Não é algo "natural"; como outros amores, tem razões para surgir, acabar ou se tornar ódio |
DOIS PROJETOS de lei se propõem a legislar em matéria de amor entre pais e filhos (conforme reportagem de Johanna Nublat, na Folha de 20/9). Ambos se baseiam na premissa de que, entre pais e filhos, há obrigações não só materiais, mas também afetivas.
Pelo projeto (4.294/08) do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), os pais devem aos filhos menores a presença e o amor que são indispensáveis para que os jovens vinguem sem carências e feridas que nunca cicatrizariam direito. Reciprocamente, os filhos devem aos pais idosos a presença e o amor sem os quais a vida, na velhice, poderia perder seu sentido.
Concordo: para ser "bom pai" não basta pagar mesada ou pensão, e, para ser "bom filho", não basta pagar o salário de quem faz companhia à velha mãe ou ao velho pai.
O projeto do deputado Bezerra institui o princípio de uma indenização por dano moral, que poderia ser exigida por pais e filhos que tenham sido abandonados afetivamente. Curiosamente, volta-se ao mesmo lugar de onde se queria fugir: "Você pensou que era suficiente pagar? Acha que não me devia também afeto, atenção, cuidados?
Pois bem, pague mais".
Fora esse paradoxo, a dificuldade está na avaliação do que constitui "abandono" afetivo.
Em sua maioria, os neuróticos (ou seja, a gente), mesmo quando conheceram os cuidados assíduos de pai, mãe, avós etc., queixam-se de uma falta de amor invalidante, que os teria deixado para sempre carentes, tristes e inseguros.
Inversamente, numa veia humorística, conheço adultos que, para evitar o almoço de domingo na casa da mãe, pagariam antecipadamente uma indenização. "Mãe, a gente não vai, mas mando os R$ 300 da multa, tudo bem?". A um preço módico, eles protegeriam assim seu casamento dos venenosos comentários maternos sobre as insuficiências da nora.
O outro projeto de lei (700/07), do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), trata só do abandono afetivo das crianças e quer que, aos filhos menores, seja garantida a "assistência moral", que inclui "a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais" e "solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade". Esse projeto não propõe apenas indenizações financeiras para quem foi abandonado, mas transforma o "abandono" num crime, punível com a detenção, de um a seis meses.
De novo, concordo com a "justificação" do projeto: "A pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação a seus filhos [...]. Os pais têm o DEVER [sic] de acompanhar a formação dos filhos, orientá-los nos momentos mais importantes, prestar-lhes solidariedade e apoio nas situações de sofrimento e, na medida do possível, fazerem-se presentes quando o menor reclama espontaneamente a sua companhia".
Mas o que dizer sobre os pais dos filhos que saqueiam a casa para comprar drogas? Se eles expulsarem os filhos, irão presos?
E imaginemos uma situação nem tão rara: a de um pai que, um dia, aprende que o filho ou a filha é homossexual, não entende, não aceita e se fecha no mutismo como se quisesse se esquecer da própria existência do filho ou da filha. Esse pai iria preso? Não seria melhor que ele encontrasse um profissional com quem conversar? E, se for aprovado o projeto do deputado Bezerra, o filho que não cuidasse desse tipo de pai na velhice deveria uma indenização ao genitor?
Considerando os dois projetos, a impressão com a qual fico é que a tentação de transformar em norma legal o que seria uma relação minimamente "certa" entre pais e filhos é também (se não sobretudo) uma maneira de negar a seguinte realidade, que é incômoda e que nos choca: contrariamente ao que gostaríamos de acreditar, o amor entre pais e filhos não é incondicional, mas é parecido com os outros amores de nossa vida, tem razões para surgir, para acabar ou mesmo para se tornar ódio.
Filhos e pais não se amam "naturalmente". Claro, a extrema dependência nos primeiros anos da vida humana parece impor o amor entre filhos e pais. E, por exemplo, a mortalidade dos pais faz com que os filhos lhes apareçam, na velhice, como única justificativa de sua vida. Mas essas são apenas circunstâncias que instituem, em nossa cultura, a ilusão de que o amor recíproco entre pais e filhos seja "natural".
Não é assim. O amor entre pais e filhos não é garantido, nem por lei; de ambos os lado, ele pode ser, isso sim, conquistado e merecido.
