Nos últimos dias, li ou escutei não sei quantas vezes que Luiz Inácio Lula da Silva é um ex-metalúrgico, um ex-operário e um ex-retirante pernambucano.
Dependendo das circunstâncias, essas expressões têm sentidos diversos: simpatia, admiração, condescendência paternalista, suficiência, desprezo. Seja como for, o lembrete manifesta, no mínimo, o seguinte: é uma surpresa absoluta que um homem dessa extração tenha chegado à Presidência. A origem humilde de Lula tornou-se uma notícia: para alguns, um espanto; para outros, um valor e a promessa de um futuro diferente.
A surpresa não deveria ser tamanha. Afinal, funciona, há um certo tempo, um quadro democrático formal. E, contrariamente à opinião frequentemente recebida, o Brasil é um país com acelerada mobilidade social. Por que um operário não chegaria à suprema magistratura do país?
O verdadeiro mistério é o estranhamento de todos, inclusive do novo presidente, que se comove com a lembrança de suas origens. Em suma, é óbvio que chegar à Presidência saindo de um berço humilde constitui um mérito extraordinário, mas a surpresa que todos manifestam ressoa como algo mais do que o reconhecimento da façanha de Lula. O caminho percorrido pelo novo presidente surpreende não apenas como uma espetacular ascensão social mas como se representasse uma transgressão da ordem das castas. Fala-se de Lula metalúrgico e retirante como, numa sociedade tradicional, poderia ser celebrada (ou execrada) a chegada de um pária ao poder.
Quando Bill Clinton foi eleito presidente dos Estados Unidos, houve, na imprensa americana, artigos lembrando suas origens pobres e desastradas (o pai que morreu antes de ele nascer, as dificuldades e a coragem da mãe para criá-lo, o padrasto alcoólatra e abusador). Era claro que ele não pertencia nem de longe ao clube do "establishment" americano. Isso era uma surpresa desagradável para alguns e agradável para outros, mas não foi nunca uma manchete, embora o fato fosse pouco banal (a mobilidade social nos EUA de hoje não é maior do que a brasileira). Não houve títulos anunciando: "Filho adotivo de alcoólatra abusador chega à Presidência". Para que, nos Estados Unidos, a imprensa e a rua fossem levadas a lembrar constantemente as origens de um presidente, ele deveria ser negro ou mulher. Aí, sim, seria repetidamente conclamado que foram eleitos, enfim, o primeiro negro ou a primeira mulher presidentes.
Com Lula acontece isto: suas origens sociais são evocadas não para lembrar uma diferença que, no Brasil moderno, é difícil, mas possível, percorrer. Elas parecem ser evocadas para lembrar um fosso que, normalmente, é proibido atravessar.
Apesar do verniz de modernidade e da efetiva mobilidade, as diferenças sociais, no Brasil, são vividas como diferenças essenciais, mais parecidas com distâncias qualitativas (raciais e racistas, por exemplo) do que com as disparidades econômicas que, na modernidade, deveriam ser a forma principal, se não única, de diferença social.
Lula, numa outra democracia, seria apresentado como um líder sindical e político que foi eleito presidente. No Brasil, ele é apresentado como operário e retirante: sua chegada à Presidência constitui um alvoroço, porque "operário" e "retirante" parecem designar espécies distintas. É como se Spartacus, o escravo, se tornasse imperador em Roma.
Nesse quadro, como entender o apoio que as elites mais conservadoras deram à candidatura de Lula? Nesta eleição, houve uma grande novidade: quebrou-se a aliança, que durava desde o fim da ditadura, entre as forças da modernização social-democrata e as forças ligadas à manutenção das formas mais arcaicas do poder.
Durante séculos, as elites antigas e escravocratas inventaram e aperfeiçoaram um erotismo do poder especificamente nacional, feito de condescendência e posse dos corpos, de brutalidade e paternalismo. Protegendo seu gozo, elas receavam e receiam tanto a insurreição dos explorados quanto a modernidade que transforma os escravos em trabalhadores e, aos poucos, promove uma sociedade de classes médias.
