1) Liberalismo
O liberalismo promoveu uma idéia curiosa: para fazer a felicidade de todos (ou, ao menos, da maioria), não seria necessário decidir qual é o bem comum e, logo, impor aos cidadãos que se esforçassem para realizá-lo. Seria suficiente que cada um se preocupasse com seus interesses e seu bem-estar. Essa atitude espontânea garantiria o melhor mundo possível para todos. Afinal, nenhum malandro seria burro (não é?) a ponto de perseguir seu interesse particular de maneira excessiva, pois isso comprometeria o bem-estar dos outros e produziria conflitos que reverteriam contra o suposto malandro.
Ora, o liberalismo, aparentemente, pegou feio. Não paro de encontrar pessoas convencidas de que, cuidando só de seus interesses, elas, no mínimo, não fazem mal a ninguém.
Converso com M., que dirige o táxi que me leva a Guarulhos. Falamos das perspectivas políticas. Ele está indignado com a corrupção das altas e das baixas esferas da política, convencido de que, sem ladrões, o país avançaria e resolveríamos nossos problemas. Concordo, mas aponto que, mesmo calculando generosamente, o dinheiro que some na corrupção não seria suficiente para mudar a cara do Brasil. Sem dúvida, deve ser bem inferior ao dinheiro que o governo deixa de arrecadar por causa da sonegação banal: rendas não declaradas, notas fiscais que só aparecem sob pedido e por aí vai.
M. aceita essa idéia com gosto e lança-se numa diatribe contra os sonegadores, inimigos do povo brasileiro tanto quanto os corruptos. Pergunto a M. quanto ele paga de Imposto de Renda. Ganho a famosa resposta: "Não adianta pagar, porque nada volta para a gente". Alego que não adianta esperar que algo volte, se a gente não paga.
A conversa pára. Depois de um silêncio perplexo, M. proclama que, de qualquer forma, se os Estados Unidos gastassem menos em armamentos, se não insistissem em querer ser os mais fortes do mundo (intenção explícita da doutrina Bush), aí eles teriam dinheiro suficiente para ajudar todo o mundo e acabar com a fome e a miséria do planeta inteiro.
Não sei qual será a escolha eleitoral de M.. Em todo caso, ele votará convencido de que está se pronunciando contra a corrupção, a favor de mais justiça e de mais independência nacional.
Essa história tem três morais. Primeira: a democracia formal está forte; a concreta, nem tanto. Segunda: os espíritos são nobres, a carne segue fraca. Terceira: o nacionalismo brasileiro pode ser férvido, mas a experiência de uma comunidade de destino ainda está longe.
2) Imigrantes
Em Boston e Nova York, os brasileiros devidamente registrados votarão para presidente. A comunidade que vive nas duas cidades e em suas proximidades deve ser próxima de 500 mil. Desses, votarão, mais ou menos, 20 mil, o que já representa um sucesso das autoridades consulares. Afinal, muitos não têm documentos de imigração e preferem não se manifestar. Seu receio é sem fundamento, pois em nenhum caso o consulado brasileiro entregaria uma lista de cidadãos aos serviços americanos de imigração. Mas a desconfiança é compreensível.
A maioria dos imigrantes nos Estados Unidos votarão divididos entre dois sentimentos. Querem que o Brasil mude, rápida e substancialmente, nem tanto para eles voltarem (muitos já sabem que, se os EUA permitirem, ficarão para sempre ou quase), mas, por assim dizer, para o país tornar-se um lugar de onde não teriam saído. Votarão, sem ressentimento, para que exista um Brasil de onde não teriam viajado. Pela urgência desse desejo de mudança, a maioria dos imigrantes votaria em Lula.
Mas os Estados Unidos são, para eles, o modelo de um lugar onde se sentiram não apenas recompensados por salários mais justos, mas reconhecidos como cidadãos. Paradoxo: às vezes, sentiram-se mais em casa estando nos EUA sem papéis do que nas margens maltratadas da sociedade brasileira. Como muitos outros imigrantes antes deles, os brasileiros nos Estados Unidos já são, aos poucos, brasileiro-americanos. Muitos lêem, perplexos, nos jornais on-line, a suficiência do anti-americanismo nacional. Parece-lhes uma segunda traição: depois de tê-los expulsado, o Brasil condena o lugar para onde foram.