Ou não.
ccalligari@uol.com.br
Pelo projeto (4.294/08) do deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT), os pais devem aos filhos menores a presença e o amor que são indispensáveis para que os jovens vinguem sem carências e feridas que nunca cicatrizariam direito. Reciprocamente, os filhos devem aos pais idosos a presença e o amor sem os quais a vida, na velhice, poderia perder seu sentido.
Concordo: para ser "bom pai" não basta pagar mesada ou pensão, e, para ser "bom filho", não basta pagar o salário de quem faz companhia à velha mãe ou ao velho pai.
O projeto do deputado Bezerra institui o princípio de uma indenização por dano moral, que poderia ser exigida por pais e filhos que tenham sido abandonados afetivamente. Curiosamente, volta-se ao mesmo lugar de onde se queria fugir: "Você pensou que era suficiente pagar? Acha que não me devia também afeto, atenção, cuidados?
Pois bem, pague mais".
Fora esse paradoxo, a dificuldade está na avaliação do que constitui "abandono" afetivo.
Em sua maioria, os neuróticos (ou seja, a gente), mesmo quando conheceram os cuidados assíduos de pai, mãe, avós etc., queixam-se de uma falta de amor invalidante, que os teria deixado para sempre carentes, tristes e inseguros.
Inversamente, numa veia humorística, conheço adultos que, para evitar o almoço de domingo na casa da mãe, pagariam antecipadamente uma indenização. "Mãe, a gente não vai, mas mando os R$ 300 da multa, tudo bem?". A um preço módico, eles protegeriam assim seu casamento dos venenosos comentários maternos sobre as insuficiências da nora.
O outro projeto de lei (700/07), do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), trata só do abandono afetivo das crianças e quer que, aos filhos menores, seja garantida a "assistência moral", que inclui "a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais" e "solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade". Esse projeto não propõe apenas indenizações financeiras para quem foi abandonado, mas transforma o "abandono" num crime, punível com a detenção, de um a seis meses.
De novo, concordo com a "justificação" do projeto: "A pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação a seus filhos [...]. Os pais têm o DEVER [sic] de acompanhar a formação dos filhos, orientá-los nos momentos mais importantes, prestar-lhes solidariedade e apoio nas situações de sofrimento e, na medida do possível, fazerem-se presentes quando o menor reclama espontaneamente a sua companhia".
Mas o que dizer sobre os pais dos filhos que saqueiam a casa para comprar drogas? Se eles expulsarem os filhos, irão presos?
E imaginemos uma situação nem tão rara: a de um pai que, um dia, aprende que o filho ou a filha é homossexual, não entende, não aceita e se fecha no mutismo como se quisesse se esquecer da própria existência do filho ou da filha. Esse pai iria preso? Não seria melhor que ele encontrasse um profissional com quem conversar? E, se for aprovado o projeto do deputado Bezerra, o filho que não cuidasse desse tipo de pai na velhice deveria uma indenização ao genitor?
Considerando os dois projetos, a impressão com a qual fico é que a tentação de transformar em norma legal o que seria uma relação minimamente "certa" entre pais e filhos é também (se não sobretudo) uma maneira de negar a seguinte realidade, que é incômoda e que nos choca: contrariamente ao que gostaríamos de acreditar, o amor entre pais e filhos não é incondicional, mas é parecido com os outros amores de nossa vida, tem razões para surgir, para acabar ou mesmo para se tornar ódio.
Filhos e pais não se amam "naturalmente". Claro, a extrema dependência nos primeiros anos da vida humana parece impor o amor entre filhos e pais. E, por exemplo, a mortalidade dos pais faz com que os filhos lhes apareçam, na velhice, como única justificativa de sua vida. Mas essas são apenas circunstâncias que instituem, em nossa cultura, a ilusão de que o amor recíproco entre pais e filhos seja "natural".
Não é assim. O amor entre pais e filhos não é garantido, nem por lei; de ambos os lado, ele pode ser, isso sim, conquistado e merecido.
Ou não.
ccalligari@uol.com.br
Achei bastante interessante seu comentário e, faço aqui uma pequena auto-analise: Tenho uma filha de sete anos que vive com a mãe e me preocupava (ou me preocupo) com uma certa "falta de amor" da minha parte...
ResponderExcluirVou me aprofundar mais sobre este tema e buscar algumas respostas que seguramente me darão maior clareza no assunto.
