quinta-feira, 31 de agosto de 2000
Por que Orfeu fica no morro
Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?
Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.
Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.
Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.
É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".
Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".
Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?
Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.
As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.
Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.
Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.
Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.
Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.
E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".
Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).
P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.
Por que Orfeu fica no morro
Eu fiquei sentado, deixando passar os créditos finais, comovido pela intensidade dos últimos minutos, quando todos gritam, apitam e choram a morte de Orfeu. Compartilhava a sensação de uma perda irreparável, que não poderíamos deixar acontecer. Perda de quê?
Na tarde do mesmo dia, assistira a um documentário da série "Seis Histórias Brasileiras", que o GNT transmitiu duas semanas atrás. Era "Um Dia Qualquer", de Zuenir Ventura e Izabel Jaguaribe. Ficava vívida em mim a lembrança de Apolônio, vendedor de abacaxis na praia de Copacabana, e de suas palavras surpreendentes -sobre o que é ser negro, sobre seu corpo ou sobre a mulher brasileira.
Ora, no filme de Cacá Diegues, alguém pergunta a Orfeu por que ele não aproveita seu sucesso para ir embora do morro. Orfeu não responde e, naturalmente, fica. Ele poderia dizer, imagino, que o morro é o mundo do qual ele quer ser a voz. Apesar do tráfico de drogas e das balas achadas e perdidas, o morro (ou redutos análogos: favela, cortiço etc.) é seu lugar, porque aí moram os Apolônios.
Essa resposta (imaginária) de Orfeu não nos estranharia. Estamos acostumados a supor que tanto a alegria de viver quanto a capacidade de chorar, assim como todas as qualidades autenticamente humanas, habitam o morro, a favela ou a maloca rural batida pela seca.
É um traço bem estabelecido de nossa cultura: como o status social é decidido numa corrida, inventamos prêmios de consolação para os derrotados. Quer seja um acesso mais fácil ao paraíso depois da morte, quer seja um privilégio poético. Assim, revisando nossos extratos bancários, nos extasiamos: "Oh! admirável simplicidade do pescador, do camponês e do miserável".
Claro, é uma armadilha ideológica: "Eu te exploro até o osso, mas em troca disso eu admiro e invejo tua fome e tua miséria, porque és mais humano e mais verdadeiro".
Mas cuidado: nessa vinheta, que parece feita só para aliviar a culpa dos tubarões, talvez haja mesmo alguma verdade. É a melhor maneira de ocultar algo: dizer a verdade de tal forma que todos pensem que se trata de uma mentira. Então qual é a verdade?
Lembra a história do mestre e do escravo? Hegel imaginava que o escravo, trabalhando, acabaria sendo o único a saber lidar com o mundo, fabricar as coisas, tirar leite da vaca, plantar feijão e trocar o óleo do carro. O mestre ficaria se coçando e, no fim, incompetente, dependeria totalmente do escravo. Aí a relação de forças se inverteria.
As coisas não funcionaram assim. Sobretudo porque o mestre não ficou ocioso: ao contrário, ele se especializou nas tarefas mais rentáveis e consolidou seu poder. Ele não está cansado nem se tornou incompetente.
Ora, apesar disso, talvez o escravo tenha mesmo ficado com algo relevante que o mestre perdeu. De uma certa forma, ele ficou com a vida concreta. É na cultura dos pobres, dos deserdados, que importa rir, chorar, amar, odiar, enfim, ser alegre e ser triste. A cultura dos mestres é cada vez mais abstrata por (e para) se resumir na sede de lucro e no esbanjamento que decide o status.
Os mestres não têm tempo para se deter em questões, diferenças e, eles diriam, em detalhes concretos. Eles precisam de abstração para justificar as equivalências entre coisas, pessoas e valores que permitem o bom funcionamento do mercado e da produção.
Deve ser por isso que Orfeu permanece no morro. Por isso que as palavras de Apolônio são permeadas de uma extraordinária sabedoria prática. Porque a vida concreta ficou com os derrotados.
Por essa razão, sempre desconfio das formas de "progresso" social que prometem apenas a entrada dos excluídos no mundo e na cultura dos mestres.