Parece que, depois de oito anos de FHC, essas elites tradicionais acharam que, para o estilo de domínio que elas preferem, a social-democracia talvez fosse mais ameaçadora do que a reivindicação e a rebelião popular. Afinal, devem ter pensado, a revolta dos escravos a gente conhece, ela faz parte da ordinária administração: sempre pode ser reprimida (ao estilo de Canudos) ou enrolada na condescendência, quem sabe em nome de um nacionalismo pretensamente comum. Elas apostaram, ao que parece, que o povo revoltado seria um aliado, temporariamente, contra a modernidade e, com isso, lhes prolongaria a sobrevida.
É certo que elas não encontrarão em Lula a complacência esperada. Outra coisa também é certa: para que o mundo inventado e curtido pelas elites tradicionais mude, será bom que reconvirjam as forças dos que desejam que isso aconteça -forças que, nestas eleições, se separaram.
quinta-feira, 31 de outubro de 2002
quinta-feira, 24 de outubro de 2002
Conversas sobre eleições e cidadania
Domingo , num restaurante da Nona Avenida, em Nova York, conversei sobre as eleições com L.R., 30, músico, brasileiro. Ele chegou aos EUA em 1993 e tem, hoje, dupla nacionalidade.
L.R. não votou no primeiro turno e não votará no segundo. Não foi por falta de ter retirado seu título de eleitor no consulado. Nada disso: ele não votou e não votará porque não se reconhece o direito de votar: "Não me parece justo. Faria uma escolha da qual não encararia as consequências. Voto em Fulano, o país vai à m..., e eu, aqui, tranquilo. Além disso, não sei se a gente ainda é verdadeiramente cidadão quando não entra com uma cota. Claro que sou brasileiro, mas pago meus impostos aqui, não no Brasil. Quem não paga imposto não é plenamente cidadão".
É óbvio que L. não pretende excluir do voto quem não tem renda para declarar. Sua idéia é a seguinte: contribuir, de alguma forma, na invenção do país é a condição para opinar sobre seu rumo. No caso, pagar os impostos é a contribuição mínima esperada de quem ganha mais do que o necessário.
Ao contrário de um absenteísta, L.R. não vota porque leva o voto a sério. Para estabelecer a legitimidade das urnas, não lhe basta que a escolha do eleitor seja secreta e livre. Ele propõe que, para votar, seja obrigatório pertencer concretamente à comunidade. Por que alguém se pronunciaria sobre o futuro de nossa comunidade, se ele não está disposto a dar sua contribuição para esse futuro? É o espírito do discurso de posse de J.F. Kennedy, em 1961: "Não pergunte o que o país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo o país".
Que ele tenha razão ou não, L.R. tem toda a minha simpatia. Mas, depois de escutar suas reflexões, voltei para casa preocupado. Pensava numa outra conversa, três dias antes, em São Paulo, com um comerciante dos Jardins, que é uma presença amigável perto de minha casa.
O comerciante queixava-se de que, nos 20 anos durante os quais conseguiu manter sua loja, ele não se tornou rico: ainda batalha no fim do mês e culpa o governo por isso. Está na hora de mudar: quem sabe um governo completamente outro permita, enfim, que ele prospere como acha que merece. O poder central é o culpado por ele não ter alcançado seus sonhos, e o poder central também é a solução.
No começo, há um ato de fé num sistema de recompensas de tipo divino: trabalhei 20 anos e mereço, pouco importa considerar se escolhi o produto certo ou se soube competir com a concorrência. No fim, outro ato de fé: a esperança é depositada no governo, como se ele fosse não apenas o representante de nossas vontades mas uma entidade divina, operando por milagres.
É a herança do Brasil colônia: o governo não somos nós, não emana de nós e não nos representa.
É Lisboa, que não se confunde nem um pouco com nossa comunidade. Lisboa, Brasília ou Washington são responsáveis por nossos males. Roubam de nós e, portanto, na hora da dificuldade, têm o dever de nos ajudar. Nós não lhes devemos nada: são elas que nos devem. Outra herança do sonho colonial: se alguém não prospera, a culpa é do governo. No paraíso terrestre, se as plantas deixam de crescer, não é por falta de adubo ou pelo pouco cuidado dos homens: é sempre por maldade de uma divindade invejosa. Quem sabe uma nova divindade seja mais indulgente conosco?