3) Sem garantia
Discuto eleições com amigos. Alguém declara, firme: o que importa é saber qual é o candidato dos trabalhadores e dos deserdados e qual é o candidato dos abastados e poderosos. Implícito: uma vez isso decidido, a escolha moral será simples, estaremos, como na letra de "Guantanamera", "con los pobres de la tierra".
Sinto nostalgia dos tempos em que a resposta a essas perguntas devia ser, além de clara, decisiva. A segunda metade do século 20, aos poucos, nos privou desse conforto.
Coitados de nós, modernos. Foi um esforço de séculos entender que o poder, em si, não constitui uma garantia moral: o poderoso pode ter a espada na mão, mas nem por isso é dono do bem. Agora, à força de totalitarismos populares e ditaduras populistas, descobrimos que a qualidade de oprimido e de explorado tampouco constitui, em si, uma garantia moral.
quinta-feira, 26 de setembro de 2002
quinta-feira, 19 de setembro de 2002
O sorriso de Fernandinho Beira-Mar
Fernandinho Beira-Mar está sorrindo triunfante. Paira no ar sua frase conclusiva, depois do assassinato de seus rivais, no meio de um presídio de segurança máxima: "Tá dominado, tá tudo dominado".
Aviso: ele e seus semelhantes não vão parar de sorrir tão cedo. O narcotráfico continuará presente e influente em nossa sociedade. Para ter uma idéia de seu ciclo econômico, de suas cumplicidades e de suas parcerias políticas, leia o pequeno livro de Mário Magalhães, "O Narcotráfico". Logo, seguindo a observação de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo, considere nossa massa de jovens desempregados ou subempregados: não faltam os voluntários baratos para o exército dos vários Beira-Mar.
Também não faltarão clientes. Os psicanalistas e os psicólogos constatam há tempos que existe uma relação direta entre a sociedade de consumo e o uso de drogas. Esperamos que a felicidade venha dos objetos que consumimos, mas descobrimos repetidamente que não é bem assim: nenhum objeto de consumo é conclusivo. Ao contrário, cada objeto nos remete ao seguinte, como uma bebida que aumentasse a sede. A droga parece prometer uma satisfação final: graças a ela, dispensaremos todos os outros objetos -seu consumo nos apaziguará, enfim. De fato, ela apenas transforma a frustração consumista banal numa privação dolorosa, mas que tem a vantagem de ser unívoca: o drogado, ao menos, sabe o que lhe falta.
Há mais um traço de nossa cultura que garante o bom humor dos Fernandinhos Beira-Mar do mundo inteiro.
Em Nova York, conheci jovens de subúrbios luxuosos que, à noite, percorriam as ruas escuras do Bronx à procura de uma boca de tráfico. E alunos das melhores escolas particulares da cidade, que subiam até a rua 145, no Harlem, e penetravam em prédios assombrados à procura de uma pedra de crack. Conheci jovens do bairro 16, em Paris, que, atrás de haxixe, se perdiam na desolação dos complexos habitacionais mais violentos e racialmente discriminados. Outros, sem deixar o centro da cidade, embrenhavam-se nos meandros da estação do metrô Châtelet, misturando-se às gangues de adolescentes de origem norte-africana. Conheci jovens da zona sul do Rio de Janeiro ou da Barra que subiam regularmente aos morros à procura de coca ou de fumo. Assim como conheci jovens paulistanos de classe média que, à noite, um gorro de lã enfiado na cabeça, erravam ao redor da estação da Luz.
Nenhum deles estava querendo só um baseado, uma pedra ou um papelote. Procuravam também a proximidade com os fornecedores. A viagem para as bocas brabas é uma parte essencial do jogo: a droga vale mais e, quem sabe, funcione melhor, quando é distribuída como uma partícula de marginalidade.
Os "mauricinhos" nacionais, americanos e europeus encontram na miséria e na exclusão dos pequenos traficantes um ideal. Muitos adotam as vestimentas, o estilo, a maneira de caminhar, os gestos e as gírias malandras dos fornecedores de droga.
Os Fernandinhos Beira-Mar do mundo podem sorrir. Eles gozam, com efeito, de um extraordinário poder. Não só a droga é um objeto adequado à sede de consumo, mas a marginalidade de seus difusores faz sonhar os filhos da classe média.
Deve ser uma experiência enlouquecedora: sentir a falta de tudo ou de quase (da dignidade, de uma família, do conforto, do amparo, dos afetos etc.) e encontrar o olhar lânguido dos filhos dos donos do pedaço. Se alguns outros supõem que eu goze de poderes e prazeres desmedidos, quero confirmar sua suposição: encherei o céu de balas e iluminarei a noite queimando corpos.
