve a disponibilidade ao diálogo, ou seja, a capacidade de reconhecer que o adversário político pode discordar quanto aos meios e às prioridades, mas não por isso ele é necessariamente um inimigo da comunidade.

Em suma, a moral de "Living History" diz: vale a pena lutar para as relações que importam numa vida, vale a pena dedicar-se ao bem comum e vale a pena reconhecer que os outros podem discordar de nós sem ser bandidos. É uma moral incômoda.

Em geral, preferimos encarar o casamento não como a construção laboriosa de uma vida juntos, mas como uma rápida contabilidade de prazeres: está chato? Acabe logo.

Também preferimos acreditar que a dedicação ao serviço público seja um conto do vigário ou, melhor, do vigarista: trapaceie sem escrúpulos, pois só há trapaceiros. Quanto a quem discorda de você, mande matar ou, não podendo, impeça suas ações, sobretudo se elas forem certas: pouco importa o bem comum, o essencial é que o adversário se rale.

Para desculpar essa mesquinhez, nada melhor que imaginá-la nos outros. Nossa mediocridade sairá melhor na foto, se puder se confundir com a mediocridade de todos.

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