Durante a conversa, uma amiga entrou na loja e o papo continuou, animado, entre a amiga, serrista, e o comerciante, lulista pelas razões mencionadas. A amiga entrara na loja para escolher um presente. Comprou e, receosa de que o presenteado não gostasse, pediu a nota fiscal, para que, eventualmente, a mercadoria pudesse ser trocada. O comerciante (brincando, mas, como se diz em música, "non troppo") declarou: "Nota fiscal, com este governo que está aí, eu não dou. Talvez se o PT ganhar".
De novo, nosso arcaísmo. A revolução burguesa ainda não trouxe seus melhores frutos: muitos, não necessariamente entre os mais pobres, têm (temos) com o governo central, seja qual for, uma relação não de cidadãos, mas de súditos. A experiência de pagar impostos confunde-se com aquela dos vassalos, quando pagavam tributos ao senhor ou com a dos colonos, obrigados a enriquecer a potência colonial que os despachou para a nova terra.
Nesse espírito, sonegar é glória, quase um ato de resistência. Presumimos, com desconfiança historicamente justificada, que os governantes estejam sempre contra nós: por definição, representantes de um poder estrangeiro. Trocar de governo, por consequência, não significa querer uma mudança da sociedade e de nós mesmos: é mais como chamar, sei lá, a Inglaterra para que nos tire a França das costas para que possamos, portanto, seguir cuidando de nossos negócios e interesses particulares.
Se os eleitores de domingo forem, em sua maioria, como o comerciante dos Jardins, tão parecido com todos nós, Deus proteja o próximo governo. Se forem como L.R., não precisaremos de proteção divina. O diabo é que logo L.R. não votou.
L.R. não votou no primeiro turno e não votará no segundo. Não foi por falta de ter retirado seu título de eleitor no consulado. Nada disso: ele não votou e não votará porque não se reconhece o direito de votar: "Não me parece justo. Faria uma escolha da qual não encararia as consequências. Voto em Fulano, o país vai à m..., e eu, aqui, tranquilo. Além disso, não sei se a gente ainda é verdadeiramente cidadão quando não entra com uma cota. Claro que sou brasileiro, mas pago meus impostos aqui, não no Brasil. Quem não paga imposto não é plenamente cidadão".
É óbvio que L. não pretende excluir do voto quem não tem renda para declarar. Sua idéia é a seguinte: contribuir, de alguma forma, na invenção do país é a condição para opinar sobre seu rumo. No caso, pagar os impostos é a contribuição mínima esperada de quem ganha mais do que o necessário.
Ao contrário de um absenteísta, L.R. não vota porque leva o voto a sério. Para estabelecer a legitimidade das urnas, não lhe basta que a escolha do eleitor seja secreta e livre. Ele propõe que, para votar, seja obrigatório pertencer concretamente à comunidade. Por que alguém se pronunciaria sobre o futuro de nossa comunidade, se ele não está disposto a dar sua contribuição para esse futuro? É o espírito do discurso de posse de J.F. Kennedy, em 1961: "Não pergunte o que o país pode fazer por você, pergunte o que você pode fazer pelo o país".
Que ele tenha razão ou não, L.R. tem toda a minha simpatia. Mas, depois de escutar suas reflexões, voltei para casa preocupado. Pensava numa outra conversa, três dias antes, em São Paulo, com um comerciante dos Jardins, que é uma presença amigável perto de minha casa.
O comerciante queixava-se de que, nos 20 anos durante os quais conseguiu manter sua loja, ele não se tornou rico: ainda batalha no fim do mês e culpa o governo por isso. Está na hora de mudar: quem sabe um governo completamente outro permita, enfim, que ele prospere como acha que merece. O poder central é o culpado por ele não ter alcançado seus sonhos, e o poder central também é a solução.
No começo, há um ato de fé num sistema de recompensas de tipo divino: trabalhei 20 anos e mereço, pouco importa considerar se escolhi o produto certo ou se soube competir com a concorrência. No fim, outro ato de fé: a esperança é depositada no governo, como se ele fosse não apenas o representante de nossas vontades mas uma entidade divina, operando por milagres.