Pense bem. O que seriam os Estados Unidos, por exemplo, se seus derrotados fossem todos perfeitamente integrados? Claro, cidades com menos drogas, facadas, assaltos -e onde todos terminam o colégio. Mas seriam também o vasto e irrespirável subúrbio de uma classe média mesquinha e conformista.
E o que seria o Brasil sem seus excluídos? Foi a idéia dessa perda que me deixou comovido no fim do filme de Cacá Diegues. Você pode perguntar: "Como assim? Seria uma perda se não houvesse mais excluídos?".
Explico-me. Seria um desastre se Orfeu e Apolônio morressem de bala ou de fome, exterminados pela opressão. Mas seria um desastre também se eles simplesmente ganhassem em alguma loteria e se instalassem na Vieira Souto ou nos Jardins, confundindo-se com os indígenas. Pois, se isso acontecesse, nossa sociedade não seria mais nada, apenas uma selva de Lalaus (mais ou menos bem-sucedidos).
P.S.: No domingo dia 20, a estréia americana de "Orfeu" foi precedida por um longo e bonito artigo de Caetano no "The New York Times". É possível, e vale a pena, lê-lo (em inglês) procurando no site www.nytimes.com.
quinta-feira, 24 de agosto de 2000
O submarino russo: mortes inúteis
Nos primeiros dias, a história parecia ser apenas mais um exemplo patético da decadência russa. Nos jornais, na rua, na Internet, nos táxis, onde quer que houvesse conversa, todos falavam disso: a tecnologia da ex-URSS é sucata. Na verdade -muitos acrescentavam- sempre foi sucata.
Só o Ocidente não sabia. O Kursk devia ser uma lata de conserva disfarçada: talvez fosse esse o segredo que os russos queriam tanto esconder. Falava-se também dos efeitos infelizes dos orgulhos nacionais mal colocados. A indignação com o governo russo era grande: por que não pedem ajuda? Para não confessar suas dificuldades? Ou para não mostrar ao mundo sabe Deus qual arma secreta e estapafúrdia -escondida no ventre do Kursk? Pudores irrisórios e segredos de polichinelo.
Mas rapidamente essas conversas definharam. Foram substituídas por uma grande pena e por uma torcida mundial para que não estivessem todos mortos. De resto trágico da Guerra Fria e de suas mentiras, o Kursk parecia se transformar em símbolo de algo maior, algo que nos concerniria a todos -Guerra Fria ou não.
Um jornal de Murmansk começou a publicar pequenos necrológios dos marinheiros, feitos de últimas cartas aos pais, lembranças de amigos e parentes etc. Alguns jornais europeus traduziram. Era uma espécie de cemitério de homens comuns, uma nova "Antologia de Spoon River", o poema dos mortos quaisquer. Alguns pareciam até orgulhosos de estar na Marinha, mas ninguém, nem na lembrança depois de morto, recorria ao tipo de retórica belicosa que poderia dar sentido à sua morte e à de seus companheiros.
Nessa altura, comecei a ser perseguido pelas letras de uma música. Aconteceu assim: li uma notícia sem interesse sobre os Beatles (o que sobra deles) e houve uma espécie de curto-circuito. Sem querer, passeando pelas ruas na sexta-feira, comecei a cantarolar, na melodia de "Yellow Submarine": "We all live in a russian submarine, russian submariiiiine" (Vivemos todos num submarino russo, submarino russo).
Com isso, a visão já insistente do submarino pousado no fundo do mar ficou mais lúgubre ainda: o ritmo me parecia vir de lá, como se os sobreviventes no escuro batessem contra a parede metálica ao ritmo da música e cantassem num coro de baixos. Oniricamente, eles pareciam nos chamar.
Como a música não me deixava tranquilo, decidi levá-la a sério. Respeitando meu automatismo mental, disse para mim mesmo: está bem, acredito, somos todos marinheiros do Kursk, mas por quê? Quem sabe respondendo eu conseguisse entender como o destino do submarino russo conquistou a imaginação popular do mundo inteiro.
O fato é que este gigantesco tubo inerte, mistura de vibrador quebrado com sarcófago, parece resumir nossa relação com a tecnologia. O avanço tecnológico é a melhor expressão de nossa potência, uma espécie de gloriosa ereção fálica. Olhe só, vamos à Lua, circulamos de naveta espacial, viajamos de supersônico, conseguimos energia atômica limpa e barata etc. Somos poderosos.