Mas esse triunfo é para a câmara da imprensa. Os soldadinhos do tráfico conhecem sua própria miséria. Nas horas vagas, eles sonham com o mesmo conforto e os mesmos afetos que, para os "mauricinhos", manifestam o conformismo "desprezível" de seu mundo: a rotina do estudo e do trabalho, os sonhos enlatados, a sabedoria rançosa dos pais.
Em suma, o morro sonha com a praia e a praia sonha com o morro. Para todos, a vida está fora do eixo, sempre alhures. Beira-Mar tem razão: "Tá tudo dominado" -não por ele, mas pela insatisfação de todos com seu destino, que é a condição básica do funcionamento e da expansão de nossa sociedade.
Nos últimos dias, no Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, discutiu-se sobre o glamour que o cinema pode conferir à miséria e à violência. Pretexto mais próximo: "Cidade de Deus", o filme (admirável) de Fernando Meirelles. Questão: será que as imagens cinematográficas da marginalidade extraviam os adolescentes? A coisa é mais complexa. Os rebentos do privilégio podem sonhar com a marginalidade porque constatam o seguinte: os adultos que louvam e querem impor a tranquilidade ordeira da existência, de fato, não sonham com a vida que eles vivem e promovem. Se, na noite, os filhos tomam o caminho do morro, dos subúrbios ou do Harlem, é porque os pais não se deleitam com a calma do lar, mas ficam "zappeando" à procura de um filme de bandidos para devanear felizes antes de dormir.
Aviso: ele e seus semelhantes não vão parar de sorrir tão cedo. O narcotráfico continuará presente e influente em nossa sociedade. Para ter uma idéia de seu ciclo econômico, de suas cumplicidades e de suas parcerias políticas, leia o pequeno livro de Mário Magalhães, "O Narcotráfico". Logo, seguindo a observação de Gilberto Dimenstein na Folha de domingo, considere nossa massa de jovens desempregados ou subempregados: não faltam os voluntários baratos para o exército dos vários Beira-Mar.
Também não faltarão clientes. Os psicanalistas e os psicólogos constatam há tempos que existe uma relação direta entre a sociedade de consumo e o uso de drogas. Esperamos que a felicidade venha dos objetos que consumimos, mas descobrimos repetidamente que não é bem assim: nenhum objeto de consumo é conclusivo. Ao contrário, cada objeto nos remete ao seguinte, como uma bebida que aumentasse a sede. A droga parece prometer uma satisfação final: graças a ela, dispensaremos todos os outros objetos -seu consumo nos apaziguará, enfim. De fato, ela apenas transforma a frustração consumista banal numa privação dolorosa, mas que tem a vantagem de ser unívoca: o drogado, ao menos, sabe o que lhe falta.
Há mais um traço de nossa cultura que garante o bom humor dos Fernandinhos Beira-Mar do mundo inteiro.
Em Nova York, conheci jovens de subúrbios luxuosos que, à noite, percorriam as ruas escuras do Bronx à procura de uma boca de tráfico. E alunos das melhores escolas particulares da cidade, que subiam até a rua 145, no Harlem, e penetravam em prédios assombrados à procura de uma pedra de crack. Conheci jovens do bairro 16, em Paris, que, atrás de haxixe, se perdiam na desolação dos complexos habitacionais mais violentos e racialmente discriminados. Outros, sem deixar o centro da cidade, embrenhavam-se nos meandros da estação do metrô Châtelet, misturando-se às gangues de adolescentes de origem norte-africana. Conheci jovens da zona sul do Rio de Janeiro ou da Barra que subiam regularmente aos morros à procura de coca ou de fumo. Assim como conheci jovens paulistanos de classe média que, à noite, um gorro de lã enfiado na cabeça, erravam ao redor da estação da Luz.
Nenhum deles estava querendo só um baseado, uma pedra ou um papelote. Procuravam também a proximidade com os fornecedores. A viagem para as bocas brabas é uma parte essencial do jogo: a droga vale mais e, quem sabe, funcione melhor, quando é distribuída como uma partícula de marginalidade.
Os "mauricinhos" nacionais, americanos e europeus encontram na miséria e na exclusão dos pequenos traficantes um ideal. Muitos adotam as vestimentas, o estilo, a maneira de caminhar, os gestos e as gírias malandras dos fornecedores de droga.