É a herança do Brasil colônia: o governo não somos nós, não emana de nós e não nos representa.
É Lisboa, que não se confunde nem um pouco com nossa comunidade. Lisboa, Brasília ou Washington são responsáveis por nossos males. Roubam de nós e, portanto, na hora da dificuldade, têm o dever de nos ajudar. Nós não lhes devemos nada: são elas que nos devem. Outra herança do sonho colonial: se alguém não prospera, a culpa é do governo. No paraíso terrestre, se as plantas deixam de crescer, não é por falta de adubo ou pelo pouco cuidado dos homens: é sempre por maldade de uma divindade invejosa. Quem sabe uma nova divindade seja mais indulgente conosco?
Durante a conversa, uma amiga entrou na loja e o papo continuou, animado, entre a amiga, serrista, e o comerciante, lulista pelas razões mencionadas. A amiga entrara na loja para escolher um presente. Comprou e, receosa de que o presenteado não gostasse, pediu a nota fiscal, para que, eventualmente, a mercadoria pudesse ser trocada. O comerciante (brincando, mas, como se diz em música, "non troppo") declarou: "Nota fiscal, com este governo que está aí, eu não dou. Talvez se o PT ganhar".
De novo, nosso arcaísmo. A revolução burguesa ainda não trouxe seus melhores frutos: muitos, não necessariamente entre os mais pobres, têm (temos) com o governo central, seja qual for, uma relação não de cidadãos, mas de súditos. A experiência de pagar impostos confunde-se com aquela dos vassalos, quando pagavam tributos ao senhor ou com a dos colonos, obrigados a enriquecer a potência colonial que os despachou para a nova terra.
Nesse espírito, sonegar é glória, quase um ato de resistência. Presumimos, com desconfiança historicamente justificada, que os governantes estejam sempre contra nós: por definição, representantes de um poder estrangeiro. Trocar de governo, por consequência, não significa querer uma mudança da sociedade e de nós mesmos: é mais como chamar, sei lá, a Inglaterra para que nos tire a França das costas para que possamos, portanto, seguir cuidando de nossos negócios e interesses particulares.
Se os eleitores de domingo forem, em sua maioria, como o comerciante dos Jardins, tão parecido com todos nós, Deus proteja o próximo governo. Se forem como L.R., não precisaremos de proteção divina. O diabo é que logo L.R. não votou.
quinta-feira, 17 de outubro de 2002
Seis razões para votar em Enéas
Enéas Carneiro foi eleito deputado federal por São Paulo com quase 1,6 milhão de votos. Para entender melhor o porquê de seu sucesso, consultei vários eleitores que votaram nele. As respostas que ouvi foram de seis tipos.
1) "Enéas vai encher o saco deles, lá em Brasília." Entende-se: Enéas não é um político. Vai para Brasília como ia para Washington o mr. Smith do filme de Frank Capra ("Mr. Smith Goes to Washington", traduzido misteriosamente para "A Mulher Faz o Homem"). Cidadão comum honesto e idealista como Smith, Enéas enfrentará o sistema político corrupto.
Sonhamos com uma democracia em que os bairros e as vilas escolheriam um de seus membros, que aceitaria o mandato a contragosto, por dever cívico. Nesse sonho, nossos representantes se dedicariam à política temporariamente e por necessidades específicas (um projeto, uma missão). Desconfiamos da política como carreira ou como ambição, e Enéas é o porta-voz de nosso desgosto com os políticos profissionais.
2) "Ele não tem o rabo preso" e "ele não tem papas na língua". Enéas grita e ataca: sua fúria não poupará suscetibilidades. Ele ousará bater em qualquer um, doa a quem doer. É homem adamantino, inteiro, que não aceita negociatas nem alianças duvidosas. Só tem compromisso com a causa fundamental: a da nação.
Nisso ele não é apenas diferente dos políticos tradicionais. Ele representa também o contrário da inevitável covardia de nossos compromissos cotidianos. Votando nele, resgatamos os sapos que engolimos a cada dia. "Não posso mandar meu chefe ou meu tio à p.q.p.? Voto no Enéas. Ele é minha coragem."
