As igrejas gostariam de uma sociedade em que seja crime tudo o que, para elas, é pecado |
Atualmente, quase todas as igrejas cristãs (curiosamente alinhadas com as posições do papa) negociam seu apoio aos candidatos à presidência cobrando posições contra a descriminalização do aborto e contra o casamento gay.
Em 2000, segundo o censo, havia, no Brasil, 125 milhões de católicos, 26 milhões de evangélicos e 12 milhões de sem religião. É lógico que os principais candidatos inventem jeitos de ficar, quanto mais possível, em cima do muro -tentando satisfazer o lobby cristão, mas sem alienar totalmente as simpatias de laicos, agnósticos e livres pensadores (minoritários, mas bastante presentes entre os formadores de opinião).
Adoraria que as campanhas eleitorais fossem mais corajosas, menos preocupadas em não contrariar quem pensa diferente do candidato. Adoraria também que soubéssemos votar sem exigir que nosso candidato pense exatamente como nós. Mas não é esse meu tema de hoje.
Voltemos à declaração do papa, que junta aborto e casamento gay numa mesma condenação e, claro, tenta pressionar os poderes públicos, mundo afora. Para ele, o que é pecado para a igreja deve ser também crime para o Estado.
No fundo, com poucas exceções, as igrejas almejam um Estado confessional, ou seja, querem que o Estado seja regido por leis conformes às normas da religião que elas professam. De novo, as igrejas gostariam de uma sociedade em que seja crime tudo o que, para elas, é pecado: o sonho escondido de qualquer Roma é Teerã ou a Cabul do Talibã.
Há práticas sexuais que você julga escandalosas? Está difícil reprimir sua própria conduta? Nenhum problema, a polícia dos costumes vigiará para que ninguém se dedique ao sexo oral, ao sexo anal ou a transar com camisinha.
Para se defender contra esse pesadelo (que, ele sim, é um "insidioso e perigoso desafio ao bem comum"), em princípio, o Estado laico evita conceber e promulgar leis só porque elas satisfariam os preceitos de uma confissão qualquer. As leis do Estado laico tentam valer por sua racionalidade própria, sem a ajuda de deus algum e de igreja alguma.
Por exemplo, é proibido roubar e matar, mas essa proibição não é justificada pelo fato de que essas condutas são estigmatizadas nas tábuas dos dez mandamentos bíblicos. Para proibir furtos e assassinatos, não é preciso recorrer a Deus, basta notar que esses atos limitam brutalmente a liberdade do outro (o assaltado ou o assassinado).
Agora, imaginemos que você se oponha ao casamento gay invocando a santidade do matrimônio. Se você acha que o casamento é um sacramento divino que só pode ser selado entre um homem e uma mulher, você tem sorte, pois vive numa democracia laica e sua liberdade é total: você poderá não se casar nunca com uma pessoa do mesmo sexo. Ou seja, você poderá manter quanto quiser a santidade e a sacramentalidade de SEU casamento.
Acha pouca coisa? Pense bem: você poderia ser cidadão de uma teocracia gay, na qual o Estado lhe imporia de casar com alguém do mesmo sexo.
Argumento bizarro? Nem tanto: quem ambiciona impor sua moral privada como legislação pública deveria sempre pensar seriamente na hipótese de a legislação pública ser moldada por uma outra moral privada, diferente da dele.
Parêntese: Se você acha que essa história de casamento gay é sem relevância, visto que a união estável já é permitida etc., leia "Histórias de Amor num País sem Lei. A Homoafetividade Vista pelos Tribunais - Casos Reais", de Sylvia Amaral (editora Scortecci).
PS. Sobre a dobradinha sugerida pela declaração do papa: talvez, para o pontífice, aborto e casamento gay sejam unidos na mesma condenação por serem ambos consequências da fraqueza da carne (que, obstinadamente, quer gozar sem se reproduzir).
Mas, numa perspectiva laica, a questão do aborto e de sua descriminalização não tem como ser resolvida pelas mesmas considerações que acabo de fazer para o casamento gay. Ou seja, não há como dizer: se você for contra, não faça, mas deixe abortar quem for a favor. Vou voltar ao assunto, apresentando alguns dilemas que talvez nos ajudem a pensar.