Acontece que esse falo tecnológico se transforma facilmente numa tumba. É o Concorde caindo ou a naveta espacial explodindo. O vôo TWA 800 ou então Tchernobil.
Tempo atrás, alguém diria que essas são as vítimas cobradas pelo progresso. Mas ainda há quem pense que o progresso é um valor?
Inventamos a morte inútil. É diferente da morte acidental, produzida por um relâmpago, um terremoto, uma bala perdida ou mesmo a raiva de um assaltante. Diferente, porque nos vários submarinos nucleares da vida embarcamos orgulhosa e voluntariamente. A morte inútil também se distingue da morte justificada por uma causa mais ou menos nobre. Paradoxalmente, ela não é acidental e não tem causa final.
Morremos de morte inútil quando morremos como consequência do funcionamento de nossa potência. Sem outros fins.
Entendo que as autoridades russas gostem da idéia de que o Kursk tenha afundado depois de uma colisão com um submarino americano ou britânico. Na verdade, todos preferiríamos que assim fosse. Esse restinho de Guerra Fria nos permitiria pensar no Kursk como um túmulo de bravos que morreram para defender a pátria, a honra ou coisa análoga. Seriam mortes por causa nobre.
Ora, o Kursk é sobretudo um túmulo para as razões que durante anos deram sentido à morte e que hoje estão faltando no mercado.
Não há porque se queixar da diminuição dos motivos para sacrifícios supremos. Mas isso nos deixa com um fenômeno novo: mortes estranhas, consequências de exercícios abstratos de potência tecnológica que não alveja mais nem a guerra nem a defesa nem a conquista.
Engraçado, décadas atrás uma geração lançou ao mar um psicodélico submarino amarelo também para lutar contra essa paixão tecnológica abstrata. Pena que não tenha chegado a tempo ao mar de Barents.
quinta-feira, 17 de agosto de 2000
Saudade de Bill Clinton
De repente, Al Gore designou seu vice-presidente: o senador Joseph Lieberman, de Connecticut, que é judeu ortodoxo. A coisa em si não me tirou do tédio. Como muitos outros, pensei: "Ah é? Legal!". Mas logo tive de me perguntar qual foi a razão dessa escolha. Aí me preocupei.
No começo, a coisa foi apresentada como uma ousadia: pela primeira vez, exclamava-se, um judeu está a um passo da Presidência dos Estados Unidos. Mais tarde, os jornalistas lembraram que Allan Greenspan é judeu e talvez seja mais importante do que um vice-presidente. A seguir, as pesquisas de opinião verificaram que o fato de um candidato ser judeu não é muito relevante para os eleitores.
Na verdade, a escolha é uma ousadia apenas para poucos racistas -os quais, de qualquer forma, votariam na extrema direita de Pat Buchanan.
Em suma, não se trata de uma decisão ousada promovendo a aceitação da diversidade cultural. Ao contrário, a escolha é uma confissão de conformismo. Gore não escolheu seu vice por ele ser judeu, mas por ele ser um religioso praticante, o primeiro e mais virulento dos democratas em sua crítica aos pecadilhos do presidente Clinton. Por essas duas razões, o senador Lieberman encontra a aprovação até dos republicanos mais conservadores.
É engraçado: quando Clinton era candidato, já com a história de Gennifer Flowers no ar, ele escolheu Al Gore como o homem que, por sua simples presença, lhe ofereceria uma garantia moral. Agora, para se dissociar de Clinton, Gore escolhe Lieberman para a mesma função. Tipo: eu sou moral, olhe para meu vice. A esse ritmo, Lieberman, se ele for candidato depois da eventual Presidência de Gore, terá de procurar seu vice entre o papa e o Dalai Lama.
O plano democrata de governo difere substancialmente do projeto republicano -em matéria de política fiscal, de saúde pública e de previdência social. Apesar disso, Gore e sua equipe quiseram responder à tentativa republicana de tirar partido das pretensas falhas morais de Clinton. Lieberman foi escolhido para ser exibido como prova de caráter moral.
Nada contra. Afinal, por que a estatura moral não seria um bom critério para escolher governantes? O problema naturalmente é: quem mede a dita estatura, e como?