3) "Enéas não tenta ser bonito." Ele é o oposto do galã. Aprendemos, eventualmente, que ele pinta a barba, mas pouco importa: ele está acima das frescuras. Nenhum Duda Mendonça apara seus pêlos.
Votando nele, compensamos nossa frustração com as inevitáveis imperfeições de nossa própria imagem. O voto é uma declaração contra o culto das aparências, que sempre enganam. "Detesto o meu próprio "look'? Voto no Enéas, o candidato para quem o "look" não importa. De repente, a imperfeição do meu semblante prova que, como Enéas, eu não engano ninguém: somos autênticos."
4) "Enéas é inteligente." Ninguém conhece bem as idéias de Enéas. Só se constata que ele está indignado. Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores. Ao mesmo tempo, sabe-se que Enéas é cardiologista. Dedução: se ele é doutor e tem esporros no lugar das idéias, isso prova que os esporros (os meus, por exemplo) podem ser inteligentes.
Em suma, a indignação é validada como uma maneira de pensar a realidade. É uma receita tradicional da oratória política: o bom orador tem credibilidade suficiente para oferecer esporros em vez de idéias e, assim, convencer seus ouvintes de que, quando eles estrilam, pensam.
5) "Com Enéas não tem conversa." Salvo loucuras um tanto suicidas, a margem de manobra de quem assumirá o poder depois destas eleições será pequena. O contexto internacional e o momento limitam nossas esperanças.
Enéas cura essa impotência: ele nos sugere que tudo o que acontece é efeito de inimigos identificáveis que conspiram contra a gente. O contexto e o momento escondem um complô. Portanto a complexidade do mundo é uma desculpa com a qual não queremos papo: ela não freará a nossa ação.
6) "Ele vai denunciar sem piedade." Enéas não tem medo de designar seus (nossos) inimigos. Seu espírito não é intimidado por empatias espontâneas que sempre sugerem clemência. Ou seja, na hora de acusar invasores e traidores, ele não vacilará, porque não reconhece em si nenhum dos vícios dos culpados. Se pode jogar facilmente a primeira pedra, é porque deve estar sem pecado.
Identificados com Enéas, podemos acreditar que nossos inimigos, por exemplo os corruptos que vendem a nação, sejam radicalmente diferentes de nós. Não teremos medo de apontar o dedo, porque estaremos sem manchas. O sonegador despejará sua raiva sobre a malversação empreendida pelos poderosos, esquecendo o que ele tem em comum com eles. O usureiro bradará contra os juros abusivos dos bancos. O aproveitador, o pequeno corruptor, o fura-fila, o comerciante que não imprime nota fiscal poderão fazer-se paladinos da legalidade.
Enéas redime nossa capacidade de acusar e condenar. Nas suas palavras, o acusado torna-se absolutamente outro, e podemos, por um instante, desconhecer a nós mesmos, ou seja, desconhecer o que há em nós que nos acomuna com os culpados. É um descanso: a acusação feita aos outros nos exime da tarefa de transformar a nós mesmos.
Conclusão: com Enéas, os ideais nos animam, a pureza nos sustenta, somos sinceros porque não somos bonitos, e nossa raiva é inteligente. Também, com Enéas, não cairemos no conto do vigário da complexidade do mundo, mas iremos direto para a garganta do mal. E poderemos desconhecer que somos, todos e sempre, um pouco parecidos com nossos inimigos. Que é que pode haver de melhor?
1) "Enéas vai encher o saco deles, lá em Brasília." Entende-se: Enéas não é um político. Vai para Brasília como ia para Washington o mr. Smith do filme de Frank Capra ("Mr. Smith Goes to Washington", traduzido misteriosamente para "A Mulher Faz o Homem"). Cidadão comum honesto e idealista como Smith, Enéas enfrentará o sistema político corrupto.
Sonhamos com uma democracia em que os bairros e as vilas escolheriam um de seus membros, que aceitaria o mandato a contragosto, por dever cívico. Nesse sonho, nossos representantes se dedicariam à política temporariamente e por necessidades específicas (um projeto, uma missão). Desconfiamos da política como carreira ou como ambição, e Enéas é o porta-voz de nosso desgosto com os políticos profissionais.
