quinta-feira, 12 de setembro de 2002

Lembrancinhas do dia 11 de setembro

Ao redor da Times Square, em Nova York, as lojas para turistas vendem camisetas, abrigos, porta-chaves, porta-retratos, enfeites, canetinhas e por aí vai. Lembram as lojas de importados de São Paulo, só que muito maiores e monotemáticas: toda a quinquilharia é para evocar Nova York.
No último ano, os turistas, sobretudo os americanos de outros Estados, vieram para Nova York por solidariedade com a cidade ferida. E a mercadoria teve de adaptar-se.

Numa loja da Broadway com a 47, encontro dois aposentados de Phoenix, Arizona. Juntos contemplamos um rolo de papel higiênico fantasia: cada pedaço traz a cara de Bin Laden e a sugestão: "Wipe out terrorism" (duplo sentido: "limpe o terrorismo" e "acabe com o terrorismo"). Ao lado de Bin Laden, uma novidade: o papel higiênico de Saddam Hussein, com a inscrição : "Wipe your crack with the guy from Iraq" (algo como: "Limpe-se a raque com o cara do Iraque"). Cada rolo sai por quase US$ 7. "Meio caro", observa um de meus interlocutores, " e não estou seguro de querer esse cara tão perto de mim..." "E se ele morder?", brinca o outro. Os rolos ficam na estante. O dono da loja confirma: eles fazem rir, mas vendem pouco, como vende pouco um jogo de dardos com a cara de Bin Laden.

O que funciona são as reproduções das torres gêmeas -pintadas, fotografadas, estampadas nas camisetas ou, então, em bronze, cristal ou plástico. Existe um modelo que é um monumento: as torres culminam em dois bustos, um bombeiro e um policial.

Também têm sucesso as estatuetas comemorativas: bombeiros e policiais em poses que se tornaram famosas pelas capas de revistas e jornais.

Em suma, as lembranças da Nova York bombardeada que os turistas preferem não são diferentes dos objetos que essas lojas sempre venderam (o táxi amarelo, a estátua da Liberdade, o Empire State Building, com ou sem King Kong etc.).

A feiúra é a mesma e é óbvia para qualquer um. Os aposentados do Arizona concordam: as coisas variam de não muito bonitas a detestáveis. Mas eles compram, para presente e para eles mesmos, um quadro, um porta-chave, um centro de mesa: todos reproduções das torres. Claro que não fazem isso para se lembrarem da viagem. Assim como, em geral, não é para lembrar-se das férias que as pessoas adquirem essa bugiganga. Para que é, então?

A resposta foi-me oferecida por um objeto. Eis como. Tornou-se famosa a imagem de um pequeno grupo de bombeiros hasteando a bandeira americana no meio dos escombros, pois o episódio evocava a imagem dos fuzileiros navais hasteando a bandeira na ilha de Iwo Jima durante a Segunda Guerra Mundial.

Ora, encontrei esse grupo de bombeiros numa daquelas esferas transparentes que, sacudidas, produzem uma nevasca. Esse tipo de bola de vidro existe para todos os monumentos. Entendo que alguém queira lembrar-se das torres, por exemplo, em pleno inverno, no silêncio da neve. Mas o hasteamento da bandeira pelos bombeiros é um acontecimento, não um monumento. Aconteceu no 12 de setembro: não nevava e, na história de Nova York, nunca nevou num 12 de setembro.

Meus interlocutores do Arizona defenderam o objeto: "É agradável de ter na mão" e "Gosto de fazer nevar". Entendo, é uma consolação: não pudemos prevenir o ataque, não sei se evitaremos mais uma guerra, mas a bola de vidro nos confere, ao menos, o controle climático.

Talvez seja essa a razão de ser de toda a bugiganga de recordação. Seu propósito não é embelezar nossas residências nem lembrar nossas viagens. Seu propósito é a domesticação do mundo.

Nem todos os turistas viajam para negar a intolerável alteridade do mundo. Alguns, ao contrário, viajam para conhecê-la e reconhecê-la. Mas todos parecemos voltar de viagem com objetos encarregados de conciliar a estranheza dos lugares visitados com a familiaridade de nossa casa e de nossa vida. A concha encontrada no fundo do mar (e que agora está na sala) nos encoraja a não fugir para o Caribe: podemos esperar até o próximo verão. O pedaço do Muro de Berlim nos assegura que, apesar do conformismo de nossos dias, fazemos parte do rebuliço social e político do mundo: não precisa procurar um novo Guevara para acompanhá-lo numa desconfortável Bolívia.

Antes de 11 de setembro, as lembrancinhas de Nova York serviam para domesticar a bagunça e a sedução da cidade. Um táxi amarelo de porcelana era como um troféu de caça: um jeito de acreditar que seria sempre possível levantar o braço e dar uma volta em Manhattan, evitando o perigo de que o táxi nos atropele ou de que fiquemos nas mãos de um motorista maluco que não entende nenhuma língua conhecida por nós.

As lembrancinhas do dia 11 de setembro tentam domesticar uma alteridade mais inquietante. As torres estão na centro da mesa, Osama está na privada, e a gente decide se neva ou não sobre os bombeiros. Moral: estivemos lá, e está tudo sob controle. Quem dera.

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