Os Fernandinhos Beira-Mar do mundo podem sorrir. Eles gozam, com efeito, de um extraordinário poder. Não só a droga é um objeto adequado à sede de consumo, mas a marginalidade de seus difusores faz sonhar os filhos da classe média.
Deve ser uma experiência enlouquecedora: sentir a falta de tudo ou de quase (da dignidade, de uma família, do conforto, do amparo, dos afetos etc.) e encontrar o olhar lânguido dos filhos dos donos do pedaço. Se alguns outros supõem que eu goze de poderes e prazeres desmedidos, quero confirmar sua suposição: encherei o céu de balas e iluminarei a noite queimando corpos.
Mas esse triunfo é para a câmara da imprensa. Os soldadinhos do tráfico conhecem sua própria miséria. Nas horas vagas, eles sonham com o mesmo conforto e os mesmos afetos que, para os "mauricinhos", manifestam o conformismo "desprezível" de seu mundo: a rotina do estudo e do trabalho, os sonhos enlatados, a sabedoria rançosa dos pais.
Em suma, o morro sonha com a praia e a praia sonha com o morro. Para todos, a vida está fora do eixo, sempre alhures. Beira-Mar tem razão: "Tá tudo dominado" -não por ele, mas pela insatisfação de todos com seu destino, que é a condição básica do funcionamento e da expansão de nossa sociedade.
Nos últimos dias, no Espaço Unibanco de Cinema, em São Paulo, discutiu-se sobre o glamour que o cinema pode conferir à miséria e à violência. Pretexto mais próximo: "Cidade de Deus", o filme (admirável) de Fernando Meirelles. Questão: será que as imagens cinematográficas da marginalidade extraviam os adolescentes? A coisa é mais complexa. Os rebentos do privilégio podem sonhar com a marginalidade porque constatam o seguinte: os adultos que louvam e querem impor a tranquilidade ordeira da existência, de fato, não sonham com a vida que eles vivem e promovem. Se, na noite, os filhos tomam o caminho do morro, dos subúrbios ou do Harlem, é porque os pais não se deleitam com a calma do lar, mas ficam "zappeando" à procura de um filme de bandidos para devanear felizes antes de dormir.
quinta-feira, 12 de setembro de 2002
Lembrancinhas do dia 11 de setembro
Ao redor da Times Square, em Nova York, as lojas para turistas vendem camisetas, abrigos, porta-chaves, porta-retratos, enfeites, canetinhas e por aí vai. Lembram as lojas de importados de São Paulo, só que muito maiores e monotemáticas: toda a quinquilharia é para evocar Nova York.
No último ano, os turistas, sobretudo os americanos de outros Estados, vieram para Nova York por solidariedade com a cidade ferida. E a mercadoria teve de adaptar-se.
Numa loja da Broadway com a 47, encontro dois aposentados de Phoenix, Arizona. Juntos contemplamos um rolo de papel higiênico fantasia: cada pedaço traz a cara de Bin Laden e a sugestão: "Wipe out terrorism" (duplo sentido: "limpe o terrorismo" e "acabe com o terrorismo"). Ao lado de Bin Laden, uma novidade: o papel higiênico de Saddam Hussein, com a inscrição : "Wipe your crack with the guy from Iraq" (algo como: "Limpe-se a raque com o cara do Iraque"). Cada rolo sai por quase US$ 7. "Meio caro", observa um de meus interlocutores, " e não estou seguro de querer esse cara tão perto de mim..." "E se ele morder?", brinca o outro. Os rolos ficam na estante. O dono da loja confirma: eles fazem rir, mas vendem pouco, como vende pouco um jogo de dardos com a cara de Bin Laden.
O que funciona são as reproduções das torres gêmeas -pintadas, fotografadas, estampadas nas camisetas ou, então, em bronze, cristal ou plástico. Existe um modelo que é um monumento: as torres culminam em dois bustos, um bombeiro e um policial.
Também têm sucesso as estatuetas comemorativas: bombeiros e policiais em poses que se tornaram famosas pelas capas de revistas e jornais.
Em suma, as lembranças da Nova York bombardeada que os turistas preferem não são diferentes dos objetos que essas lojas sempre venderam (o táxi amarelo, a estátua da Liberdade, o Empire State Building, com ou sem King Kong etc.).