2) "Ele não tem o rabo preso" e "ele não tem papas na língua". Enéas grita e ataca: sua fúria não poupará suscetibilidades. Ele ousará bater em qualquer um, doa a quem doer. É homem adamantino, inteiro, que não aceita negociatas nem alianças duvidosas. Só tem compromisso com a causa fundamental: a da nação.
Nisso ele não é apenas diferente dos políticos tradicionais. Ele representa também o contrário da inevitável covardia de nossos compromissos cotidianos. Votando nele, resgatamos os sapos que engolimos a cada dia. "Não posso mandar meu chefe ou meu tio à p.q.p.? Voto no Enéas. Ele é minha coragem."
3) "Enéas não tenta ser bonito." Ele é o oposto do galã. Aprendemos, eventualmente, que ele pinta a barba, mas pouco importa: ele está acima das frescuras. Nenhum Duda Mendonça apara seus pêlos.
Votando nele, compensamos nossa frustração com as inevitáveis imperfeições de nossa própria imagem. O voto é uma declaração contra o culto das aparências, que sempre enganam. "Detesto o meu próprio "look'? Voto no Enéas, o candidato para quem o "look" não importa. De repente, a imperfeição do meu semblante prova que, como Enéas, eu não engano ninguém: somos autênticos."
4) "Enéas é inteligente." Ninguém conhece bem as idéias de Enéas. Só se constata que ele está indignado. Ora, a indignação é a forma mais barata de inteligência: ela substitui a complexidade pela irritação dos humores. Ao mesmo tempo, sabe-se que Enéas é cardiologista. Dedução: se ele é doutor e tem esporros no lugar das idéias, isso prova que os esporros (os meus, por exemplo) podem ser inteligentes.
Em suma, a indignação é validada como uma maneira de pensar a realidade. É uma receita tradicional da oratória política: o bom orador tem credibilidade suficiente para oferecer esporros em vez de idéias e, assim, convencer seus ouvintes de que, quando eles estrilam, pensam.
5) "Com Enéas não tem conversa." Salvo loucuras um tanto suicidas, a margem de manobra de quem assumirá o poder depois destas eleições será pequena. O contexto internacional e o momento limitam nossas esperanças.
Enéas cura essa impotência: ele nos sugere que tudo o que acontece é efeito de inimigos identificáveis que conspiram contra a gente. O contexto e o momento escondem um complô. Portanto a complexidade do mundo é uma desculpa com a qual não queremos papo: ela não freará a nossa ação.
6) "Ele vai denunciar sem piedade." Enéas não tem medo de designar seus (nossos) inimigos. Seu espírito não é intimidado por empatias espontâneas que sempre sugerem clemência. Ou seja, na hora de acusar invasores e traidores, ele não vacilará, porque não reconhece em si nenhum dos vícios dos culpados. Se pode jogar facilmente a primeira pedra, é porque deve estar sem pecado.
Identificados com Enéas, podemos acreditar que nossos inimigos, por exemplo os corruptos que vendem a nação, sejam radicalmente diferentes de nós. Não teremos medo de apontar o dedo, porque estaremos sem manchas. O sonegador despejará sua raiva sobre a malversação empreendida pelos poderosos, esquecendo o que ele tem em comum com eles. O usureiro bradará contra os juros abusivos dos bancos. O aproveitador, o pequeno corruptor, o fura-fila, o comerciante que não imprime nota fiscal poderão fazer-se paladinos da legalidade.
Enéas redime nossa capacidade de acusar e condenar. Nas suas palavras, o acusado torna-se absolutamente outro, e podemos, por um instante, desconhecer a nós mesmos, ou seja, desconhecer o que há em nós que nos acomuna com os culpados. É um descanso: a acusação feita aos outros nos exime da tarefa de transformar a nós mesmos.
Conclusão: com Enéas, os ideais nos animam, a pureza nos sustenta, somos sinceros porque não somos bonitos, e nossa raiva é inteligente. Também, com Enéas, não cairemos no conto do vigário da complexidade do mundo, mas iremos direto para a garganta do mal. E poderemos desconhecer que somos, todos e sempre, um pouco parecidos com nossos inimigos. Que é que pode haver de melhor?
Assinar:
Postagens (Atom)