Atenção: Joseph Lieberman é provavelmente um sujeito altamente respeitável. Nos anos 60, ele foi um "cavaleiro da liberdade" -registrando eleitores negros no sul ainda segregado. Mas quem lembrou esse passado de Lieberman foi logo Clinton, o pecador. A campanha democrata preferiu uma versão em cores mais suaves.
O senador Lieberman -esta foi a mensagem- é uma garantia ética graças a seus bons costumes e por respeitar rigorosamente as formas sociais de sua religião. Para servir de exemplo moral, ele foi apresentado como um suburbano que come kosher e vai à sinagoga a cada semana. A qualidade ética conclamada não reside em alguma têmpera subjetiva forjada na complexidade da experiência. Se algo disso existe, como no caso do senador Lieberman, melhor esquecer e salientar a estética de vida pequeno-burguesa: moral é celebrar o sábado (ou domingo, que seja). Será que o vice-presidente poderia declarar a guerra no sabá se fosse preciso? -perguntam com emoção as mamães do subúrbio, correndo em suas camionetes para levar as meninas ao treino de futebol.
Em suma, a moralidade coincide com a conformidade e o farisaísmo religioso dos subúrbios. O mundo do bem é o sorriso estereotipado da Main Street de Disneylândia.
Numa total confusão entre bons costumes e estatura ética, o conformismo e a mediocridade tornam-se patamares morais.
Theodore Roosevelt, Thomas Jefferson e outros grandes americanos devem estar esperneando em suas tumbas.
Resta esperar que Gore esteja enganado e que os americanos tenham uma visão mais complexa daquilo que os políticos parecem supor que seja ético. Afinal, os eleitores em 1998 não se deixaram convencer pela hipocrisia moralista e, apesar da enorme campanha contra Clinton, o pecador, mandaram muitos novos representantes democratas para o Congresso.
Dizem que, para ser eleito, Gore deveria compartilhar com Clinton o mérito dos excelentes resultados da Presidência, mas se distanciar da sombra moral que o presidente projeta. Pois Clinton, acrescentam, foi um presidente de sucesso, mas houve o problema Lewinski e outros.
Ora, Clinton foi um grande presidente não apesar de, mas por causa de suas notórias fraquezas. É por ele ser capaz de errar, se arrepender e errar de novo que ele pode reconhecer alguma complexidade em si mesmo (e, portanto, nos outros). Sem essa capacidade, não há nenhuma experiência moral verdadeira.
Cruzo os dedos para que o próximo presidente dos Estados Unidos tenha ao menos a mesma estatura ética de Bill Clinton. À primeira vista, há pouca chance.
quinta-feira, 10 de agosto de 2000
Pão, circo e corruptos na cadeia
Luiz Francisco de Souza é nosso herói do momento. E com ele todos os procuradores que corajosamente prendem os corruptos e tentam recuperar o dinheiro público saqueado.
É curioso. Há eleições importantes à vista. A propaganda política nos lembra de que, afinal, os eleitores devem contar para alguma coisa, pois os candidatos precisam de seus votos. Esta seria a hora de escolher o melhor porta-voz de nossas esperanças e projetos. No entanto, hoje nos sentimos representados muito mais pela Justiça do que por vereadores, prefeitos, governadores, deputados etc.
Parece que o desfile interminável de políticos traindo seus eleitores levou a gente a desistir da democracia representativa. A corrupção não produz apenas perdas do patrimônio público, ela também acarreta uma progressiva destruição de nossa confiança no sistema.
Se falo de política no boteco da esquina, num táxi ou num jantar com amigos, encontro sobretudo comentários indignados. Está ficando difícil discutir, pois as idéias e os engajamentos políticos de cada um mal são mencionados. Passamos direto ao consenso imediato: a raiva com a corrupção e o desejo de que ela seja enfim reprimida. Quase não há mais discussão política, porque concordamos quanto ao essencial: é necessário perseguir e punir os corruptos.