Acima do mérito da questão, o que sempre me espanta é a incontrolável sanha dos nossos legisladores em sempre querer regulamentar assuntos íntimos, particulares, que dizem respeito somente à vida particular das pessoas. É um reflexo de uma ideia recorrente por aqui de que as pessoas não têm capacidade de tomar suas próprias decisões e fazer as coisas do jeito que acham que devem ser feitas. E é claro que para isso precisariam da regulamentação do Estado, que deveria interferir somente em casos de abuso. Vão cuidar de outras coisas e deixem as pessoas em paz!
ResponderExcluirQuanto de amor é o suficiente para que o indivíduo se desenvolva de forma saudável? Quem poderá afirmar que o amor dado a um outro foi ou não satisfatório?
ResponderExcluirSerá que apenas o fato de querer amar já basta para que o sentimento aconteça e com isso não seja condenado?
Quando o assunto é sentimento, acredito que não há lei que faça com que alguém dê aquilo que não tem para dar...
Concordo com: "A pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação a seus filhos [...]", mas infelizmentes muitos não entendem o significado do "afetivo", a não ser aquele traduzido em bens materiais.
Falem mais sobre isso. Como é que é essa questão da falta do amor para vcs? Procurem ler Lacan (no original, em francês).
ResponderExcluirEsse tema muito me interessa. Inclusive, algumas matérias sensíveis que saíram em jornais de sua autoria, ainda não aprofundadas por mim, ajudaram-me na monografia de conclusão do curso de Direito. Participo e me interesso com o tema "pais e filhos", ultimamente, bem trabalhados em congressos de Direito e Psicanálise e, especificamente, trabalho teorias sobre indenização por abandono afetivo, baseadas em Lacan e Freud. Muito interessante o tema escolhido para seu post. Não conhecia o blog, visitarei mais vezes.
ResponderExcluirQuando fui à uma audiência de pensão alimentícia e o juiz ou sei lá quem era que tava lá como autoridade, perguntou para mim sobre as visitas, foi mais ou menos assim diálogo entre eu e esse senhor:
ResponderExcluir- Como é que a senhora quer que sejam as visitas? Pode ficar fins de semanas alternados?
- Ele pode ficar com todos os fins de semanas, se o pai das crianças quiser!
- E a senhora prefere passar o natal ou ano novo com as crianças?
- Ele pode ficar o natal e ano novo, não tem problema!
- O dia dos pais, com ele e o das mães, com a senhora?
- Ele pode passar as datas e os dias que desejar com as crianças. Isso não vai alterar em nada, porque simplesmente ele não irá pega-las.
O advogado do pai das crianças pediu a palavra e diz:
- Gostaria de lembrar que a visita é um direito e não uma obrigação!
Sim, Jacqueline, termos 'gerais' são específicos no Direito. Direitos são direitos e deveres são deveres. No caso, a obrigação é de fazer, de dar, etc e o advogado falou certo, pois o pai não tem uma obrigação material apenas, mas ele tem o direito de exercer o poder parental.
ResponderExcluirPoucas pessoas aqui podem dissertar sobre este tema com tanta certeza como eu. Tenho um filho de oito anos, portador de necessidades especiais e que sofre diariamente com a total e completa ausência do pai. Meu filho tem consciência do que ocorre e exterioriza de várias maneiras: em certos momentos o pai imaginário é perfeito, jogador do Flamengo, Presidente da República, rico, super-pai. EM outros ele é morto por traficantes, atropelado por caminhão... São apenas formas que estão ao seu alcance para buscar "controlar" a angústia de não ter um pai. O dito cujo não vê a criança há oito anos, apesar de morar no mesmo bairro. Sua família paga uma pensão mas raríssimas são as visitas. Sou "pãe" com orgulho, no entanto sei que jamais vou substituir a figura paterna. Meu posicionamento é que a criminalização de tal conduta poria freios na inconsequencia da sociedade diante dessa situação. O Direito traz a repressão não para prender, mas sim para mostrar o que não deve ser feito. Contardo, meu caro, sigo tuas colunas, mas dessa vez escreveu aparentemente sem conhecimento de causa.
ResponderExcluirPrezado Calligaris,
ResponderExcluirSuas colocações com relação a garantia - ou não - do amor, entre pais e filhos, me parecem de extrema lucidez. No momento, passo por uma fase dificil de relacionamento com meus filhos adultos e percepção sobre estas questões, iluminaram meus pensamentos. Vou acompanhar o blog.
Muito bom!
eu gosto dos meus pais eles tem problemas tenho ate que ir a picsicologa mas mesmo com todas as brigas eu gosto deles !!!então eu posso dizer eu amo meus pais........
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