A feiúra é a mesma e é óbvia para qualquer um. Os aposentados do Arizona concordam: as coisas variam de não muito bonitas a detestáveis. Mas eles compram, para presente e para eles mesmos, um quadro, um porta-chave, um centro de mesa: todos reproduções das torres. Claro que não fazem isso para se lembrarem da viagem. Assim como, em geral, não é para lembrar-se das férias que as pessoas adquirem essa bugiganga. Para que é, então?
A resposta foi-me oferecida por um objeto. Eis como. Tornou-se famosa a imagem de um pequeno grupo de bombeiros hasteando a bandeira americana no meio dos escombros, pois o episódio evocava a imagem dos fuzileiros navais hasteando a bandeira na ilha de Iwo Jima durante a Segunda Guerra Mundial.
Ora, encontrei esse grupo de bombeiros numa daquelas esferas transparentes que, sacudidas, produzem uma nevasca. Esse tipo de bola de vidro existe para todos os monumentos. Entendo que alguém queira lembrar-se das torres, por exemplo, em pleno inverno, no silêncio da neve. Mas o hasteamento da bandeira pelos bombeiros é um acontecimento, não um monumento. Aconteceu no 12 de setembro: não nevava e, na história de Nova York, nunca nevou num 12 de setembro.
Meus interlocutores do Arizona defenderam o objeto: "É agradável de ter na mão" e "Gosto de fazer nevar". Entendo, é uma consolação: não pudemos prevenir o ataque, não sei se evitaremos mais uma guerra, mas a bola de vidro nos confere, ao menos, o controle climático.
Talvez seja essa a razão de ser de toda a bugiganga de recordação. Seu propósito não é embelezar nossas residências nem lembrar nossas viagens. Seu propósito é a domesticação do mundo.
Nem todos os turistas viajam para negar a intolerável alteridade do mundo. Alguns, ao contrário, viajam para conhecê-la e reconhecê-la. Mas todos parecemos voltar de viagem com objetos encarregados de conciliar a estranheza dos lugares visitados com a familiaridade de nossa casa e de nossa vida. A concha encontrada no fundo do mar (e que agora está na sala) nos encoraja a não fugir para o Caribe: podemos esperar até o próximo verão. O pedaço do Muro de Berlim nos assegura que, apesar do conformismo de nossos dias, fazemos parte do rebuliço social e político do mundo: não precisa procurar um novo Guevara para acompanhá-lo numa desconfortável Bolívia.
Antes de 11 de setembro, as lembrancinhas de Nova York serviam para domesticar a bagunça e a sedução da cidade. Um táxi amarelo de porcelana era como um troféu de caça: um jeito de acreditar que seria sempre possível levantar o braço e dar uma volta em Manhattan, evitando o perigo de que o táxi nos atropele ou de que fiquemos nas mãos de um motorista maluco que não entende nenhuma língua conhecida por nós.
As lembrancinhas do dia 11 de setembro tentam domesticar uma alteridade mais inquietante. As torres estão na centro da mesa, Osama está na privada, e a gente decide se neva ou não sobre os bombeiros. Moral: estivemos lá, e está tudo sob controle. Quem dera.
No último ano, os turistas, sobretudo os americanos de outros Estados, vieram para Nova York por solidariedade com a cidade ferida. E a mercadoria teve de adaptar-se.
Numa loja da Broadway com a 47, encontro dois aposentados de Phoenix, Arizona. Juntos contemplamos um rolo de papel higiênico fantasia: cada pedaço traz a cara de Bin Laden e a sugestão: "Wipe out terrorism" (duplo sentido: "limpe o terrorismo" e "acabe com o terrorismo"). Ao lado de Bin Laden, uma novidade: o papel higiênico de Saddam Hussein, com a inscrição : "Wipe your crack with the guy from Iraq" (algo como: "Limpe-se a raque com o cara do Iraque"). Cada rolo sai por quase US$ 7. "Meio caro", observa um de meus interlocutores, " e não estou seguro de querer esse cara tão perto de mim..." "E se ele morder?", brinca o outro. Os rolos ficam na estante. O dono da loja confirma: eles fazem rir, mas vendem pouco, como vende pouco um jogo de dardos com a cara de Bin Laden.
O que funciona são as reproduções das torres gêmeas -pintadas, fotografadas, estampadas nas camisetas ou, então, em bronze, cristal ou plástico. Existe um modelo que é um monumento: as torres culminam em dois bustos, um bombeiro e um policial.
Também têm sucesso as estatuetas comemorativas: bombeiros e policiais em poses que se tornaram famosas pelas capas de revistas e jornais.