Ora, os membros eleitos do Poder Legislativo deveriam representar positivamente nossas vontades políticas. Os brasileiros teriam, sei lá, aposentadorias dignas, saúde pública e ensino básico de qualidade, novas formas de participação democrática, porque a maioria elegeu representantes que poderiam dar forma de lei a essas vontades. É assim que, a princípio, a coisa deveria funcionar. Mas quem quer discutir vontades políticas concretas? Qual ensino, qual saúde, qual democracia? Por que se preocupar com a complicação de projetos políticos e sociais com os quais acabaríamos discordando? Não vale a pena, pois dispomos de um projeto policial e jurídico com o qual, oh, maravilha, todos concordamos: que prendam e condenem os ladrões. O resto, parecemos pensar, será uma simples e mágica consequência.
Faça a prova: lance uma conversa sobre a escolha entre Marta Suplicy, Erundina e Maluf. No caso mais simples, logo o papo chegará às conclusões seguintes: Erundina não roubou, Marta não vai roubar e Maluf... bom, a gente sabe. Os interlocutores às vezes saberão apresentar provas, números, histórias de obras superfaturadas, ou não. Mas tente levar a conversa para os programas: o que os candidatos prometem fazer e como. Quase ninguém sabe ou dá bola.
O Poder Judiciário, que não é eleito, tornou-se paradoxalmente nosso representante mais autêntico, porque a variedade de nossos pensamentos políticos e sociais tende a se resumir ao simples e unívoco pedido de que a justiça seja feita.
Nas mesmas conversas em que a discussão política foi substituída pela indignação unânime, também tornou-se difícil debater os caminhos concretos pelos quais a economia do país poderia voltar a crescer. É como se não valesse a pena comparar escolhas e modelos fiscais, produtivos ou administrativos. Resgatar o dinheiro roubado é uma condição prévia tão importante que o resto perde interesse. Parecemos acreditar que, estancando a hemorragia da corrupção, logo nos tornaremos ricos. Teremos tudo o que precisamos para criar uma sociedade melhor.
Em suma, o Judiciário encarna nossa vontade política e promete os meios de nosso futuro econômico. Com isso, ele se torna o garante e o verdadeiro depositário da democracia. O Legislativo e o Executivo não nos respeitam, mas ainda estamos numa democracia porque o Judiciário nos vingará.
Claro que não é nada disso: lutar contra a corrupção não constitui uma plataforma política, assim como recuperar o dinheiro roubado não salva a economia do país.
Acontece, porém, que a corrupção produz uma perda bem maior do que as quantias que ela rouba. Ela desacredita a democracia e, instaurando uma falsa unanimidade, nos convida a desistir de pensar.
Poderíamos imaginar que isso seja um percalço brasileiro. A corrupção, doença endêmica, estaria condenando nossos trópicos a uma miséria política na qual pegar ladrão apareceria como a essência do exercício democrático.
Mas não é assim. A corrupção dos políticos (real ou suspeita) é um argumento conservador, antigo e global, feito para cortar entusiasmos. "Não se meta com política que é coisa suja, os políticos são todos iguais..." Quase 40 anos atrás, na Itália, eu escutava isso ao manifestar minhas simpatias socialistas juvenis.
Bonita armadilha: os eleitos enchem seus bolsos ou servem aos interesses dos que financiaram suas campanhas. Ou, no mínimo, suspeita-se que assim seja. Isso é uma razão para que o cidadão desista de seus sonhos políticos e se divirta festejando prisões e CPIs de corruptos. Ótimo. Só não gostaria que estas se tornassem o equivalente das execuções públicas que o soberano antigo oferecia a seu povo miserável. Tipo: o que o povo quer (para ficar calado)? Pão, circo e corruptos na cadeia.
Será que queremos só isso mesmo?
quinta-feira, 3 de agosto de 2000
Roubaram (também) o sonho liberal
Como resumiu Clóvis Rossi, a acusação parece consistir em "índices de comportamento pouco santo". O procurador Luiz Francisco não acrescentou muita coisa ao declarar que EJ teria dado prova de "omissão e má-fé na apresentação de seu patrimônio".
Em particular, não está comprovado que EJ tenha vendido seu acesso privilegiado ao presidente. Talvez ele tenha somente exercido muito a influência de sua função.
Imaginemos que as coisas permaneçam nesse patamar. Ou seja, que não haja nada para abafar e que EJ tenha se mostrado apenas "pouco santo".
O engraçado é que, mesmo assim, sua história me dói mais do que, por exemplo, as sinistras peripécias do foragido Nicolau.
