É uma velha pergunta: por que os primos do norte são bem-sucedidos enquanto a gente pena tanto? Questão de clima, território, religião, tipo de colonização?
Lendo a imprensa norte-americana nos últimos tempos, ocorre-me que talvez a diferença crucial seja sobretudo retórica. Com isso não me refiro aos ornamentos que adotamos para falar ou para escrever bonito. Mas penso nas formas que se impõem naturalmente quando descrevemos a nossa experiência e o sentimento de quem somos.
A diferença entre Brasil e EUA aparece, em particular, na maneira de apresentar e de encarar dificuldades e fracassos. Um exemplo. Recentemente as Forças Armadas norte-americanas parecem ensaiar (tragicamente) um filme dos Trapalhões.
Em fevereiro, um submarino nuclear treinou emersão rápida com 16 civis a bordo brincando de marinheiros: afundou um pesqueiro japonês e matou nove pescadores. Uma semana depois, dois helicópteros do Exército se chocaram durante um treino noturno no Havaí: 6 mortos e 11 feridos. Logo aviões americanos atacaram alvos perto de Bagdá: mataram três civis e várias moscas.
Em março, no Kuait, um avião da Marinha teve mais sorte e matou militares, não civis. Só que eram militares norte-americanos (cinco) e um aliado neozelandês.
No meio disso, desde o ano passado, os "marines" não sabem o que fazer com o projeto do Osprey, que pousa como um helicóptero e voa como um avião. Em 2000, os exemplares em serviço já mataram 23 fuzileiros em dois acidentes.
Parece que, por alguma razão, não foram realizados os testes necessários antes de confirmar a encomenda...
Fora da esfera militar, as coisas não estão melhores. Também em fevereiro um agente do FBI foi acusado de ter vendido segredos aos russos durante 15 anos.
Na semana que vem, acaba uma grande recontagem dos votos da Flórida e os americanos correm o risco de aprender que o homem que está na Casa Branca chegou lá não só por decisão partidária da Corte Suprema mas contra a vontade do eleitorado.
Nada de tudo isso é escondido. Tudo é investigado. Confia-se que erros, malandragens e acidentes venham a ser corrigidos, porque o desastre, a estupidez e a corrupção nunca são apresentados como manifestações de alguma propriedade especificamente norte-americana. Ao contrário, por mais que sejam frequentes, eles surgem como momentos nos quais, por assim dizer, a América (sua essência supostamente gloriosa) se ausentou.
Imagine acontecimentos parecidos no Brasil. Tome o caso do submarino nacional que afundou num cais do porto porque, ao que parece, alguém se esqueceu de fechar uma escotilha. O culpado foi o descaso de um marinheiro, mas essa descrição não basta: insinua-se a convicção de que o descaso é um vício tupiniquim.
Os eventos mais sinistros funcionam, em última instância, como prova (e efeito) da "natureza" (infausta) do brasileiro. Na retórica nacional, a autodepreciação coletiva é uma forma imediata de entender o social. Por que a violência e a corrupção? Simples: porque somos violentos e corruptos -quer explicação melhor?
Infelizmente, é uma explicação que imobiliza e deprime: como corrigir, punir e investigar de maneira eficaz se acreditamos ser corruptos, sem-vergonha etc. por essência?
Para os americanos, o caráter nacional é uma ficção intangível e incorruptível que brilha no alto da colina. Os indivíduos e os fatos que contradizem essa imagem gloriosa são aberrações e serão emendados. Por exemplo, acontecem acidentes nas Forças Armadas? Ninguém evoca o Exército Brancaleone. Repete-se que as Forças Armadas norte-americanas são as melhores do mundo. Ora, aconteceram alguns pepinos, mas isso não muda nada no essencial.
Eis então a diferença retórica: os primos do norte não atribuem o mal à sua essência. Portanto são cheios de si e prontos a consertar as falhas. Os brasileiros duvidam de poder modificar males que lhes parecem ser a expressão de sua essência bichada.
Essa diferença pode ser explicada, no estilo Max Weber, pela diferença entre protestantismo e catolicismo. Na perspectiva protestante (calvinista) dos primeiros colonos norte-americanos, os eleitos foram escolhidos pela graça divina: são eles, incontestavelmente. A partir dessa certeza inabalável, eles lidam com os acidentes e com as ovelhas perdidas. Na perspectiva católica, a graça não é garantida a ninguém: de antemão, somos todos igualmente pecadores.
Outra explicação: os americanos conhecem muito bem a pós-modernidade globalizada, por serem, de uma certa forma, seus promotores. Eles sabem, portanto, que, no jogo do narcisismo, sai ganhando aquele que consegue ser o objeto inalcançável da inveja de todos. Eles sabem também que, para isso, é melhor dissociar-se do que não dá certo, admitir o mal apenas como acidente.
Certo, outras satisfações narcisistas são possíveis. E mesmo o fracasso oferece suas vantagens: inspira o carinho e a simpatia de todos -até porque não ameaça ninguém. Mas é um pouco cansativo, não é?
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