Em suma, as lembranças da Nova York bombardeada que os turistas preferem não são diferentes dos objetos que essas lojas sempre venderam (o táxi amarelo, a estátua da Liberdade, o Empire State Building, com ou sem King Kong etc.).
A feiúra é a mesma e é óbvia para qualquer um. Os aposentados do Arizona concordam: as coisas variam de não muito bonitas a detestáveis. Mas eles compram, para presente e para eles mesmos, um quadro, um porta-chave, um centro de mesa: todos reproduções das torres. Claro que não fazem isso para se lembrarem da viagem. Assim como, em geral, não é para lembrar-se das férias que as pessoas adquirem essa bugiganga. Para que é, então?
A resposta foi-me oferecida por um objeto. Eis como. Tornou-se famosa a imagem de um pequeno grupo de bombeiros hasteando a bandeira americana no meio dos escombros, pois o episódio evocava a imagem dos fuzileiros navais hasteando a bandeira na ilha de Iwo Jima durante a Segunda Guerra Mundial.
Ora, encontrei esse grupo de bombeiros numa daquelas esferas transparentes que, sacudidas, produzem uma nevasca. Esse tipo de bola de vidro existe para todos os monumentos. Entendo que alguém queira lembrar-se das torres, por exemplo, em pleno inverno, no silêncio da neve. Mas o hasteamento da bandeira pelos bombeiros é um acontecimento, não um monumento. Aconteceu no 12 de setembro: não nevava e, na história de Nova York, nunca nevou num 12 de setembro.
Meus interlocutores do Arizona defenderam o objeto: "É agradável de ter na mão" e "Gosto de fazer nevar". Entendo, é uma consolação: não pudemos prevenir o ataque, não sei se evitaremos mais uma guerra, mas a bola de vidro nos confere, ao menos, o controle climático.
Talvez seja essa a razão de ser de toda a bugiganga de recordação. Seu propósito não é embelezar nossas residências nem lembrar nossas viagens. Seu propósito é a domesticação do mundo.
Nem todos os turistas viajam para negar a intolerável alteridade do mundo. Alguns, ao contrário, viajam para conhecê-la e reconhecê-la. Mas todos parecemos voltar de viagem com objetos encarregados de conciliar a estranheza dos lugares visitados com a familiaridade de nossa casa e de nossa vida. A concha encontrada no fundo do mar (e que agora está na sala) nos encoraja a não fugir para o Caribe: podemos esperar até o próximo verão. O pedaço do Muro de Berlim nos assegura que, apesar do conformismo de nossos dias, fazemos parte do rebuliço social e político do mundo: não precisa procurar um novo Guevara para acompanhá-lo numa desconfortável Bolívia.
Antes de 11 de setembro, as lembrancinhas de Nova York serviam para domesticar a bagunça e a sedução da cidade. Um táxi amarelo de porcelana era como um troféu de caça: um jeito de acreditar que seria sempre possível levantar o braço e dar uma volta em Manhattan, evitando o perigo de que o táxi nos atropele ou de que fiquemos nas mãos de um motorista maluco que não entende nenhuma língua conhecida por nós.
As lembrancinhas do dia 11 de setembro tentam domesticar uma alteridade mais inquietante. As torres estão na centro da mesa, Osama está na privada, e a gente decide se neva ou não sobre os bombeiros. Moral: estivemos lá, e está tudo sob controle. Quem dera.
quinta-feira, 5 de setembro de 2002
O álbum de fotografias e a solidão
Estréia amanhã, no Brasil, "Retratos de uma Obsessão", de Mark Romanek, em que Robin Williams é Sy (pronuncia-se sái), o gerente do estande de fotografia de um grande supermercado.
Há anos, a família Yorkin leva para Sy suas fotos de férias, de festas e de outros momentos memoráveis. Ele revelou e, portanto, viu o pequeno Jakob crescer, de aniversário em aniversário, assim como revelou e viu, ano após ano, os beijos e os gestos amorosos dos pais de Jakob.
Sy imprime e guarda cópia extra de cada rolo de filme da família Yorkin. Ele quer um pedaço do mundo de carinhos e alegria que aparece, na verdade, nos álbuns de quase todas as famílias. Sy não é louco. Ele apenas não tem álbum próprio e tenta existir no álbum dos outros. Por que não seria um tio da família Yorkin? Afinal, ele tem as mesmas lembranças, pois conhece todas as fotos.
