quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A sexualidade de quem governa



As fantasias que sustentam o desejo nos definem mais do que o gênero do parceiro

SERÁ QUE que a vida sexual de quem se candidata a governar é relevante para os eleitores? Há duas "escolas" de pensamento: a francesa e a dos EUA.

Para os franceses, em princípio, a vida amorosa e sexual dos governantes não tem relação com as qualidades morais que importam na vida pública. Portanto, é raro que, no debate político, apareçam "detalhes" privados (amantes, filhos fora do casamento etc.).

Nos EUA, ao contrário, a intimidade de governantes e candidatos é vasculhada. Talvez os norte-americanos sejam simplesmente mais moralistas do que os franceses. Ou talvez eles acreditem que uma vida privada libertina (ou não conforme a regra) prometa uma condução desregrada da coisa pública. Algo assim: quem não resiste à paixão (nem para compor o cartão-postal da campanha) colocará sua "tara" acima de seu dever.

É um enigma: os norte-americanos prezam a liberdade de cada um viver como ele bem entende, mas pedem que quem governa seja um exemplo de conformismo. E, em regra, o conformismo de quem governa (sobretudo se for só aparente) transforma-se em exigência de conformidade para todos.

O Brasil é outro enigma: a relevância política da vida amorosa e sexual dos governantes parece mínima, como se o público e o privado fossem domínios claramente distintos. Por outro lado, a esfera pública é brutalmente parasitada pelos interesses privados (corrupção, clientelismo).
Seja como for, nessa história, o que mais me impressiona é a ingenuidade com a qual é composto o "perfil" sexual e amoroso de candidatos e governantes. Nas campanhas eleitorais dos EUA, por exemplo, os candidatos levam consigo mulher e filhos; supõe-se que essa exibição valha como um atestado de "normalidade", enquanto, no máximo, ela indica qual é orientação sexual do candidato (e olhe lá) e qual sua aptidão para multiplicar-se.

Ora, se nossa vida sexual e amorosa diz algo sobre quem somos, não é graças à nossa orientação ou à nossa capacidade de procriar. Do lado amoroso, seria mais significativo considerar qual é o respeito pela singularidade do parceiro, qual a virulência da idealização ou do ciúme, qual a parte de narcisismo etc. Do lado sexual, muito mais que o gênero do parceiro escolhido (ou exibido), o que define um indivíduo são as fantasias (implícitas ou explícitas, realizadas ou não) que sustentam seu desejo.

Ou seja, se quisesse conhecer a vida sexual e amorosa de um candidato, precisaria saber não tanto quem ele ama, mas qual é seu jeito de amar, e não tanto com quem, mas COMO ele "transa" - ou seja, o que o excita, quais pensamentos, quais situações, quais palavras. Também me perguntaria se o candidato tem mesmo uma vida sexual (com que freqüência e intensidade) e se ele aceita sua própria sexualidade ou a vive com nojo ou asco.

Tudo isso, caso eu quisesse saber um mínimo sobre a vida amorosa e sexual de um candidato. Mas será que isso me seria útil na hora de votar? E de que forma?

Michel Foucault talvez seja o pensador que melhor desmascarou e contestou os mecanismos do poder moderno (isso, apesar de sua histórica burrada ao avaliar positivamente o regime dos aiatolás no Irã). Como ele mesmo revelava, sua sexualidade se alimentava em fantasias e práticas sadomasoquistas. Pergunta: sua perspicácia e seu engajamento libertários se deram apesar de suas fantasias sexuais ou por causa delas? Não sei.

A pergunta não é urgente: infelizmente, no estado atual de nossa sociedade, é improvável que candidatos e candidatas a cargos de governo falem publicamente do que importa em sua vida sexual e amorosa.

Fico apenas com esta idéia: em geral, um governante que aceita e vive suas próprias fantasias é, para mim, preferível a outro que as reprime, pois a falta de indulgência consigo mesmo promete rigidez hipócrita para com os outros. Também, o exercício da sexualidade introduz em todas as fantasias uma descontinuidade: a "brincadeira" termina quando acaba a relação sexual. Voltando ao exemplo de Foucault, quem goza sexualmente com os apetrechos do sadomasoquismo dificilmente consegue não achar risível a face sisuda do poder.

Mais um ponto: salvo ilegalidade, em matéria de sexo, minha regra geral é que só o interessado tem o direito de falar. A voz de um terceiro sempre ressoa como uma denúncia que faz apelo ao preconceito -ou seja, certamente não ao que tem de melhor em nós.

3 comentários:

  1. Querido amigo Contardo
    mais uma das suas instigantes crônicas sobre o universo do inconsciente a futucar a vida até dos governantes, por que não?
    Jeitos de amar, transar, desejar, no fundo, são permeáveis no mundo do poder, queiramos admitir ou não, e isso ainda é um grande tabu pra nós todos... pois, governa-se com a mente, com o coração, com as fantasias e até com as frustrações, apesar de ainda não termos como provar tudo isso, é possível intuir, sim, o quanto a nossa sexualidade solta ou reprimida pode influir em decisões, opções gerenciadoras ou aceitação das benesses ou agruras que o poder enseja. Boas reflexões, que precisam amadurecer mais para que vejamos os governantes com novos olhares.
    Abração
    Aparecida Torneros

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  2. Oi, tava pensando, vc podia colocar um link do meu blog no teu blog, dá uma olhada, veja se vale.

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