TANTO O discurso de Barack Obama quanto o de John McCain foram inspirados pela vontade de cicatrizar as feridas abertas durante a campanha e garantir a unidade da nação. Obama lembrou que será o presidente de todos, não só dos que votaram nele. Reciprocamente, McCain declarou "Obama será meu presidente" e convidou seus partidários a juntar-se a Obama no esforço de liderar o país neste tempo incerto de crise e guerras.
O verbo que McCain usou ao prometer sua ajuda ("to pledge") é o que os americanos usam para jurar fidelidade à bandeira: reconhecer o novo presidente é o que manda o interesse da nação.
Cada candidato evocou os méritos de seu concorrente. Obama homenageou o serviço heróico de McCain durante a Guerra do Vietnã, e McCain congratulou Obama por ter conseguido ser o primeiro negro a chegar à Presidência dos EUA.
Aqui McCain evocou um episódio de 1901: o então presidente Theodore Roosevelt recebeu na Casa Branca Booker T. Washington, que era, na época, o porta-voz da minoria afro-americana. Ora, em 1901, os EUA eram estritamente segregados, e Theodore Roosevelt foi criticado por admitir um negro na Casa Branca. Com isso, McCain quis lembrar o tamanho do caminho percorrido desde então e dar sua justa dimensão à vitória de Obama.
O próprio Obama evocou Martin Luther King (numa citação implícita) e contou a história de uma senhora de 106 anos que votou neste ano, embora tivesse nascido numa época em que ela não poderia votar por duas razões: por ser negra e por ser mulher. No entanto, em nenhum momento Obama deixou pensar que sua vitória fosse mais um episódio no caminho da emancipação dos negros americanos.
Essa diferença entre os dois discursos talvez seja crucial para entender o que separou os dois candidatos e fez de Obama o preferido pela imensa maioria dos jovens (de todas as etnias). McCain entendeu a vitória de Obama na perspectiva da luta de uma minoria. Mas Obama não foi o candidato de uma minoria, ele foi um candidato pós-racial, ou seja, o candidato dos que pensam que as divisões étnicas não fazem sentido. Por isso, ele seduziu os jovens.
Outro exemplo. McCain notou que a vitória de Obama devia ser motivo de orgulho para os afro-americanos. É uma declaração simpática, mas que perde de vista o essencial: a vitória de Obama foi (está sendo) motivo de orgulho para todos os americanos.
Na noite do dia 4, em Nova York, a festa durou até o amanhecer. Fora os lugares canônicos (Times Square, Harlem), por todas as ruas havia gente se abraçando -indivíduos de todas as etnias e, como se diz aqui, de todos os estilos de vida. Eles não celebravam a chegada de um negro à Presidência: eles celebravam a volta, enfim, do orgulho de ser americano.
Um comentarista da CNN constatou: "Não sei se existiu um momento na nossa história em que, como hoje, podemos sentir o orgulho do que conseguimos como nação". Bill Bennett notou que existiu, sim: foi a vitória na Segunda Guerra Mundial. O comentador observou, com razão, que desta vez foi menos trabalhoso... Bom, apesar de ter sido menos trabalhoso, como se diz no Brasil, "demorou".
Em suma, a vitória de Obama é, para McCain, um momento da emancipação dos negros. Para os eleitores de Obama (brancos, negros, etc.), ela é muito mais do que isso. De que se trata?
Para entender, é bom considerar o começo do discurso de Obama, em que ele apresenta sua vitória como a melhor resposta a todos os que podem colocar em dúvida o verdadeiro poder dos EUA, que não é o do dinheiro nem o das armas, mas o poder dos ideais americanos (democracia, oportunidades para todos, esperança...). Ou seja, a chegada de Obama à Presidência redefine a liderança dos Estados Unidos como liderança ideal. Era, obviamente, o que a maioria dos americanos queria.
Mais uma observação. Ao longo da campanha, Barack Obama mostrou nervos de aço; ele nunca perdeu seu "cool". No discurso de vitória, Obama reservou uma frase aos que "querem despedaçar o mundo": "we will defeat you", nós derrotaremos vocês. Seu tom absolutamente calmo, quase um grau zero da oratória, me fez pensar que é melhor não brincar com Obama.
Enfim, pergunta: os EUA acordaram diferentes, na quarta-feira depois da eleição? Um pouco. Na esquina da 34 com a oitava, um senhor negro pedia esmola tocando um pequeno teclado. Alguém deixou cair um dólar no copo de papel previsto para isso. O velho músico agradeceu. O passeante parou e replicou: "Sou eu que lhe agradeço por ter me feito sorrir". Nunca vi nada igual em Nova York.
Claro, é um estado de graça que não vai durar muito (já vimos isso nos dias depois do 11 de Setembro). Mas algo talvez permaneça: o sentimento de uma comunidade que está acima de seus fragmentos. Não seria pouca coisa.
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