Sy não tem amigos nem família. Depois do trabalho, come sozinho num restaurante e volta para uma casa vazia e silenciosa. Aqui, ele olha um pouco de televisão (que pode funcionar como uma espécie de álbum de família coletivo) e contempla as fotos da família Yorkin, da qual ele, em seus devaneios, é um membro adotivo. Todos justificamos nossa vida pretendendo pertencer a uma nação, a uma religião, a um bairro, a uma torcida ou aos amigos da padaria, grupos cujos membros, em geral, mal se lembram de nossa existência. Figuramos (ou imaginamos figurar) felizes na foto-recordação da saída da igreja, do desfile da festa nacional ou da volta do estádio. Por que Sy não faria parte dos Yorkins, da mesma forma? Nada demais nisso.
O problema é outro: será que os Yorkins seriam uma família se eles deixassem cair o sorriso que é de praxe no álbum de fotografias? Sy descobre inesperadamente (e a coisa lhe é intolerável) que, atrás das fotografias dos Yorkins, se esconde uma realidade imperfeita. As imagens mentem.
É sempre assim: nossos álbuns de fotografias colecionam momentos ternos e engraçados que levamos a efeito de propósito, com o intento de os registrar e os incluir na nossa história. Nas festas de família, a câmara instiga convidados e comensais ao sorriso ou ao riso: todos são transformados em farsantes e obrigados a representar no presente a imagem do que será seu passado feliz, aquele tempo em que "olha só, lembra como a gente estava bem?".
Claro, a vida familiar é uma empresa difícil: é preciso (ou recomendável) constituir alguma unidade a partir de desejos e esperanças que discordam. Nos separam os egoísmos ordinários, as fantasias singulares, as vontades irrenunciáveis de aventuras (sempre decepcionantes). Um auxílio contra esse descompasso é o álbum de fotografias, em que os membros da família idealizam sua convivência, encenando e acumulando instantâneos de felicidade conjugal e familiar. Por fictícias que sejam, essas imagens produzidas constituem a única memória comum. É fácil verificar sua importância quando, nas separações ou na divisão das heranças, chega a hora de dividir as fotos. Naturalmente, todos os álbuns se parecem: poucos casais se dão o trabalho de inventar uma ficção original. A maioria atua segundo roteiros que já existem: contentam-se em sorrir na hora do clique.
A maior solidão, desse ponto de vista, é a ausência de um parceiro com quem bater fotos e compor um álbum. Estou sozinho se não encontro ninguém disposto a fazer comigo as caretas necessárias para que nossa foto proclame ao mundo e ao futuro: "Olhem para nós, aqui, felizes".
Sy está sozinho. Por que sua fantasia preferida é um álbum de fotografias de família? Não poderia, por exemplo, ter um desejo sexual um pouco torto, com o qual divertir-se? Não poderia frequentar clubecos de striptease ou dedicar-se à sinuca? O fato é que vivemos numa época de extrema valorização do casamento e da família. Os solitários, para nós, são fracassados relacionais. A vida solteira pode ter graça televisiva (como em "Seinfeld" ou "Friends"), mas apenas como aspiração, mais ou menos falida, a compor uma relação. Os conselhos aos celibatários são sempre conselhos para encontrar alguém com quem inaugurar, "enfim", um álbum.
Por causa dessa valorização quase exclusiva da vida familiar, os casais não sabem relacionar-se com os solitários. Quando compomos um casal e temos os álbuns de nossas fotos na estante da sala (sem contar as que enquadramos e disseminamos pela casa), achamos fácil lidar com outros casais. É só tirar fotos a quatro (ou outros múltiplos pares) e prever duplicata para os álbuns de todos. Mas os celibatários apresentam dupla ameaça. Ou estão procurando parceiro, e ninguém quer um predador dentro de casa, ou estão bem assim, sozinhos, e ninguém quer saber de uma vida que pareça contente e seja diferente daquela que imortalizamos esforçadamente em nossos álbuns.
É uma pena. Num outro mundo, os Yorkins poderiam ter convidado Sy para ser seu amigo e tio de Jakob. A vida e o álbum da família, quem sabe, se tornassem mais interessantes.
Há anos, a família Yorkin leva para Sy suas fotos de férias, de festas e de outros momentos memoráveis. Ele revelou e, portanto, viu o pequeno Jakob crescer, de aniversário em aniversário, assim como revelou e viu, ano após ano, os beijos e os gestos amorosos dos pais de Jakob.
