quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A rua da revolução



O problema é a rotina de quem trabalha e cria filhos ou o desejo louco de viver outra vida?

ÀS VEZES, conversava com meu pai sobre sonhos que eu acalentava e que implicariam mudanças grandes na minha vida.

Ele me escutava e, em geral, concluía: "Só que não basta sonhar, é preciso ter coragem". Em suma, havia uma infelicidade específica que ele não queria para mim, a de quem cultiva seus desejos como se fossem "apenas um sonho", sem ter a ousadia de tentar vivê-los. É por isso que não achei ruim o título em português que foi escolhido para o novo filme de Sam Mendes e para o grande romance que o inspira, de Richard Yates (de 1961, agora traduzido pela editora Alfaguara): "Foi Apenas um Sonho".

O título original de ambos era "Revolutionary Road" (rua da revolução). Não é raro que, nos pacatos subúrbios americanos de classe média, o nome de uma rua lembre a revolução pela qual os EUA se constituíram independentes e republicanos. Por uma ideia e um futuro de liberdade, os revolucionários de 1776 arriscaram tudo, apostaram "sua vida, sua fortuna e sua honra sagrada". E o título original de Yates perguntava (ironicamente) se algo daquela coragem sobraria num subúrbio dos anos 50, em que quase todos, como Frank e April, o casal do livro e do filme, vivem sorrindo ou fazendo de conta, embora convencidos de que a vida deveria trazer outras aventuras.

Poucos anos depois da história de April e Frank, aliás, uma nova geração fez outra revolução -desta vez, em nome dos desejos silenciados. Seu moto, inventado por Jerry Rubin (estranha cumplicidade entre ele e meu pai), foi "Do it!", faça-o, ou seja: "Seja lá o que for, não deixe que fique apenas um sonho". Mas voltemos ao tema central do livro e do filme, ou seja, digamos assim, à suposta covardia do desejo.

Para começar, uma curiosidade: eu tinha a sensação de já ter escrito sobre o romance de Yates, mas não sabia quando. Graças ao Google, descobri que, em 1999, na bibliografia de meu livro "Adolescência" (Publifolha), eu citava "Revolutionary Road", de Richard Yates, como "um dos maiores romances americanos do pós-guerra", "em que a monotonia da vida suburbana se torna intolerável por causa da urgência de interromper a rotina adulta para poder "se achar'".

Na época, o livro não existia em português, e eu sugeria que quem não pudesse lê-lo em inglês recorresse ao filme "Beleza Americana", de Sam Mendes, cuja "personagem principal é um herdeiro direto do herói de Yates". Palavras proféticas: logo Sam Mendes acabou adaptando o romance de Yates.

Agora, a inspiração no romance de Yates torna "Foi Apenas um Sonho" um filme menos caricatural e mais tocante do que "Beleza Americana".

De onde vem a infelicidade de Frank e April? Tudo bem, April esperava ser atriz e não é (talvez por falta de talento). Quanto a Frank, ele não tem nenhuma aspiração concreta. Por que razão, então, viver numa casa agradável, trabalhando e criando os filhos, levaria a um "vazio sem esperança"? Sem esperança de quê?

Claro, na saída do cinema, parece óbvio o destino de quem habita o estereótipo de um cartão-postal: apenas seria possível escolher entre a insatisfação existencial e o kitsch melado no qual vive "feliz", no filme e no livro, a corretora de imóveis.

Mas paira no ar uma pergunta: e se o problema não fosse o sossego da Revolutionary Road, mas o próprio desejo insano de viver outra vida? A insatisfação abstrata que assombra April e Frank é o cemitério do amor. A escolha de DiCaprio e Winslet (excelentes) parece querer nos contar o que teria acontecido se DiCaprio tivesse sobrevivido ao naufrágio do Titanic: a vida do casal se tornaria uma misteriosa prisão, em que o cotidiano imporia renúncias covardes a sonhos e desejos "livres".