Tento entender o porquê. Supostamente, Nicolau roubou e esbanjou de maneira revoltante. A quantidade monstruosa de dinheiro público do qual ele teria se apropriado, comparada com a indigência do povo e do Estado, leva a cálculos assustadores: quantas casas, quantos hospitais, quantos remédios teriam pago os tristes luxos de Nicolau?
EJ, se nada mais for comprovado, não se entregou a nenhum excesso de ganância de estilo Nicolau. Seu caso apenas enfia nosso nariz na fronteira mal-cheirosa entre Poder Executivo e Legislativo. Revela assim o fedor da banalidade cotidiana do poder.
EJ "pouco santo" mereceria nossa indulgência pois sua culpa maior seria apenas ter sido um político e ter trabalhado nos bastidores do governo. E seria uma culpa globalizada, nem pitoresca, nem especificamente brasileira. Não precisa recorrer ao mito do malandro ou da lei de Gerson. Os corredores do poder não conhecem latitude nem fuso horário, eles estão sempre, e em qualquer lugar, na mesma hora: a do lusco-fusco.
Por isso, a história de EJ me indigna menos do que o atrevimento de quem rouba as galinhas dos pobres. Mas, repito, paradoxalmente me dói mais. Por quê?
A democracia não é apenas uma instituição feita de livres eleições, separação e independência dos poderes etc.
Ela é também um estado de espírito, um sentimento que talvez seja complexo, mas no qual nunca faltam (ou nunca poderiam faltar) três pilares. A sensação de que, com mais ou menos sorte e com méritos diferentes, somos todos feitos do mesmo pano (no Brasil este já é um pilar rachado). A sensação de que os sonhos não têm limites e ninguém nos tirará a liberdade de sonhar. E a convicção de que nosso pensamento e nossas ações podem ter efeito sobre a vida da comunidade. Ou seja, que as decisões sociais e políticas são nossas. É graças a esta convicção que nos animamos a participar, votar, cooperar, opinar.
Ora, no mundo democrático inteiro ouve-se hoje uma mesma queixa. Parece que quase mais ninguém quer saber de política. Os jovens não participam dos ritos democráticos (partidos e eleições). Os adultos não estão muito melhor: onde o voto não é obrigatório, os cidadãos pouco se deslocam para as urnas.
Com isso, brotam as críticas: os jovens de hoje seriam cínicos e hedonistas. Os adultos seriam acomodados, submissos, alienados etc.
Tente recapitular a história do caso EJ. Talvez, como eu, você também acabe sem grande indignação, mas perseguido pela pergunta seguinte: "O que eu tenho a ver com isso tudo?". Não que as decisões tomadas com a contribuição influente de EJ não tenham repercussões em nossas vidas. Obviamente têm, basta lembrar o caso da Encol. Mas a zona cinza do poder, onde essas decisões são tomadas, parece totalmente alheia a nossa intervenção, afastada de nós ao ponto de tornar ridículas nossas cédulas eleitorais.
Pergunta: se jovens e adultos se afastam hoje das práticas democráticas será que isso é efeito de sua cínica alienação? Ou de um sistema que de fato dispensa a participação de seus cidadãos?
Dizem que o sonho socialista está morto -destruído pelos doutrinários, que confundiram o socialismo com a uniformidade das aspirações de todos, e pelas burocracias, que se transformaram em classes dominantes. Concordo.
Agora, suspeito que o sonho liberal também esteja morto. Ou no mínimo moribundo. Socialismo e liberalismo são obviamente sonhos concorrentes, mas além de suas diferenças eles compartilham (compartilhavam?) algo: são os dois sonhos modernos de todos poderem participar da invenção da vida social e política.
Ora, assim como as burocracias roubaram o sonho socialista, também o sonho liberal parece estar sendo roubado por entidades imprevistas que se tornaram dominantes, as corporações. Entre lobbying e financiamento de campanhas, somos forçados a constatar que perdemos até o sentimento de poder influenciar nosso destino coletivo. A história de EJ dói tanto justamente porque confirma esta perda.
Não é de estranhar se a esperança -última deusa, como dizia um poeta- parece hoje desertar as grandes ambições de governo. Ela encontra refúgio em quem luta em espaços circunscritos e concretos, onde a ação e a opinião de cada um ainda parecem contar. De novo, falo das novas revoltas.