Sy imprime e guarda cópia extra de cada rolo de filme da família Yorkin. Ele quer um pedaço do mundo de carinhos e alegria que aparece, na verdade, nos álbuns de quase todas as famílias. Sy não é louco. Ele apenas não tem álbum próprio e tenta existir no álbum dos outros. Por que não seria um tio da família Yorkin? Afinal, ele tem as mesmas lembranças, pois conhece todas as fotos.
Sy não tem amigos nem família. Depois do trabalho, come sozinho num restaurante e volta para uma casa vazia e silenciosa. Aqui, ele olha um pouco de televisão (que pode funcionar como uma espécie de álbum de família coletivo) e contempla as fotos da família Yorkin, da qual ele, em seus devaneios, é um membro adotivo. Todos justificamos nossa vida pretendendo pertencer a uma nação, a uma religião, a um bairro, a uma torcida ou aos amigos da padaria, grupos cujos membros, em geral, mal se lembram de nossa existência. Figuramos (ou imaginamos figurar) felizes na foto-recordação da saída da igreja, do desfile da festa nacional ou da volta do estádio. Por que Sy não faria parte dos Yorkins, da mesma forma? Nada demais nisso.
O problema é outro: será que os Yorkins seriam uma família se eles deixassem cair o sorriso que é de praxe no álbum de fotografias? Sy descobre inesperadamente (e a coisa lhe é intolerável) que, atrás das fotografias dos Yorkins, se esconde uma realidade imperfeita. As imagens mentem.
É sempre assim: nossos álbuns de fotografias colecionam momentos ternos e engraçados que levamos a efeito de propósito, com o intento de os registrar e os incluir na nossa história. Nas festas de família, a câmara instiga convidados e comensais ao sorriso ou ao riso: todos são transformados em farsantes e obrigados a representar no presente a imagem do que será seu passado feliz, aquele tempo em que "olha só, lembra como a gente estava bem?".
Claro, a vida familiar é uma empresa difícil: é preciso (ou recomendável) constituir alguma unidade a partir de desejos e esperanças que discordam. Nos separam os egoísmos ordinários, as fantasias singulares, as vontades irrenunciáveis de aventuras (sempre decepcionantes). Um auxílio contra esse descompasso é o álbum de fotografias, em que os membros da família idealizam sua convivência, encenando e acumulando instantâneos de felicidade conjugal e familiar. Por fictícias que sejam, essas imagens produzidas constituem a única memória comum. É fácil verificar sua importância quando, nas separações ou na divisão das heranças, chega a hora de dividir as fotos. Naturalmente, todos os álbuns se parecem: poucos casais se dão o trabalho de inventar uma ficção original. A maioria atua segundo roteiros que já existem: contentam-se em sorrir na hora do clique.
A maior solidão, desse ponto de vista, é a ausência de um parceiro com quem bater fotos e compor um álbum. Estou sozinho se não encontro ninguém disposto a fazer comigo as caretas necessárias para que nossa foto proclame ao mundo e ao futuro: "Olhem para nós, aqui, felizes".
Sy está sozinho. Por que sua fantasia preferida é um álbum de fotografias de família? Não poderia, por exemplo, ter um desejo sexual um pouco torto, com o qual divertir-se? Não poderia frequentar clubecos de striptease ou dedicar-se à sinuca? O fato é que vivemos numa época de extrema valorização do casamento e da família. Os solitários, para nós, são fracassados relacionais. A vida solteira pode ter graça televisiva (como em "Seinfeld" ou "Friends"), mas apenas como aspiração, mais ou menos falida, a compor uma relação. Os conselhos aos celibatários são sempre conselhos para encontrar alguém com quem inaugurar, "enfim", um álbum.
Por causa dessa valorização quase exclusiva da vida familiar, os casais não sabem relacionar-se com os solitários. Quando compomos um casal e temos os álbuns de nossas fotos na estante da sala (sem contar as que enquadramos e disseminamos pela casa), achamos fácil lidar com outros casais. É só tirar fotos a quatro (ou outros múltiplos pares) e prever duplicata para os álbuns de todos. Mas os celibatários apresentam dupla ameaça. Ou estão procurando parceiro, e ninguém quer um predador dentro de casa, ou estão bem assim, sozinhos, e ninguém quer saber de uma vida que pareça contente e seja diferente daquela que imortalizamos esforçadamente em nossos álbuns.
É uma pena. Num outro mundo, os Yorkins poderiam ter convidado Sy para ser seu amigo e tio de Jakob. A vida e o álbum da família, quem sabe, se tornassem mais interessantes.
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