Mas a qual liberdade eles renunciariam? Nada a ver com a que preocupava os revolucionários de 76: é a liberdade de ir viver em Paris. Sarcasmo: a "loucura" é tão enlatada quanto a realidade. Mais um detalhe. É April que exige de Frank uma coragem sem a qual talvez ela deixe de amá-lo e de reconhecê-lo como (seu) homem. A "trivialidade" das conquistas profissionais não basta; Frank deve inventar outros desejos (que, na verdade, ele mal tem). April se torna assim uma representante feroz daquelas expectativas monstruosas com as quais qualquer homem lida como pode -as expectativas maternas: "Seja extraordinário, meu filho".

Tudo bem, serei extraordinário, mas como? Pois é, caro Frank, ser homem não é mole.

ccalligari@uol.com.br

5 comentários:

  1. Talvez o mais triste nessa história seja constatar que esse nó se encontra dentro de nós. A coragem e a covardia inexoravelmente agregadas. Vamos a Paris, ou a qualquer outro lugar e carregamos sempre o pesado (ou não) fardo de nossa própria construção.
    A revolução, para mim, começa por aí.

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  2. Não havia me lembrado de que beleza americana era do mesmo autor,só supus que poderia ser ao ouvir o piano da música durante o filme.Bateu aquele deja vu. E disto quero dizer que ele, Sam Mendes, disse de novo a mesma coisa que já dissera antes,ou seja, o Sonho Americano é realmente uma fábrica de fazer doidos. Ou vc se enquadra( e mesmeriza) ou pira. Não vejo outra alternativa e espero que o S Mendes use sua criatividade e esposa em coisas novas ( novos sonhos) no futuro.
    Como sonhos e consumo andam parelhos talvez seja melhor ele se dedicar a outra coisa.O consumismo americano está nos levando a um beco sem saída.....Rsrsrsrs

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  3. Acho que a coragem para tentar mudarmos algo em nossa trajetória de vida reside no fato de não sabermos ao certo aonde queremos chegar, seja nas escolhas erradas que fazemos ou nas "certezas" que temos (vou ser isso, vou casar com fulano, vou ter 3 filhos etc.), algo que a cultura americana (ocidental, acho mais apropriado) exige muito de nós seres humanos, contraditórios por natureza e “excelência”. De concreto, espero que com o passar do tempo, ter ao menos um pouco mais de percepção para saber o que pode trazer menos angustia... Mas ai talvez fosse pedir muito da vida ou de mim esse ser contraditório.

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  4. hoje é sexta feira, 13 de fevereiro, saí da sessão do analista e entrei no cinema para assistir "foi apenas um sonho".
    justo hoje quando eu me questionei o que fazer com tamanha liberdade que passo a ter aos quase 60 anos, em vias de me aposentar, sair do caminho trilhado por um período em que me senti necessária e pródiga, quando na verdade, vivi os estereótipos de casar, ter filho, descasar, trabalhar, viajar e buscar felicidade... na verdade, o que me trouxe uma visão muito boa deste filme é que me vi fora do tal contexto, e me revi como uma mulher dos anos 70 que pôde dar vazão aos seus sonhos, tornando-me eu mesma, sem ser sombra de marido ou escrava de filhos, mas um ser para quem a profissão ( jornalista), a maternidade e o matrimônio longo (24 anos) legaram muitas alegrias e realizações. o modelo apresentado no enredo ( filme, não li o livro)é clássico do histórico da sociedade americana ( e da nossa classe média em versão amenizada)quando os valores materiais e os sonhos se confundem e fundem os cérebros dos que nem conseguem se auto conhecer, e fogem de si mesmos. coincidentemente, eu sonhei a vida inteira conhecer Paris, e já marquei para ir em maio próximo, mas, adiei 4 décadas, e agora, chegou a hora de curtir a Paris da minha maturidade, com direito ainda, a uma revolução interna e francesa, por que não?
    como sempre, Contardo, me rendo e parabenizo por suas reflexões que me ajudam tanto.
    abraços
    Aparecida Torneros

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  5. Estou lendo o "Cartas a um Jovem Teapueta" e me deparo com surpresa com o seu blog! Semana passada vi no cinema desprentensiosamente o Filme "Sim Senhor". Me rendeu boas risadas sem pensar muito, mas tirando uma mensagem do filminho acho que até que ele expressa bem esse "não sei o que quero, mas só sei que não quero mais ser do jeito que sou"

    http://www.vitaperfectaest.blogspot.com/
    http://muito-bem-obrigada.blogspot.com/

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